Lembranças de quem lutou pelo fim da ditadura e a instituição da democracia no Brasil
Sessão solene na segunda-feira, dia 31, na Câmara dos Deputados, marcou os 30 anos da Lei da Anistia. Segundo o deputado Chico Alencar, um dos proponentes, é uma sessão em nome da memória e do resgate das lutas do povo brasileiro. “Estamos aqui em nome daqueles que, numa página infeliz da nossa história, não inteiramente superada, sofreram demais, eles e suas famílias, eles e seus amigos”.
A Lei da Anistia (nº 6683/1979) foi promulgada no dia 28 de agosto de 1979 pelo então presidente João Figueiredo e perdoou os acusados de cometer crimes políticos entre 2 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979. “Celebrar a anistia é dizer que esse tipo de gesto, que durante um tempo terrível no País foi política de Estado, não pode ser aceito de jeito nenhum — nem ontem, nem hoje — nas nossas cadeias com os ditos presos comuns. A tortura não pode permanecer, é um crime imprescritível’, afirmou Chico Alencar.
O deputado citou matéria publicada pelo jornal O Globo do último domingo (30/08), que trata da prisão, em outubro de 1969, de Virgílio Gomes da Silva, o Jonas Borges, torturado e morto nos porões do Exército. Na época, relatório oficial, contou Chico Alencar, afirmava que ele reagiu à bala e tentou fugir ao indicar um aparelho da Aliança Libertadora Nacional. Hoje, a resposta obtida pelo jornal foi: O Centro de Comunicação Social do Exército informa que não existe documento na instituição que registre a ocorrência mencionada em sua mensagem.
“A mentira oficial era comum, uma prática da ditadura e também consolidava o regime obscurantista e de trevas. Pois agora — e essa é uma permanência que temos de combater — , o Exército simplesmente nega a existência desses documentos oficiais; nega o nosso direito à memória e à verdade histórica”, disse Chico Alencar.
Para o deputado Ivan Valente, a anistia não foi uma dádiva dos militares, mas o resultado de uma luta, uma mobilização social, uma conquista. “Foi o resultado, naquele momento de correlação de forças, do que era possível se fazer”.
Ivan Valente criticou que ainda torturadores da ditadura ainda estejam soltos, sem sofrer qualquer tipo de punição. “É inadmissível que ainda esteja nas ruas um Brilhante Ustra, comandante do DOI-CODI de São Paulo e torturador. Hoje continuam soltas pessoas que desapareciam com os presos políticos ou os matavam na cadeia, como foram mortos Manuel Fiel Filho e Wadimir Herzog. Não houve punição para torturadores. Trinta anos depois, ainda não abrimos os arquivos da ditadura militar. Trinta anos depois, as ossadas da guerrilha do Araguaia continuam sendo perseguidas”.
O deputado Ivan Valente lembrou também de Apolônio de Carvalho e Carlos Marighela. “Precisamos resgatar a memória do País, para que a juventude brasileira possa saber o que houve, quem lutou pela liberdade, quem trouxe democracia ao Brasil. Isso foi feito com muito sangue e muita luta, em nome de ideais que devem continuar a existir. Foram os socialistas, aqueles que queriam superar o regime iníquo do capitalismo, que vieram lutando contra o regime militar, que lutaram pela democracia no Brasil, que estiveram à frente dessa batuta. Essa luta continua na ordem do dia. Queremos democracia, solidariedade, igualdade social, valores que se construam numa nova sociedade”.
Da sessão solene também participaram o ministro Paulo Vannuchi, da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, Ophir Cavalcante Júnior, representante da Ordem dos Advogados do Brasil, e Carlos Moura, da Comissão de Justiça e Paz da Confederação Nacional dos Bispos do Brasil. A cantora Renata Jambeiro interpretou a música O bêbado e o equilibrista, composição de João Bosco e Aldir Blanc, considerada o hino da anistia. O poeta Pedro Tierra falou do livro Poemas do Povo da Noite, escrito entre os anos de 1972 e 1977, e que está sendo publicado por ocasião dos 30 anos da Anistia, e recitou o poema Marcha, escrito em 1979.
Venho da pátria dos tormentos.
Venho de um tempo de crimes.
Venho das chagas que a noite
lavrou na carne dos homens.
Não pedirei perdão
à corte dos meus carrascos
pelo grito de rebeldia
arrancado do meu sangue,
pelo sonho,
pelo sonho,
pelas armas,
pela marcha do meu povo
contra os muros!
Como se desata o cereal da terra,
levanto meu corpo de trigo
do corpo estendido de Orocílio Martins
sementeira de fúrias e esperanças ,
sangrando nas ruas rebeladas de Minas.
Liberto meu canto de pássaro
da voz impossível dos mortos:
luz acesa no porão da treva,
memória enterrada do povo.
E canto pela boca destroçada
do Comandante Carlos Marighella
dez séculos depois do silêncio;
pela garganta emudecida
de Mário Alves,
grito eterno que anda;
pelos olhos vazados
de Bacuri,
estrelas sangrando na memória;
pelas cabeças cortadas
no vale do Araguaia,
terra de rebelião;
pelo peito metralhado
do Capitão Carlos Lamarca,
granito de sonho enterrado
entre as pedras do sertão;
pelo corpo mutilado
de Manoel Raimundo Soares,
nas águas do Rio Guaíba,
sangue dos ventos do sul;
pelas mãos atadas de Alexandre,
arados de terra livre;
pelo sangue derramado
de Aurora Maria do Nascimento,
promessa de amanhecer.
E me faço boca
de todas as bocas
assassinadas,
canto de todos os cantos
aprisionados,
sonho de todos os sonhos
submergidos
pela mão armada
dos carrascos do meu povo.
Hoje, o Poder se absolve dos seus crimes.
Mantém à sombra dos seus muros
os açoites e as vergastas.
Recolhe sob a manga verde-oliva
as mãos ensanguentadas dos verdugos
e espera…
E as mães aflitas do povo
tecem nos cegos teares da dor
um espesso tecido de agulhas infinitas:
quem responderá pela morte
dos meus filhos?
Quem responderá pelos torturados
até a loucura?
Quem assassinou a esperança
de Frei Tito?
Quem prestará contas ao meu coração
pelo destino dos devorados?
Pelas vidas, pelos sonhos
que a Noite transformou em cruzes?
Hoje, o Poder se absolve dos seus crimes.
Recolhe sob a manga verde-oliva
as mãos ensangüentadas dos verdugos
e espera…
Do ventre fecundo
das filhas do povo,
das cinzas dos ranchos,
da terra queimada,
das marchas, das greves,
das ruas feridas
nascerão seus julgadores!
Foto: Luiz Alves / Agência Câmara