Por Luiz Araujo
Em março teremos a Conferência Nacional de Educação – CONAE. A Conferência acontecerá em Brasília, em abril de 2010, será precedida de Conferências Municipais, que foram realizadas no primeiro semestre de 2009 e de Conferências Estaduais e do Distrito Federal programadas para o segundo semestre do mesmo ano.
Tema da CONAE, definido por sua Comissão Organizadora Nacional, será: Construindo um Sistema Nacional Articulado de Educação: Plano Nacional de Educação, suas Diretrizes e Estratégias de Ação.
Os educadores, estudantes e gestores estão discutindo o Documento Referência. São elencados neste documento cinco grandes desafios para o Estado e para a sociedade brasileira:
a) Promover a construção de um Sistema Nacional de Educação, responsável pela institucionalização de orientação política comum e de trabalho permanente do Estado e da sociedade na garantia do direito à educação.
b) Manter constante o debate nacional, orientando a mobilização nacional pela qualidade e valorização da educação básica e superior, por meio da definição de referências e concepções fundamentais em um projeto de Estado responsável pela educação nacional, promovendo a mobilização dos diferentes segmentos sociais e visando à consolidação de uma educação efetivamente democrática.
c) Garantir que os acordos e consensos produzidos na CONAE redundem em políticas públicas de educação, que se consolidarão em diretrizes, estratégias, planos, programas, projetos, ações e proposições pedagógicas e políticas, capazes de fazer avançar o panorama educacional, no Brasil.
d) Propiciar condições para que as referidas políticas educacionais, concebidas e implementadas de forma articulada entre os sistemas de ensino, promovam: o direito do aluno à formação integral com qualidade; o reconhecimento e valorização à diversidade; a definição de parâmetros e diretrizes para a qualificação dos profissionais da educação; o estabelecimento de condições salariais e profissionais adequadas e necessárias para o trabalho dos docentes e funcionários; a educação inclusiva; a gestão democrática e o desenvolvimento social; o regime de colaboração, de forma articulada, em todo o País; o financiamento, o acompanhamento e o controle social da educação; e a instituição de uma política nacional de avaliação.
e) Indicar, para o conjunto das políticas educacionais implementadas de forma articulada entre os sistemas de ensino, que seus fundamentos estão alicerçados na garantia da universalização e da qualidade social da educação básica e superior, bem como da democratização de sua gestão.
Um dos eixos é denominado “Financiamento da Educação e Controle Social”. É sobre este eixo que vou ater as minhas contribuições durante esta semana.
Definição de Sistema Nacional Articulado de Educação
Em vários momentos do Documento Referência há um esforço por definir o conceito de Sistema Nacional Articulado de Educação. O documento atesta para o fato de que o Estado brasileiro ter uma Lei Nacional de Ensino (LDB/1996), um órgão legislativo (Congresso Nacional), um órgão que normatiza todos os sistemas (CNE) e um órgão que estabelece e executa as políticas de governo (MEC), mas que isso não foi suficiente para construir e viabilizar “forma de organização que viabilize o alcance dos fins da educação e, também, o estatuto constitucional do regime de colaboração entre os sistemas de ensino (federal, estadual/distrital e municipal), o que tornaria viável o que é comum às esferas do poder público (União, estados/DF e municípios): a garantia de acesso à cultura, à educação e à ciência (art. 23, inciso V)”.
Para o documento, “a construção de um Sistema Nacional de Educação requer o redimensionamento da ação dos entes federados, garantindo diretrizes educacionais comuns a serem implementadas em todo o território nacional, tendo como perspectiva a superação das desigualdades regionais”.
Seu objetivo seria o “desenvolvimento de políticas públicas educacionais nacionais universalizáveis, por meio da regulamentação das atribuições específicas de cada ente federado no regime de colaboração e da educação privada pelos órgãos de Estado”.
O Sistema Nacional de Educação teria “o papel de articulador, normatizador, coordenador e, sempre que necessário, financiador dos sistemas de ensino (federal, estadual/DF e municipal), garantindo finalidades, diretrizes e estratégias educacionais comuns, mas mantendo as especificidades próprias de cada um”.
Apesar de corretamente a CONAE pautar o debate sobre a necessidade de ações articuladas em nível nacional para que se reverta os péssimos indicadores educacionais, a proposta de Sistema Nacional não supera a atual pulverização de gerência dos recursos, nem discute claramente uma revisão das atuais funções constitucionais da União, principal nó que precisa ser desatado.
Com estas limitações, o debate da CONAE mantém-se no marco da política de fundos estaduais (comentarei nos próximos dias de forma mais detida esta questão), não conseguindo trazer para o debate os avanços conseguidos pela área da saúde há 19 anos, que criou um sistema único.
Aprender com a saúde (SUS)
Em 1990, aproveitando o clima democratizante do processo constituinte, o Congresso Nacional aprovou a Lei n° 8080, que instituiu as regras de funcionamento do Sistema Único de Saúde – SUS.
Ao contrário da educação, a área de saúde sabia claramente o que queria e se unificou em torno de bandeiras claras. No seu artigo 4° a referida lei estabelece que o conjunto de ações e serviços de saúde, prestados por órgãos e instituições públicas federais, estaduais e municipais, da Administração direta e indireta e das fundações mantidas pelo Poder Público, constitui o Sistema Único de Saúde (SUS). Ou seja, todo o atendimento público passou a fazer parte de um único sistema, todo regulado pela legislação então aprovada.
Até a iniciativa privada foi incluída, mesmo que com caráter complementar, mas com isso submeteu tal serviço a um processo de controle estatal. Estava implícita a idéia de que o serviço de saúde é essencialmente público, pois é um direito fundamental dos cidadãos e que a iniciativa privada deveria ser aceita apenas como complemento a este sistema. Infelizmente este importante dispositivo depois foi sendo flexibilizado, principalmente pela década liberalizante que se seguiu a aprovação da lei do SUS.
O mais importante é que a legislação do SUS definiu que todos os recursos deveriam estar concentrados num fundo único. No seu artigo 31 podemos ler:
Art. 31. O orçamento da seguridade social destinará ao Sistema Único de Saúde (SUS) de acordo com a receita estimada, os recursos necessários à realização de suas finalidades, previstos em proposta elaborada pela sua direção nacional, com a participação dos órgãos da Previdência Social e da Assistência Social, tendo em vista as metas e prioridades estabelecidas na Lei de Diretrizes Orçamentárias.
A lei estabeleceu as competências de cada ente federado e no seu artigo 33 estabeleceu que os recursos financeiros do Sistema Único de Saúde (SUS) seriam depositados em conta especial, em cada esfera de sua atuação, e movimentados sob fiscalização dos respectivos Conselhos de Saúde. No artigo 34 estabeleceu a dinâmica de repasse para o fundo nacional.
Aqui mais uma grande diferença com o modelo educacional. Na saúde temos um fundo único nacional e não 27 fundos estaduais. Na saúde se fortaleceu os conselhos de saúde e não se inventou novos conselhos para fiscalizar os recursos.
E no seu artigo 35 foram estabelecidos os critérios para transferência dos recursos do Fundo Nacional para os estados, distrito federal e municípios. Utilizou-se uma combinação dos seguintes critérios, segundo análise técnica de programas e projetos:
I – perfil demográfico da região;
II – perfil epidemiológico da população a ser coberta;
III – características quantitativas e qualitativas da rede de saúde na área;
IV – desempenho técnico, econômico e financeiro no período anterior;
V – níveis de participação do setor saúde nos orçamentos estaduais e municipais;
VI – previsão do plano qüinqüenal de investimentos da rede;
VII – ressarcimento do atendimento a serviços prestados para outras esferas de governo.
Além destes critérios ficou estabelecido que metade dos recursos destinados a Estados e Municípios será distribuída segundo o quociente de sua divisão pelo número de habitantes, independentemente de qualquer procedimento prévio. E que nos casos de Estados e Municípios sujeitos a notório processo de migração, os critérios demográficos mencionados nesta lei serão ponderados por outros indicadores de crescimento populacional, em especial o número de eleitores registrados.
Realmente temos muito que refletir sobre a experiência da saúde no momento em que todos estão se debruçando no esforço para conceituar o que será um Sistema Nacional Articulado de Educação.
O Eixo V está insuficiente
O documento referência para a Conae possui um capítulo específico sobre financiamento da educação e controle social. Uma leitura detida deste texto pode lançar luz nos limites dos debates que o documento enseja sobre a constituição de um Sistema Nacional Articulado de Educação.
O documento reconhece que o financiamento se traduz no alicerce para a construção do sistema nacional e para o alcance das metas do PNE, por isso “urge aumentar o montante estatal de recursos investidos na área, além de solucionar o desequilíbrio regional”. Para dar conta desta tarefa o documento defende uma “reforma tributária pautada pela justiça social e o equilíbrio regional”.
O documento apresenta cinco nós críticos que devem ser enfrentados e as soluções para superá-los são justamente onde reside a maior fraqueza do texto. Quais são os nós críticos: revisão do papel da União, instituição de um regime de colaboração, real valorização dos trabalhadores em educação, definição de referenciais de qualidade para etapa e modalidades e definição do papel do ensino superior para o processo de desenvolvimento do país.
Acertadamente o documento advoga uma “vinculação ao produto Interno Bruto (PIB) em percentuais bem acima dos praticados”, inclusive defendendo a revogação dos vetos apostos a legislação do PNE. Propõe que a política de financiamento da educação básica deva “amparar-se na definição de um custo aluno-qualidade”.
As três principais medidas concretas para viabilizar o financiamento em outro patamar apresentadas pelo documento são:
a) “ampliar o investimento em educação pública em relação ao PIB, na proporção de 1% ao ano, de forma a atingir, no mínimo 7% do PIB até 2011 e, no mínimo, 10% do PIB até 2014”.
b) “aumento dos recursos da educação de 18% para, no mínimo 20% (da União) e de 25% para, no mínimo 30% (de estados, DF e municípios) não só da receita de impostos, mas adicionando-se, de forma adequada, percentuais das taxas e contribuições para investimento em manutenção e desenvolvimento do ensino público”.
c) “retirar as despesas com aposentadorias e pensões da conta dos recursos vinculados à manutenção e desenvolvimento do ensino”
No item 238 o documento admite os limites do Fundeb ao afirmar que este “não é suficiente para garantir a universalização da oferta de vagas na educação básica e tampouco a permanência do aluno na escola até a conclusão do ensino médio com qualidade, o que exige a aplicação de recursos financeiros na educação básica para além desse fundo”. Mas, em que pese tão corajosa afirmativa, quando enumera as propostas em relação ao Fundeb elas ainda são bem genéricas:
a) consolidar o fundo, “garantindo recursos financeiros adequados por estudante”, tendo como referência de gasto por aluno/ano o custo aluno-qualidade;e
b) “considerar as condições reais de cada etapa e modalidade de ensino nos fatores de ponderação do valor por aluno”.
As demais sugestões são relativas a melhoria da transparência e do controle social.
No item 248 o documento considera que para “superar a fragmentação e o isolamento das políticas educacionais é preciso criar um sistema nacional articulado de educação que, através do regime de colaboração, garanta os recursos necessários à educação pública com qualidade social”.
O documento deixa importantes questões sem resposta e suas soluções pecam pela imprecisão. Talvez estes defeitos sejam fruto do próprio conflito existente entre o desejo dos organizadores de viabilizar mais recursos para a educação e a limitação imposta pela política econômica conservadora, que não é questionada por muitas entidades e, obviamente, pelos representantes governamentais na referida comissão.
Deixo algumas perguntas:
1. É possível criar um sistema Nacional Articulado sem ter um fundo único (nacional)?
2. É possível pensar em custo aluno-qualidade sem que seja proposto uma verdadeira revisão do papel da União no financiamento da educação básica?
3. Aumentar os recursos vinculados à educação é solução suficiente sem rediscussão do peso de cada ente federado no financiamento, especialmente o peso de participação da União?
Luiz Araujo é professor, mestre em políticas públicas em educação pela UnB. Secretário de educação de Belém (1997-2002). Presidente do INEP (2003-2004). Assessor de financiamento educacional da UNDIME Nacional (2004-2006). Assessor do senador José Nery (PSOL-Pa). Consultor na área educacional.
Fonte: Blog do Luiz Araujo