Por Raul Marcelo
Recentemente a ALESP aprovou o projeto de lei complementar 62/2008, de autoria do Governador do Estado, José Serra (PSDB), que possibilita a entrega da gestão de qualquer unidade de saúde – hospitais, laboratórios, etc – em funcionamento antes do ano de 1998 para as chamadas OSs (organizações sociais).
Este PLC alterou a lei 846/1998, aprovada no governo Covas (PSDB), que entregava os hospitais inaugurados a partir da promulgação da mesma às OSs. Agora, todo e qualquer equipamento público de saúde do Estado de São Paulo pode ser entregue às chamadas organizações sociais, que, segundo a definição legal, são “pessoas jurídicas de direito privado cujas atividades sejam dirigidas à saúde…, e qualificadas pelo Poder Executivo…”.
A lei 846/08 dispõe também,em seu artigo 6°, “a dispensa de licitação” para a celebração dos contratos, bem como que os mesmos serão realizados entre a OSs e a Secretaria de Estado da Saúde.
Pois bem, todo o discurso construído pelo governo e reforçado pelos partidos que lhe dão sustentação – entre os quais o Estadão, a Folha, a Globo, a Editora Abril etc – está calcado na necessidade de melhorar a “gestão” dos hospitais e dotá-los de maior “eficiência”.
O ponto fundamental deste artigo é deslindar o que esconde este discurso, quais interesses ele atende e seus impactos no serviço de saúde pública.
O processo de formação da atual política de saúde pública brasileira tem um longo caminho já percorrido de avanços e retrocessos, enfrentamentos ora abertos ora escamoteados. Enfim, uma historia de lutas. Basta lembrar da Revolta da Vacina, ponto alto da resistência popular e exemplo de política autoritária de saúde pública no período do Brasil Fazenda, onde a única preocupação da burguesia era manter as epidemias longe dos portos, garantindo assim que os navios pudessem atracar tranquilamente e levar nossas riquezas para a Europa.
Durante o processo de industrialização, a partir dos anos 1930, a preocupação da burguesia brasileira era conter a pressão dos trabalhadores. Já as ditaduras Getúlio e a Civil-Militar, de 1964 a 1979, encontraram como solução para a questão da saúde, no plano da política, empurrar os trabalhadores com carteira assinada para os planos de saúde privados. Desde então todo o setor privado da saúde recebe grande volume de recursos públicos. A ponto de, em 2006, todo o gasto privado na área (R$ 87 bilhões) superar o gasto público (R$ 78 bilhões).
Com a redemocratização veio o movimento pela reforma sanitária, que defendia um sistema universal de saúde. Uma luz no fim do túnel surge para os milhões de brasileiros pobres e miseráveis que vivem na informalidade e têm no serviço público a única via de acesso à assistência médica.
A saúde torna-se um “direito de todos” com a Constituição Federal de 1988, que também cria o Sistema Único de Saúde – cuja implementação é regulamentada pelas leis 8.080/90 e 8.142/90.
Essa legislação foi um avanço, em que pese o fato de continuarmos com um sistema dividido entre o público e o privado (também chamado de “complementar”). Para muitos era o passo que faltava, sendo que dali em diante era lutar para que a legislação fosse implementada. Luta inglória em tempos neoliberais.
Nos anos 1990, a Constituição Cidadã entrou na mira dos novos donos do poder no Brasil, e os Direitos previstos no artigo 5° da CF começaram a sofrer ataques de todos os lados. Em especial aqueles dispostos no capítulo constitucional da Seguridade Social, que abrange o direito à saúde, à assistência social e à previdência. Reformas e mais reformas começaram a ser feitas em nossa Constituição, todas no intuito de desobrigar o Estado da responsabilidade com as áreas sociais e direcionar sua atenção para a banca da especulação. Para delírio de Bresser Pereira e deleite do FMI e Banco Mundial, estas mudanças obtiveram êxito e o orçamento público foi seqüestrado, literalmente, por meio de um mecanismo complexo para a grande massa da população – qual seja o endividamento público e a rolagem da respectiva dívida pública, via pagamento de juros.
Em livro publicado recentemente, sob o título “A economia política do Governo Lula”, os professores Luiz Filgueiras e Reinaldo Gonçalves demonstram que os governos FHC e Lula propiciaram ao capital financeiro o montante de mais de R$ 1 trilhão em juros da dívida. No período 1995 a 2006, os superávits primários acumulados foram de R$ 489 bilhões e a dívida pública total aumentou em mais de R$ 900 bilhões. De modo que quanto mais se paga mais a dívida cresce. No ano passado, 31% do orçamento executado da União foi gasto com a rolagem da divida, enquanto o governo gastou míseros 4,8% com a saúde.
A Desvinculação das Receitas da União (DRU), que retira todos os anos 20% das contribuições destinadas às áreas sociais, completa o quadro de sub-financiamento do SUS.
Portanto, a grande questão colocada não é de gestão, como repetem os defensores do Capital que elaboram diversos modelos privatizantes como solução, mas sim a necessidade de aumentar os gastos públicos com saúde no Brasil.
O céu não é o limite para o Capital. Chegamos ao ponto de termos aprovado pelo Congresso Nacional a Lei 101/2000 – a chamada Lei de Responsabilidade Fiscal – que diz expressamente que os gastos públicos nos estados e municípios estão limitados para a contratação de pessoal, sob pena de o governante incorrer em crime de improbidade administrativa.
O argumento do controle das contas públicas e da necessidade de “responsabilidade fiscal” foi utilizado quando Covas fez aprovar a lei que criou as OSs no Estado de São Paulo, em 1998. A não contratação de trabalhadores para os novos hospitais por concurso público, como manda a Constituição, e sim por meio da contratação destas organizações sociais, sem licitação, transferiu os recursos da rubrica orçamentária “Gastos com Pessoal” para a rubrica “Outras Despesas Correntes”.
Esta metodologia seria logo em seguida disposta na Lei de Responsabilidade Fiscal e estendida para toda administração pública brasileira. Em razão do artigo 20, inciso II, da Lei Fiscal, os Estados não podem “exceder o limite de 49% de seus gastos com pessoal, em relação a sua Receita Corrente Liquida”. A exceção para o limite de gastos são as contratações por terceirização.
Estava dada a largada para a precarização das relações de trabalho no serviço público, via ampliação das terceirizações – agora por meio de norma legal – para todo o Brasil.
De 1998 até agora esta forma de contratação só tem feito crescer o repasse do Estado para essas entidades privadas. Segundo o relatório de execução orçamentária do Governo (SIGEO), em 2004 o Estado despendeu R$ 600 milhões com as OSs. Para este ano estão previstos gastos de R$ 1,8 bilhão de reais.
Quando terminamos nosso sub-relatório na CPI sobre a Remuneração dos Serviços Médicos-Hospitalares, em junho de 2008, eram 13 os hospitais sob essa modalidade de contrato. Hoje, segundo a Secretaria da Saúde, já são 25. Com previsão de chegarmos ao final do governo Serra com 40 hospitais sendo administrados pelas OSs. Ou seja, todo o sistema público de saúde está ameaçado de ser privatizado.
Como a habilitação para a celebração do contrato entre uma OSs e a Secretaria de Estado da Saúde é um ato exclusivo do Secretário está dada a abertura para todo tipo de obscuridade. Órgãos como o Conselho Estadual de Saúde não são consultados sobre a contratação dessas entidades, embora a legislação estabeleça que os conselhos devem formular, debater e fiscalizar as políticas públicas de saúde em curso no Estado.
A ausência de licitação, somada ao fato de setores do Capital terem muito interesse no “Negócio Saúde”, abre os mais diferentes caminhos para o favorecimento de interesses particulares. Haja vista o fato do SECONCI (Serviço Social da Construção Civil do Estado de SP), uma entidade ligada a empresários da construção civil, administrar quatro hospitais (Itapecerica da Serra, Vila Alpina, Sapopemba e Cotia). Ou seja, mau negócio é que não é ser uma OS.
O presidente do Tribunal de Contas do Estado, Edgard Camargo Rodrigues, em recente entrevista, apontou o problema central deste modelo. “Como precificar o serviço que se está comprando? Um estado que mal tem condições de fiscalizar o que está comprando tem menos condições ainda de estabelecer preços justos pelos serviços que compra”, disse. Para prosseguir afirmando, “queremos saber como se chegou a esse valor? E é sempre uma resposta vaga.”
O presidente do TCE também entende que esse modelo caminha para a privatização: “Se não é essa a intenção, o caminho está aberto para isso. Especialmente com as modificações na lei das OSs em São Paulo”, afirmou, acrescentando que “é como aconteceu nas estradas. Primeiro se sucateia, depois se diz: ‘só tem uma saída, vamos privatizar e cobrar pedágio’”.
As terceirizações nos hospitais administrados pelas OSs ganham novo significado. Transformam-se em “quarteirização” e até “quinteirização” dos serviços prestados, como diagnosticamos em nosso sub-relatório à CPI. Em que pese as OSs não terem fins lucrativos, ao terem a permissão de contratar todo tipo de serviços, sem controle público, o que ocorre é que empresas que prestam serviços hospitalares são convidadas atuar dentro dos hospitais públicos e subcontratam outras. E assim por diante, gerando todo tipo de favorecimentos, acordos, e – por que não? – relações com partidos e parlamentares, financiamento de campanhas etc.
Os serviços de saúde privados já estão entre os principais doadores das campanhas eleitorais. O que temos portanto é uma espiral de relações que se retroalimentam a partir dos recursos públicos.
Todos os trabalhadores das OSs são terceirizados, portanto não têm nenhum tipo de estabilidade. É esse o instrumental utilizado pelos administradores das OSs para fazer com que sejam cumpridas as metas estabelecidas nos contratos de gestão. Metas que muitas vezes não são condizentes com as necessidades de saúde da população atendida pelo hospital. Assim, o menor número de trabalhadores possível deve produzir o máximo possível, lógica comum no capitalismo, que é ainda mais nociva quando implementada na saúde, pois critérios como a relação entre número de altas por leitos, intervalo de substituição ou taxa de mortalidade podem priorizar a produtividade e alterar a conduta médica, da mais adequada para a mais rápida. Isso sem mencionar que a superexploração combinada com todos os tipos de assédio moral sofridos pelos trabalhadores da saúde para cumprimento das metas pode acarretar em uma série de erros médicos. Ou seja, a maior produtividade alegada pelo governador José Serra para justificar a aprovação da lei em discussão é uma grande falácia quando a análise se dá no impacto social e epidemiológico na saúde de uma determinada população atendida pelas OSs.
Soma-se a isto o fato de que, infelizmente, a representação sindical dos trabalhadores terceirizados quase inexiste ou é fragilizada por conta da alta rotatividade dos trabalhadores, que, ou são demitidos, ou se demitem pelas estressantes condições de trabalho, não estabelecendo nenhum vínculo com a população atendida, fato de tamanha importância para o seguimento do tratamento dos pacientes.
De maneira quase sádica, a superexploração do trabalhador é apontada como positiva em editorial do jornal “Folha de S. Paulo”, quando do debate do PLC 62/08. O jornal afirma que as OSs são boas porque trazem a “moderna contratação flexível”. Quanta hipocrisia! Na verdade, isso nada mais é do que precarização e redução de direitos dos trabalhadores.
Para os milhões de trabalhadores na informalidade, que dependem exclusivamente do setor público para ter acesso a algum serviço de saúde, as filas e as peregrinações para conseguir um atendimento qualquer tendem a se intensificar em função do atendimento seletivo dos hospitais administrados pelas OSs. Seu funcionamento é de “porta fechada” em muitos casos, o que inclusive tem gerado ações por parte do Ministério Público, no sentido de garantir a internação e o atendimento dos pacientes. Caso emblemático é do Hospital Estadual de Bauru, administrado pela OS Famesp.
O planejamento das políticas públicas de Saúde também fica prejudicado em função da inexistência de participação dos trabalhadores e usuários na sua formulação. Dessa forma, uma política que necessita de continuidade, até porque seus resultados dependem de uma escala temporal longa, fica a mercê da avaliação do Secretário Estadual de Saúde e da vontade das OSs em realizar tal e qual política lhes interessar, sem nenhum tipo de controle da sociedade.
O discurso da gestão é pura cortina de fumaça, o que se quer é privatizar o sistema. A gestão deve ser aperfeiçoada, mas isso se faz com plano de cargos e carreira, salários melhores, cursos de capacitação, democratização da gestão. Enfim, com um ambiente de trabalho saudável e uma boa carreira. Esses são os ingredientes essenciais para que os concursos públicos periódicos possam arregimentar os melhores quadros para a saúde pública.
Ter uma política de saúde digna tem um custo. E para um projeto de saúde sério será preciso investimento proporcional de recursos, não sendo razoável que gastemos, como está previsto para este ano, R$ 12 bilhões com toda a saúde pública estadual e R$ 8,8 bilhões com a rolagem dos títulos da dívida pública do Estado de São Paulo. Dívida esta que cresce a cada dia, mesmo com todo o arrocho sobre o funcionalismo e o processo predatório de privatizações que ainda está em curso. Enfim, como se diz no interior, “ou o veado morre ou a onça passa fome”.
Concluo com a tristeza de ver que o Ministério da Saúde do governo Lula copiou a proposta de São Paulo, em que pese sua tênue diferença, e enviou ao Congresso o Projeto de Lei 92/2007 (que cria em âmbito federal as fundações estatais de direito privado para que as mesmas possam administrar os hospitais públicos federais).
Na atual quadra da história a defesa do SUS e da consequente universalização da saúde só terá êxito se vier acompanhada da denúncia do regime político hegemônico implementado no Brasil no último período e ainda em curso. A perspectiva da implementação de um atendimento universal em saúde está na capacidade dos trabalhadores brasileiros conseguirem derrotar o metabolismo do Capital, e iniciarmos nossa caminhada ao Socialismo.
* Raul Marcelo é deputado estadual pelo PSOL/SP, líder da bancada na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo e foi sub-relator sobre organizações sociais da CPI sobre a Remuneração dos Serviços Médico-Hospitalares na Alesp, entre setembro de 2007 e junho de 2008.
Fonte: Caros Amigos