Por Duarte Pereira
Em homenagem a Santo Dias, reproduzimos abaixo artigo de Duarte Pereira escrito logo após o assassinato do líder metalúrgico e publicado no jornal Movimento, importante espaço de resistência à ditadura militar e de aglutinação das forças populares no final da década de 70. O artigo registra o momento político que o país vivia, a retomada das lutas dos trabalhadores, o enfrentamento com o gorilas do regime e todo o aparato repressivo do Estado e das empresas. Eis o artigo:
Na semana passada, o regime militar aumentou sua dívida de sangue com o povo brasileiro. O operário Santo Dias da Silva foi morto a bala por policiais militares em São Paulo, quando, na porta da indústria Sylvania, procurava convencer seus colegas metalúrgicos a exercer o direito mais elementar dos trabalhadores assalariados: parar os braços e as máquinas para reivindicar melhores salários.
Santo era um dos líderes da oposição metalúrgica de São Paulo e foi candidato a vice-presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo pela chapa 3, nas últimas eleições. Era também coordenador da comunidade de base da Vila Remo, membro da Pastoral do Mundo do Trabalho da Arquidiocese paulista, representante operário na CNBB e integrante do comitê eleitoral do deputado federal e operário Aurélio Peres e da deputada estadual e professora primária Irma Passoni. Firme partidário da imprensa popular, foi um dos fundadores do “Jornal dos Jornais” e era amigo e colaborador do jornal “Movimento”. Santo era casado com Ana Maria, integrante da coordenação do Movimento contra a Carestia, e deixou dois filhos, Santo Filho e Luciana, de 13 e 12 anos respectivamente.
Nos últimos meses, outros operários desarmados foram mortos durante a realização de movimentos grevistas. Em Minas Gerais tombaram comprovadamente Orocílio Martins Gonçalves, de 24 anos, Guido Leão dos Santos, de 23 anos, e Benedito Gonçalves, de 60 anos. Em Volta Redonda, no estado do Rio de Janeiro, durante uma greve de operários da construção civil, no dia 15 de outubro, um trabalhador morreu atropelado ao fugir dos ataques de um destacamento policial. Em Candeias, na Bahia, um operário morreu baleado durante um incidente entre os vigilantes de uma fábrica e os trabalhadores; os vigilantes chegaram a se armar de fuzis para dispersar os operários revoltados. Dezenas e dezenas de outros operários foram espancados, baleados, presos. Outros trabalhadores assalariados e autônomos têm sido vítimas de arbitrariedades semelhantes, como bancários, jornalistas, professores, motoristas de táxi. E também sobre os camponeses se desencadeia uma nova onda cada vez mais cruel de violência, conforme evidenciam os acontecimentos recentes no vale do Araguaia.
Para cada incidente os prepostos do regime forjam uma desculpa caluniosa. Ora se trata de um acidente involuntário; ora chegam a transformar, como no caso de Santo, os policiais assassinos em vítimas assustadas de uma agressão inexistente dos trabalhadores. Os jornais, as revistas, as rádios e as emissoras de televisão do grande capital se encarregam de espalhar essas versões mentirosas e de denegrir os movimentos reivindicatórios justos e até agora pacíficos dos trabalhadores.
A própria repetição das investidas policiais mostra, porém, que não se trata de nenhum acidente involuntário e lamentável, de nenhum ato provocador isolado, mas dos frutos de uma política deliberada. As causas últimas dessa investida de terror contra os operários, camponeses e demais trabalhadores se encontram, em primeiro lugar, no arrocho dos salários, na concentração da propriedade da terra, na carestia de vida, que continuam agravando seriamente as condições de sobrevivência dos trabalhadores. É inevitável que eles se unam e se organizem para resistir, para exigir o controle dos preços, para reclamar salários mais altos, para defender seu pedacinho de terra. Vem então o regime militar, que, a serviço do grande capital estrangeiro e nacional e dos grandes proprietários de terra, não quer reconhecer o direito de greve e a liberdade sindical dos assalariados, não quer admitir o direito dos camponeses à posse da terra, e por isso arma o braço subserviente dos policiais e soldados e os lança contra os trabalhadores. O verdadeiro responsável pelo assassinato de Santo Dias é, portanto, o regime militar, sua política econômica, sua intolerância com os trabalhadores. Uma faixa desfraldada no enterro de Santo e escrita toscamente por mãos operárias resumia a essência do problema: “O governo mata de fome, a polícia mata a bala”.
O regime militar está, porém, brincando com fogo. A paciência do povo tem limites. Até quando os trabalhadores se deixarão espancar e matar passivamente?
O primeiro resultado se viu em São Paulo. O covarde assassinato de Santo não intimidou seus companheiros metalúrgicos. Reanimou a greve, ampliou os piquetes e a solidariedade, fez crescer o movimento paredista. A greve é parcial, enfrenta dificuldades, mas, na luta, os metalúrgicos vão reforçando sua unidade, melhorando sua organização, elevando sua consciência política, desmascarando seus falsos líderes. Sejam quais forem os resultados imediatos do movimento grevista, estão sendo criadas condições mais favoráveis para que os metalúrgicos paulistas levem adiante, sem desfalecimento e temor, a causa pela qual Santo deu a vida.
O combate libertador dos trabalhadores será longo e renhido. Exigirá sacrifícios. Outros operários tombarão. Mas os irmãos de classe de Santo, seus companheiros de luta, seus amigos e aliados saberão honrar sua memória e não pouparão esforços até que o regime militar que o matou e os patrões que durante tantos anos o exploraram recebam a resposta que merecem.
Trinta mil pessoas gritaram na Praça da Sé, com os olhos cheios de lágrimas e os corações cheios de indignação: “Companheiro Santo, você está presente”. Sim, companheiro Santo, você estará sempre presente em nossa lembrança e em nossa luta!