Carlos Nelson Coutinho – 1997
Coube-me, como tema de abertura deste seminário [Franca, 1997], falar sobre a atualidade de Gramsci. Irei me deter aqui em algumas das razões pelas quais, em minha opinião, Gramsci continua atual, talvez mais atual do que nunca. Digo “algumas” porque, decerto, são muitíssimas as razões que asseguram essa atualidade. É difícil encontrar um só campo do pensamento social — das ciências humanas até a arte e a literatura – para o qual Gramsci não tenha dado uma rica contribuição. Ele refletiu sobre todos esses campos, sugerindo novos temas, dando novas respostas a temas antigos, indicando novos caminhos de pesquisa e análise. Se essa contribuição é decisiva para os marxistas, pode-se constatar que também tem sido significativa para pensadores não marxistas. Quem conhece, por exemplo, a história da teologia da libertação, sabe que essa importante corrente de idéias foi profundamente influenciada pelas reflexões gramscianas. Os exemplos poderiam ser multiplicados. Nesse sentido, recomendo que se consulte na Internet uma esplêndida bibliografia gramsciana, compilada e organizada pelo norte-americano John M. Cammett, que registra mais de dez mil títulos sobre nosso autor, escritos por intelectuais de diferentes especialidades e orientações teórico- ideológicas, cerca de metade dos quais em línguas outras que não o italiano (1).
Mas cabe desde já uma observação necessária: a atualidade de Gramsci não é, simplesmente, a atualidade própria de todo pensador “clássico” (2). Decerto, no quadro da atual hegemonia neoliberal, não são poucos os que, mesmo no seio da esquerda, tentam mumificar Gramsci, transformando-o num mero “clássico”: ele seria atual, mas como todo clássico é atual. Decerto, também Maquiavel e Hobbes, por exemplo, são atuais: todo aquele que leu O Príncipe ou o Leviatã sabe que inúmeras reflexões feitas nessas obras continuam a ser importantes para compreender a política no mundo atual. Mas não é esse o tipo de atualidade de Gramsci: embora também já seja um “clássico”, a atualidade do autor dos Cadernos do cárcere – ao contrário daquela de Maquiavel ou de Hobbes – resulta do fato de que ele foi intérprete de um mundo que, em sua essência, continua a ser o nosso mundo de hoje. Um de seus temas centrais foi o capitalismo do século XX, suas crises e contradições, bem como a morfologia política e social gerada por essa formação social; nesse particular, os problemas que ele abordou continuam presentes, ainda que, em alguns casos, sob novas formas. E, em conseqüência, foram também objeto privilegiado de sua reflexão – Gramsci foi contemporâneo da gloriosa Revolução Russa de 1917 – os processos e os meios de superação dessa sociedade capitalista; boa parte de sua obra, assim, é dedicada à tentativa de conceituar os caminhos da revolução socialista no que ele chamou de “Ocidente”. Ora, precisamente porque o capitalismo e suas contradições permanecem, o socialismo continua a se pôr como uma questão central na agenda política contemporânea. Gramsci, desse modo, é um intérprete do nosso tempo: sua atualidade, portanto, não é a mesma de um Maquiavel ou de um Hobbes. O movimento aparentemente elogioso que visa a transformá-lo num simples “clássico” oculta, na verdade, uma dissimulação: é o movimento dos que, sem querer romper com Gramsci (por razões freqüentemente oportunistas), pretendem, contudo, desqualificá-lo como interlocutor privilegiado do debate político de nossos dias.
Como disse antes, penso que o âmbito da atualidade de Gramsci é muito vasto. Mas, por questões de limitação de tempo, irei me deter aqui em dois complexos problemáticos onde essa atualidade assume indiscutível importância (3). Em primeiro lugar, tentarei mostrar como as reflexões de Gramsci sobre o socialismo podem nos ajudar não só a compreender as razões do fracasso do modelo de socialismo imposto nos países que se intitularam “comunistas”, mas também – o que talvez seja mais importante — a elaborar um novo conceito de socialismo, mais adequado às condições e às demandas de nosso tempo. Em segundo lugar, pretendo ressaltar a sua atualidade na elaboração de uma teoria da democracia; Gramsci foi certamente, no interior do pensamento marxista, o autor que mais desenvolveu uma reflexão criativa e original sobre esse tema, reflexão que, de resto, parece-me capaz de fornecer preciosas pistas para superar muitos dos impasses em que se tem debatido até hoje a teoria democrática.
1. Um outro modelo de socialismo
Como disse antes, uma das principais razões da atualidade de Gramsci é sua original reflexão sobre o socialismo. Decerto, alguém poderia retrucar que o fato de ser socialista, longe de demonstrar sua atualidade, revelaria, ao contrário, quanto Gramsci é inatual. Com efeito, deparamo-nos hoje não simplesmente com a crise, mas com a comprovada falência do chamado “socialismo real”, cujo colapso, iniciado em 1989 com a queda do Muro de Berlim, levou de modo extremamente rápido ao abandono do socialismo em todos os países do Leste europeu e, finalmente, à desintegração da própria União Soviética. O que tem sido chamado, um pouco impropriamente, de “comunismo histórico” – ou seja, o movimento que se inicia com a vitória dos bolcheviques na Rússia em 1917, que tenta se universalizar com a construção de partidos comunistas ligados a esse modelo bolchevique em todo o mundo e que se expande, a partir da Segunda Guerra, com a formação de um “bloco socialista” constituído pelos vários países que seguiram o modelo soviético – esse “comunismo histórico” entrou numa crise que tudo indica ser uma crise terminal.
Ora, Gramsci foi certamente ligado – de modo estreito e orgânico — ao “comunismo histórico”. Já em 1917, defendeu com ardor a revolução bolchevique, como se pode ver em seu famoso artigo “A revolução contra O Capital” (4); além disso, em 1921, foi um dos fundadores do Partido Comunista da Itália, do qual era o principal dirigente em 1926, quando foi preso pelo fascismo; durante os anos de prisão e até sua morte, em 1937, manteve e aprofundou suas opções político-ideológicas. Contudo, embora se vinculasse ao movimento do “comunismo histórico” — o que lhe permitiu, de resto, conservar-se fiel aos valores emancipatórios do socialismo –, Gramsci nunca foi um dogmático: sempre respondeu de modo critico às vicissitudes de tal movimento, posicionando-se com freqüência contra muitas de suas orientações e tendências. Foi assim que, como logo veremos, Gramsci empreendeu, nos famosos Cadernos do cárcere, uma arguta e dura análise crítica do modelo de socialismo que estava sendo imposto na União Soviética. Além disso, não foram poucos os momentos, tanto antes como durante a prisão, nos quais revelou abertamente divergências com a linha adotada pelo movimento comunista (e, portanto, pelo seu próprio Partido) (5).
Mas, antes de prosseguir, caberia lembrar que essas críticas e discordâncias não autorizam de modo algum que se pretenda agora fazer de Gramsci um social-democrata, ou mesmo um liberal reformista, defensor da “regulação do mercado” e da “poliarquia” (6): ao contrário, ele foi e permaneceu, inclusive em suas críticas, um socialista revolucionário, um comunista. E isso certamente o torna atual para a esquerda, num momento em que muitos intelectuais – até mesmo se dizendo gramscianos – têm capitulando, teórica e praticamente, diante dos preconceitos gerados pela onda neoliberal. Mas a sua atualidade reside sobretudo no fato de que seu pensamento não reforça qualquer tentação anacrônica de regressar ao dogmatismo: como veremos, ele foi um comunista crítico, herético, o que lhe permitiu evitar a maior parte dos impasses teóricos e práticos gerados pelo chamado “comunismo histórico”.
Para exemplificar essa “heresia”, gostaria de recordar a célebre carta que Gramsci dirigiu em 1926,
pouco antes de sua prisão, ao Comitê Central do Partido Comunista da União Soviética (7). Nesse momento, travava-se no PCUS uma dura batalha política entre uma maioria, dirigida por Stalin e Bukharin, e uma minoria de oposição, liderada por Trótski e Zinoviev. Gramsci se preocupa com os rumos que essa luta interna está tomando e com suas conseqüências negativas para o movimento comunista internacional. Ele já se preocupa, em 1926, com o surgimento de tendências que mais tarde, sobretudo nos anos 30, iriam se consolidar sob a égide do terror stalinista.
Na carta, Gramsci certamente apóia a posição da maioria, ou seja, de Stalin e Bukharin, que defendiam o prosseguimento da “Nova Política Econômica” (NEP). Recordemos brevemente o que estava em jogo: pouco antes de morrer, Lenin — tendo compreendido com lucidez que o socialismo não pode ser imposto por decreto (como havia sido tentado, entre 1917 e 1921, na época do chamado “comunismo de guerra”, quando fora estatatizado o conjunto da economia e se suprimira administrativamente o mercado) — propôs uma nova política econômica, a qual, além de reconhecer o papel do mercado, baseava-se numa estratégia de construção do socialismo respaldada no consenso (as cooperativas no campo, por exemplo, só deveriam surgir quando desejadas pelos próprios camponeses), uma estratégia que, como na época observou realisticamente Bukharin, supunha uma evolução para o socialismo “a passos de tartaruga” (8). A NEP, no momento em que Gramsci escreve sua carta, era duramente contestada pela oposição trotskista-zinovievista, que defendia a “acumulação originária socialista”, isto é, uma política de industrialização acelerada respaldada na expropriação dos camponeses.
Gramsci apóia a posição da maioria, afirmando claramente que o socialismo deve se implantar com base no consenso e não na simples coerção. Seu argumento é claro: já que a base social do governo operário na URSS era formada majoritariamente pelos camponeses, tornava-se necessário, para a classe que estava no poder, obter o consenso desses camponeses; a tentativa de impor-lhes coercitivamente suas próprias posições (por exemplo, a coletivização da agricultura) minaria a estabilidade e a legitimidade do poder socialista. Para obter o consenso, o proletariado deveria renunciar aos seus interesses puramente econômico-corporativos, já que essa renúncia (como Gramsci repetirá ao longo de toda sua obra) é condição necessária de obtenção da hegemonia, ou seja, da direção política e intelectual sobre o conjunto da nação: “O proletariado – diz ele — […] não pode manter sua hegemonia e sua ditadura se, mesmo quando houver se tornado classe dominante, não sacrificar seus interesses imediatos aos interesses gerais e permanentes da classe”. É por isso que Gramsci apóia a NEP, emprestando-lhe ademais uma fundamentação teórica mais rica e complexa do que aquela proposta pelos líderes soviéticos que a defendiam.
Ora, como disse antes, essa política – a da NEP – era naquele momento defendida por Stalin e Bukharin. Mas, já em 1929, três anos após Gramsci ter redigido sua carta, Stalin muda de posição: depois de romper com Bukharin, ele adota, com um radicalismo ainda maior, a política proposta por Trotski, mas só depois de tê-lo derrotado politicamente e obrigado a deixar o território soviético. Com isso, Stalin passa a implementar medidas de coletivização forçada da agricultura, apoiadas numa duríssima repressão contra os camponeses. Sabe-se hoje que essa política voluntarista e duramente coercitiva – que o próprio Stalin chamou de “revolução pelo alto” – levou à morte cerca de 10 milhões de camponeses (9). Por outro lado, a industrialização acelerada promovida pelos famosos planos qüinqüenais, embora tenha tido importantes resultados quantitativos, produziu fome e gerou opressão sobre os trabalhadores urbanos. Conheceu-se assim, na URSS dos anos 30, um período de intensa superexploração da força de trabalho, tanto camponesa quanto operária. Tudo isso levou à construção de um regime de terror na União Soviética: consenso e hegemonia, que ainda tinham alguma presença na sociedade soviética dos anos 20, cederam definitivamente lugar à coerção e ao despotismo. Portanto, o apoio que Gramsci dá à “maioria” é, na verdade, não um apoio a Stalin, mas sim a Bukharin, que era o verdadeiro defensor da NEP, razão por que Stalin o derrubou em 1929 e assassinou em 1936. Desse modo, podemos concluir que a proposta de construção do socialismo através da busca incessante do consenso e da hegemonia — proposta formulada na carta de 1926 e reafirmada ao longo dos Cadernos — é radicalmente diversa daquela que predominou na União Soviética depois de 1930, quando Stalin assumiu o poder absoluto e instituiu uma variante pseudo-socialista de despotismo totalitário.
E é também significativo que, mesmo apoiando a “maioria”, Gramsci se posicione nessa carta contra o que ele chama de “stravittoria”, ou seja, contra uma “supervitória” que ultrapasse os limites normais de um confronto político entre companheiros. Os métodos que já estavam sendo usados, e que seriam reforçados drasticamente nos anos 30, não eram mais os adequados a um combate político entre companheiros que discordavam legitimamente — como até então ocorrera no Partido bolchevique –, mas passavam a implicar uma dura repressão terrorista, que transformava os divergentes em perigosos inimigos a eliminar. Gramsci adverte: “A unidade e a disciplina […] não podem ser mecânicas e impostas; devem ser leais e fruto da convicção, não as de um destacamento inimigo aprisionado ou cercado”. A partir de 1926, esses métodos de repressão à oposição, inclusive à oposição interna no próprio Partido Comunista, só fizeram crescer na URSS. Viveu-se naquele país, sobretudo nos anos 30, uma era de terrorismo aberto, dirigido particularmente contra os próprios bolcheviques; além de condenar à morte quase todos os companheiros de Lenin, os chamados “velhos” bolcheviques (Trótski, Bukharin, Zinoviev, Kamenev, Radek, etc.), Stalin fez prender ou matar cerca de dois terços do Comitê Central do PCUS eleito no Congresso de 1934. (De passagem, cabe observar que essa liquidação física dos leninistas parece indicar quão pouco Stalin era, como afirmava ser, um continuador de Lenin e de sua ação teórica e política.) Em suma, a carta de Gramsci revela não só uma discordância com a estratégia geral de construção do socialismo aplicada na URSS stalinista, mas também uma dura condenação dos métodos coercitivos e repressivos que essa errada estratégia converteu não em algo excepcional, mas numa trágica realidade cotidiana.
A recusa gramsciana do modelo soviético de construção do socialismo volta a se manifestar, com uma fundamentação teórica ainda mais complexa, numa nota contida nos Cadernos do cárcere, intitulada “Estatolatria” (10). Redigida em abril de 1932, essa nota refere-se claramente à União Soviética, embora Gramsci não o diga explicitamente. (Não o diz, certamente, porque – escrevendo no cárcere e sujeito à censura dos diretores da prisão – Gramsci evitava usar termos que pudessem chamar a atenção dos seus carcereiros-censores; é assim, entre outros disfarces, que fala em “filosofia da práxis” para dizer marxismo, em “sociedade regulada” como sinônimo de comunismo ou no “principal teórico moderno da filosofia da práxis” para se referir a Lenin.) Na referida nota, ele começa observando – e eu o cito literalmente — que “há duas formas com que o Estado se apresenta na linguagem e na cultura de épocas determinadas, ou seja, como sociedade civil e como sociedade política, como ”autogoverno” e como ”governo dos funcionários””. Desse modo, ao mesmo tempo em que recorda na nota sua conceituação dos dois níveis do Estado “ampliado” — a sociedade civil e a sociedade política (ou Estado strictu sensu) –, Gramsci parece aludir aqui, também, à importante distinç
ão que faz entre “Oriente” e “Ocidente”, entendidos os dois termos não em sentido geográfico, mas sim histórico-político: enquanto no “Oriente” o Estado seria tudo e a sociedade civil permaneceria primitiva e gelatinosa, para recordarmos suas próprias palavras, no “Ocidente” haveria, ao contrário, uma relação equilibrada entre os dois momentos da esfera pública ampliada (11).
“Estatolatria”, por conseguinte, seria todo movimento teórico ou prático dirigido no sentido de identificar o Estado apenas com a “sociedade política”, com os aparatos coercitivos, com o “governo dos funcionários”, omitindo ou minimizando o elemento consensual-hegemônico próprio da “sociedade civil”, do “autogoverno” – ou, em outras palavras, seria conceituar o Estado somente a partir das situações de tipo “oriental”. Ora, todo leitor da obra de Gramsci sabe que, quando se refere a “Oriente”, ele pensa sobretudo – ainda que não exclusivamente – na Rússia anterior à Revolução de 1917. Portanto, é evidente que ele se refere à União Soviética e à sua classe operária agora supostamente governante quando diz, sempre na nota que estamos comentando: “Para alguns grupos sociais, que antes da ascensão à vida estatal autônoma não tiveram um longo período de desenvolvimento cultural e moral próprio e independente (como ocorre na sociedade medieval e nos governos absolutistas [como o da Rússia]), um período de estatolatria é necessário e até mesmo oportuno: essa ”estatolatria” não é mais do que a forma normal de ”vida estatal”, ou, pelo menos, de iniciação à vida estatal autônoma e à criação de uma ”sociedade civil”, que não foi possível criar historicamente antes da ascensão à vida estatal independente”.
O texto citado é claro: já que a classe operária russa fez a revolução num país de tipo “oriental”, onde a sociedade civil ainda não fora historicamente criada e era assim primitiva e gelatinosa, compreende-se que ela e seu Partido, ao se tornarem governo, tivessem promovido num primeiro momento o fortalecimento do Estado, ou da “sociedade política”, ou do “governo dos funcionários”, já que isso era condição para romper com o atraso e empreender assim os primeiros passos para a construção de uma nova ordem. É como se Gramsci dissesse: numa sociedade “oriental”, de escassa ou nenhuma tradição democrática, é compreensível que a primeira manifestação de um governo socialista assuma traços ditatoriais (ou, para usarmos um dos termos menos felizes de Marx, que seja uma “ditadura do proletariado”), ainda que – como já vimos na carta de 1926 que há pouco comentamos — ele também defenda, ao mesmo tempo, a idéia de que essa “ditadura” não deve perder sua base consensual, sua dimensão hegemônica, sobretudo na relação com as massas camponesas.
Mas, embora reconhecendo a necessidade desse momento “estatolátrico” inicial – um reconhecimento que, como ele deixa claro, vale somente para os países de tipo “oriental” -, Gramsci especifica logo em seguida (e volto a citá-lo literalmente): “Todavia, essa ”estatolatria” não deve ser deixada a seu livre curso, não deve, em particular, tornar-se fanatismo teórico e ser concebida como ”perpétua”: deve ser criticada, precisamente para que se desenvolvam e se produzam novas formas de vida estatal, nas quais as iniciativas dos indivíduos e dos grupos seja ”estatal”, ainda que não devida ao ”governo dos funcionários” (ou seja, deve-se fazer com que a vida estatal se torne ”espontânea”) […]. O movimento para criar uma nova civilização, um novo tipo de homem e de cidadão, (…) [implica] a vontade de construir, no invólucro da sociedade política, uma complexa e bem articulada sociedade civil, na qual o indivíduo singular se autogoverne”.
Gramsci, também aqui, é claro: o socialismo que ele propõe não se identifica com o “governo dos funcionários”, com o domínio da burocracia, mas requer a construção de uma forte sociedade civil que assegure a possibilidade do autogoverno dos cidadãos, ou seja, de uma democracia plenamente realizada. Distinguindo-se dos social-democratas que se opuseram à revolução bolchevique e à União Soviética (Kautsky, Bernstein e tantos outros), Gramsci – tal como Rosa Luxemburg — defende a necessidade da revolução e se solidariza, ainda que criticamente, com seus primeiros passos. Mas, ao mesmo tempo, dissocia-se claramente dos rumos que a União Soviética começou a tomar a partir dos anos 30, quando a estatolatria se tornou “fanatismo teórico” e converteu-se em algo “perpétuo”, consolidando assim um “governo dos funcionários” que, ao reprimir a sociedade civil e as possibilidades do autogoverno democrático dos cidadãos, gerou um despotismo burocrático que nada tinha a ver com os ideais emancipadores e libertários do socialismo marxista. A transição para o socialismo foi assim bloqueada, dando lugar à gestação de uma sociedade definitivamente “estatolátrica”.
Portanto, nessa breve mas densa nota sobre “Estatolatria” (assim como em muitas outras passagens de sua obra), Gramsci nos propõe um outro modelo de socialismo, um modelo no qual o centro da nova ordem deve residir não no fortalecimento do Estado, mas sim na ampliação da “sociedade civil”, de um espaço público não estatal. Na “sociedade regulada” – o belo pseudônimo que encontrou para designar o comunismo –, Gramsci supõe (e volto a citá-lo) que “o elemento Estado-coerção pode ser imaginado como capaz de se ir exaurindo à medida que se afirmam elementos cada vez mais numerosos de sociedade regulada (ou Estado-ético, ou sociedade civil)” (12). Ora, como se sabe, as instituições próprias da sociedade civil são o que Gramsci chama de “aparelhos ”privados” de hegemonia”, aos quais se adere consensualmente; e é precisamente essa adesão consensual o que os distingue dos aparelhos estatais, do “governo dos funcionários”, que impõem suas decisões coercitivamente, de cima para baixo. Portanto, afirmar “elementos cada vez mais numerosos” de sociedade civil significa ampliar progressivamente o âmbito de atuação do consenso, ou seja, de uma esfera pública intersubjetivamente construída, fazendo assim com que as interações sociais percam cada vez mais seu caráter coercitivo. Socialismo significa para Gramsci – – como para Marx — o fim da alienação, da heteronomia dos homens diante de suas próprias criações coletivas; com a superação da alienação, abre-se a possibilidade de que os homens construam autonomamente a sua própria história e controlem coletivamente as suas relações sociais, o que para Marx significava o fim da “pré- história”. Ao mesmo tempo em que nega enfaticamente que a “sociedade regulada” possa ser concebida como um “novo liberalismo”, Gramsci insiste em sublinhar que “se trata do início de uma era de liberdade orgânica” (13): em outras palavras, de uma liberdade que seja não apenas “negativa”, aquela dos indivíduos privados em face do Estado, como na concepção liberal de liberdade, mas que seja também “positiva”, como na tradição democrática, isto é, uma liberdade que se expressa na construção autônoma e coletiva das regras e normas que modelam o espaço público da vida social.
Para acentuar a atualidade da definição do socialismo em Gramsci, penso ser oportuno cotejar suas posições com as de Jürgen Habermas, um pensador que desfruta hoje de justo prestígio entre os intelectuais de esquerda, na medida em que combate os mitos do pós-modernismo e do neoliberalismo em nome dos valores emancipatórios da tradição iluminista. Simplificando o pensamento habermasiano, diria que há nele dois tipos de interação social: as interações sistêmicas, que ele chama de “poder” e “dinheiro”, ou Estado-burocracia e mercado, que se impõem coercitivamente aos indivíduos e nas quais vigora uma racionalidade instrumental; e a interação comunicativa, própria do “mundo da vida”, na qual domina um outro tipo de racionalidade, fundada no livre consenso intersubjetivo. Politicamente, a propo
sta de Habermas pode ser assim (também esquematicamente) resumida: devemos lutar para que o mundo da vida não seja “colonizado” pelas interações sistêmicas, colonização que leva ao domínio de uma racionalidade reificada e coercitiva sobre a razão comunicativa, a qual é sempre construída intersubjetivamente (14). Trata-se de uma proposta certamente generosa, mas resignada e, em última instância, conformista: ainda que conseguíssemos evitar a colonização do “mundo da vida”, sua completa reificação – e os meios que Habermas sugere para isso me parecem utópicos e irrealistas –, somos convidados a nos resignar com a presença necessária do “poder” e do “dinheiro”, os quais, se não ultrapassarem os seus âmbitos específicos e se tornarem assim “colonizadores”, são considerados por Habermas como realidades próprias da modernidade, realidades que, segundo ele, podem ser limitadas, mas não superadas.
A proposta gramsciana é certamente mais radical: a “sociedade regulada” é nele concebida como a construção progressiva – Gramsci fala em “elementos cada vez mais numerosos” — de uma ordem social global fundada no consenso, no autogoverno, na qual a esfera pública intersubjetiva (a “sociedade civil”) subordina e absorve em si o “poder” e o “dinheiro”, isto é, o Estado-coerção e o mercado. E Gramsci, além disso, parece-me mais realista do que Habermas: ele sabe que essa vitória do consenso sobre a coerção – a construção de um espaço público comunicativo livre de coerção, nas palavras de Habermas, ou de uma “sociedade regulada”, nos seus próprios termos – depende de um complexo processo de lutas sociais, capaz de conduzir à progressiva eliminação da sociedade dividida em classes antagônicas, ou seja, do principal obstáculo para que os homens possam efetivamente regular de modo consensual as suas interações sociais. A imagem da “boa sociedade” proposta por Gramsci, desse modo, parece-me ao mesmo tempo mais radical e mais realista do que aquela proposta por Habermas.
2. Uma concepção radical de democracia
Esse novo modelo de socialismo implica em Gramsci, como já venho sugerindo, uma nova visão de democracia, nova não só em relação à tradição marxista, mas também – e sobretudo – em relação à tradição liberal. Por um lado, no seio do “comunismo histórico”, movimento ao qual ele se vinculou, poucas vezes se foi além de uma visão instrumental da democracia. Lenin, por exemplo, costumava defini-la como a “melhor forma de dominação burguesa”; ou, quando falava positivamente em “democracia proletária” (conselhista ou de base), insistia em contrapô-la à “democracia burguesa” (representativa ou parlamentar), introduzindo assim uma disjunção altamente problemática, se recordarmos que a “democracia representativa” também é uma conquista dos trabalhadores (basta pensar nas lutas da classe operária pelo sufrágio universal) (15). No melhor dos casos, o “comunismo histórico” concebeu a democracia como um caminho para o socialismo, e não como o caminho do socialismo. E, por outro lado, quando o pensamento liberal finalmente adotou de modo positivo a palavra “democracia” (depois de tê-la explicitamente combatido durante boa parte dos séculos XVIII e XIX), definiu-a de modo minimalista, ou seja, como o simples respeito por “regras do jogo” também elas minimalistas, as quais, por isso mesmo, não punham em discussão os fundamentos substantivos da ordem social. Basta recordar aqui a emblemática definição de democracia num pensador liberal como Schumpeter, para o qual democracia não seria mais do que um simples método de seleção das elites através de eleições periódicas (16).
A reavaliação gramsciana da democracia não se liga assim nem ao pensamento liberal nem ao “comunismo histórico”, mas remete diretamente aos clássicos da filosofia política, em particular a Rousseau e Hegel. Penso não estar enganado quando afirmo que Gramsci reintroduziu no seio do pensamento marxista a problemática do contratualismo, não tanto em sua versão liberal (ou lockeana), mas precisamente na versão democrático- radical proposta por Rousseau (17). Embora Gramsci tenha sido o pensador marxista que mais desenvolveu essa problemática contratualista, não devemos esquecer que ela já havia sido sugerida pelo próprio Engels, em 1895, no ano da sua morte. Num texto em que propõe explicitamente uma autocrítica das formulações que ele e Marx haviam defendido em 1948, no Manifesto comunista, e depois de sugerir uma nova estratégia de transição para o socialismo – que, fundada num “trabalho longo e perseverante” no seio das instituições, antecipa também a estratégia gramsciana da “guerra de posição” –, o velho Engels afirma o seguinte: “O Império Alemão, como (…) todos os Estados modernos, é produto de um contrato; primeiramente, de um contrato dos príncipes entre si e, depois, dos príncipes com o povo” (18). Sem que tenha abandonado o núcleo da teoria marxista do Estado, que afirma a sua natureza de classe e sua dimensão coercitiva, Engels recolhe aqui uma outra determinação do fenômeno estatal, ou seja, a sua dimensão contratualista (ou consensual), dimensão já presente nas teorias liberais (particularmente em Locke), mas que ganha um tratamento radicalmente democrático na obra de Rousseau.
Penso que a contribuição de Gramsci à teoria democrática tem sua expressão mais destacada no conceito de hegemonia. E penso também que é precisamente esse conceito o principal ponto de articulação entre as reflexões gramscianas e alguns dos mais significativos complexos problemáticos da filosofia política moderna, em particular os que estão contidos nos conceitos de vontade geral e de contrato. É claro que não pretendo negar a óbvia vinculação de Gramsci com o marxismo, mas creio que – na construção de sua teoria da hegemonia – ele dialogou não apenas com Marx e Lenin, ou com Maquiavel, o que fez explicitamente, mas também com outras grandes figuras da filosofia política moderna, em particular com Rousseau e com Hegel (19). Essa interlocução permitiu a Gramsci resgatar uma dimensão fundamental do enfoque histórico-materialista da práxis política, nem sempre explicitada por Marx e Engels, ou seja, a compreensão da política como esfera privilegiada de uma possível interação consensual intersubjetiva. Ora, ainda que Rousseau não seja citado muitas vezes na obra de Gramsci, pode-se registrar a presença nessa obra de muitos temas semelhantes aos abordados pelo autor do Contrato social; penso, sobretudo, no fato de que há em Gramsci um conceito análogo ao de “vontade geral”, central na obra do genebrino, ou seja, o conceito de “vontade coletiva”, repetidamente invocado pelo pensador italiano. Quanto a Hegel, trata-se de um dos autores mais citados por Gramsci, que dele recolhe não apenas o estímulo inicial para a elaboração do seu específico conceito de “sociedade civil” (20), mas também a noção de “Estado ético”, com a qual, como vimos, identifica a sua concepção de “sociedade regulada” ou comunista.
Ora, uma das principais características do conceito gramsciano de hegemonia é a afirmação de que, numa relação hegemônica, expressa-se sempre uma prioridade da vontade geral sobre a vontade singular ou particular, ou do interesse comum ou público sobre o interesse individual ou privado; isso se torna evidente quando Gramsci diz que hegemonia implica uma passagem do momento “econômico-corporativo” (ou “egoístico- passional”) para o momento ético-político (ou universal). Não vou aqui insistir sobre o fato de que essa prioridade do público sobre o privado, ou o predomínio da “vontade geral”, é – para além da definição das necessárias “regras do jogo” – a essência da democracia, do republicanismo. Essa prioridadade, que já é decisiva na definição aristotélica do “bom governo”, reaparece com força no pensamento moderno. Em Rousseau, por exemp
lo, tal prioridade se torna não apenas uma questão central e uma tarefa dirigida para o presente, mas aparece também como o critério decisivo para avaliar a legitimidade de qualquer ordenamento político-social. Não é casual, assim, que surja em sua obra um conceito fundamental para a teoria democrática, o conceito de “volonté générale”, que não existe na tradição liberal; nessa tradição, temos apenas, quando muito, o conceito de “vontade de todos”, entendido – nas palavras do próprio Rousseau – como soma dos muitos interesses privados ou particulares. Também na filosofia política de Hegel, outro pensador situado fora da tradição liberal, o conceito de vontade geral ou universal ocupa um posto central, tornando-se o fundamento da defesa hegeliana da prioridade do universal sobre o singular, do público sobre o privado; mas, comparado com Rousseau, Hegel se distingue por dar uma maior atenção à dimensão da particularidade no mundo moderno, ou seja, às mediações que intercorrem entre a vontade universal e as vontades singulares ou individuais.
Ora, se o grande mérito de Rousseau reside na afirmação da prioridade da vontade geral enquanto fundamento de toda ordem social legítima (republicana ou democrática), o ponto débil de sua reflexão consiste na pressuposição de que essa vontade geral é algo que se contrapõe drasticamente às vontades particulares e, em última instância, as reprime (os homens devem “ser obrigados a ser livres” a fim de que ajam segundo a vontade geral). Em Rousseau, a vontade geral não é um potenciamento ou um aprofundamento das vontades particulares, mas o seu contrário. Permito-me usar metaforicamente um conhecido conceito de Freud: é como se a relação entre a “vontade geral”, entendida como um “super-ego”, e a vontade particular, apresentada como um “inconsciente” rebelde, fosse uma relação de “recalque” ou “repressão” da segunda pela primeira. Desse modo, ainda que, como bom democrata, Rousseau afirme enfaticamente a prioridade do “cidadão” (universal) sobre o “burguês” (egoísta), ele reconfirma com isso a dilaceração do homem entre esses dois extremos de uma dicotomia insuperada. E, como o jovem Marx já havia observado, é portanto natural que o “recalcado” retorne, ou, mais precisamente, que os interesses particulares da sociedade civil-burguesa terminem por triunfar sobre a universalidade do cidadão (21).
Creio que, na obra de Hegel, há uma clara proposta de superação dessas limitações do pensamento de Rousseau, mas que se mistura ao mesmo tempo com o abandono de algumas importantes conquistas teóricas do pensador genebrino. Depois de ter sido, em sua juventude, um republicano rousseauísta, Hegel evolui para a maturidade ao reconhecer que o mundo moderno – diferentemente da Grécia clássica, que fora o modelo de Rousseau e seu próprio paradigma juvenil – caracteriza-se pela posição central que nele ocupa a particularidade, ou, mais precisamente, pela emergência do que o filósofo alemão passou a chamar de “sociedade civil”, ou o “sistema da atomística”. Ao contrário dos liberais, Hegel busca articular essa afirmação da particularidade com o princípio republicano da prioridade do público sobre o privado; mas, ao mesmo tempo, divergindo nisso de Rousseau, tem plena consciência de que a pura e simples repressão da particularidade é incompatível com o espírito da época moderna. Também Hegel, portanto, vê que existem contradições entre o privado e o público, entre o particular e o universal, mas pensa que o modo de resolver tais contradições não é a “repressão” freudiana, mas sim uma superação dialética das vontades particulares, ou “social-civis”, na vontade universal, ou “estatal”.
Para promover essa superação dialética, Hegel criou o conceito de “eticidade”, ou de “vida ética”, que seria a esfera social onde surgem valores comunitários ou universais, oriundos da inserção dos indivíduos em interações sociais objetivas e não apenas de sua moralidade subjetiva; com isso, ele pretende determinar, ou atribuir dimensão concreta, à noção de vontade geral, que em Rousseau permanece ainda abstrata e formal. Para Hegel, portanto, a vontade geral não é resultado da ação de vontades singulares “virtuosas”, como em Rousseau, mas é uma realidade ontológico-social que antecede e determina as próprias vontades singulares. E essa objetividade da vontade geral provém do fato de que são também objetivas as mediações que intercorrem entre os dois níveis da vontade: é através sobretudo da ação das “corporações”, um sujeito coletivo que ele situa já no nível da sociedade civil (e que se aproxima muito dos sindicatos modernos), que Hegel busca determinar a relação interna entre a vontade singular dos “átomos” da sociedade civil e a vontade universal que, segundo ele, se expressaria no Estado.
Mas, se essa tentativa de determinar concretamente a vontade geral é um passo à frente em relação a Rousseau, há outros momentos em que Hegel – do ponto de vista da construção de uma teoria democrática – recua claramente em relação ao autor do Contrato social. Não penso tanto nas posições claramente “datadas” da filosofia política de Hegel, como a defesa de uma monarquia hereditária, de uma Câmara Alta formada pelos nobres, ou a condenação da soberania popular e da representação política fundada na idéia de “uma cabeça, um voto”. Penso, sobretudo, no fato de que – ao se empenhar corretamente na tentativa de superar o moralismo abstrato presente no conceito rousseuniano de vontade geral – Hegel foi levado a abandonar a dimensão contratualista (ou consensual-intersubjetiva) que está no centro da proposta democrática de Rousseau: como se sabe, o autor da Filosofia do direito foi um duríssimo crítico de qualquer espécie de contratualismo. Assim, ao combater o subjetivismo de Rousseau, Hegel termina por adotar um objetivismo igualmente unilateral – ele chega mesmo a dizer que “a vontade objetiva [geral] é o racional em si no seu conceito, seja ela ou não conhecida pela vontade singular e seja ou não desejada pelo querer dessa” (22) –, com o que claramente minimiza a dimensão intersubjetiva e criadora da práxis humana e, em particular, da práxis política.
Ora, na obra de Gramsci, particularmente no seu conceito de hegemonia, pode-se perceber uma assimilação do que há de mais válido e lúcido nas reflexões de Rousseau e de Hegel; mas, ao mesmo tempo, podem-se também registrar fecundas indicações sobre o modo pelo qual superar os limites e aporias desses dois notáveis filósofos. Por um lado, Gramsci recolhe de Hegel (e, naturalmente, de Marx, que, por sua vez, também bebe na fonte hegeliana) a idéia de que as vontades são determinadas já no nível dos interesses materiais e econômicos; e dele recolhe ainda a afirmação de que essas vontades passam objetivamente por um processo de universalização que leva à formação de sujeitos coletivos (as “corporações” hegelianas se tornam em Gramsci os “aparelhos ”privados” de hegemonia”). Tais sujeitos são movidos por uma vontade cada vez mais universal (ou, na terminologia gramsciana, eles superam a afirmação de interesses meramente “econômico-corporativos” e se orientam no sentido de uma consciência “ético-política”). Esse movimento de superação, ao qual Gramsci deu o sugestivo nome de “catarse” (23), é precisamente o que configura uma relação de hegemonia. Mas, por outro lado, pode-se também constatar que Gramsci – na medida em que define como consensual a adesão a tais “aparelhos de hegemonia” e os inclui no seio do próprio Estado “ampliado” ou os transforma no centro da futura “sociedade regulada” – introduz uma clara dimensão contratual no coração da esfera pública, com o que retoma uma noção rousseauniana abandonada por Hegel. Assim, se Gramsci recolhe de Hegel a noção de “eticidade” (que nele aparece com os nomes de “hegemonia” ou de “ético-político”), recolhe ao mesmo tempo de Rousseau a concepção da política como contrato,
como construção intersubjetiva de uma “vontade geral” (que nele recebe o nome de “vontade coletiva nacional-popular”).
Decerto, para Gramsci, a realização da dimensão contratual da política só se realizará plenamente no que ele chama de “sociedade regulada” (ou comunista), isto é, quando for definitivamente superada a divisão da sociedade em classes sociais antagônicas; contudo, já que ele defende a estratégia da “guerra de posições” na luta pelo socialismo, o que implica uma conquista progressiva de espaços, é possível dizer que o processo de ampliação das esferas consensuais já tem lugar mesmo antes do pleno estabelecimento da “sociedade regulada”, sendo precisamente através desse processo que vai se concretizando a construção de uma nova hegemonia. Para o autor dos Cadernos, como vimos, a própria construção do comunismo é algo que ocorre de modo progressivo, graças – recordemos as suas palavras – à “introdução de elementos cada vez mais numerosos de sociedade civil”. Assim como Freud dizia que, no lugar do “inconsciente”, devemos nos empenhar para colocar o “ego”, Gramsci parece dizer: no lugar da coerção, quer ela provenha do Estado ou do mercado, do “poder” ou do “dinheiro”, devemos pôr cada vez mais esferas de consenso, de controle intersubjetivo das interações sociais, ou seja, devemos ir assim construindo uma ordem social cada vez mais contratual e menos coercitiva.
Não me parece casual que as conclusões a que chegamos na primeira parte, quando falamos da concepção gramsciana do socialismo, sejam análogas às que surgem agora, quando resumimos sua teoria da democracia. Ao propor um conceito substantivo de democracia, centrado na afirmação republicana do predomínio consensual (hegemônico!) do público sobre o privado, e ao identificar esse conceito de democracia com sua noção de “sociedade regulada” ou comunista, Gramsci nos ensina – superando tanto a tradição do “comunismo histórico” quanto aquela do liberalismo em suas várias versões – que, se sem democracia certamente não há socialismo, tampouco existe plena democracia sem socialismo. A compreensão desse vínculo indissolúvel entre socialismo e democracia é certamente uma das principais razões da atualidade de Antonio Gramsci, que – sessenta anos depois de sua morte – continua a ser um dos mais influentes pensadores do nosso tempo.
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Carlos Nelson Coutinho é professor titular da UFRJ.
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Notas
(1) Parte substantiva desse acervo está reproduzida em John M. Cammett, Bibliografia gramsciana 1922-1988, Roma, Riuniti, 1991; e John M. Cammett e Maria Luisa Righi, Bibliografia gramsciana. Supplement updated to 1993, Roma, Fondazione Istituto Gramsci, 1995. O endereço eletrônico do Ressources on Antonio Gramsci, onde se encontra a bibliografia gramsciana, é www.soc.qc.edu/gramsci/index.html.
(2) “”Clássico” é um interpréte de seu próprio tempo que permanece atual em qualquer tempo” (Valentino Gerratana, Gramsci. Problemi di metodo, Roma, Riuniti, 1997, p. XI).
(3) Tentei demonstrar essa atualidade no terreno específico das ciências sociais em meu ensaio “Gramsci, o marxismo e as ciências sociais”, agora in C.N. Coutinho,Marxismo e política. A dualidade de poderes e outros ensaios, São Paulo, Cortez, 1996, p. 91-120. No que se refere à atualidade de Gramsci para o Brasil, remeto aos meus textos “As categorias de Gramsci e a realidade brasileira” (in C.N. Coutinho, Gramsci. Um estudo sobre seu pensamento político, Rio de Janeiro, Campus, 1989, pp. 119-137) e “A recepção de Gramsci no Brasil” (in Id., Cultura e sociedade no Brasil, Belo Horizonte, Oficina do Livro, 1990, p. 199-213).
(4) Cf. a edição brasileira desse artigo em “Textos selecionados de Gramsci”, in C.N. Coutinho, Gramsci, Porto Alegre, L&PM, 1981, p. 135-8.
(5) Sobre isso, cf., entre outros, Paolo Spriano, Gramsci in carcere e il Partito, Roma, Riuniti, 1977.
(6) São, por exemplo, inteiramente indefensáveis, à luz da letra dos textos gramscianos, as seguintes afirmações recentes de um intelectual italiano: “[Gramsci] começa a captar a mutação dos sujeitos fundamentais da história e a necessidade de abandonar o esquema leniniano classe- organização-revolução, que se tornou inadequado numa realidade mundial marcada não pelas dificuldades que a revolução eventualmente encontraria, mas pela sua inatualidade (se não inutilidade), colocando-se agora o problema do governo da economia de mercado, ou do governo dos modos de penetração e difusão da forma-mercadoria em setores e territórios cada vez mais novos, e não certamente o de sua superação-anulação. […] O ”moderno Príncipe” (…) é um organismo funcional à formação e ao crescimento de uma sociedade poliárquica” (Marcello Montanari, “Introduzione” a A. Gramsci, Pensare la democrazia. Antologia dai “Quaderni del carcere”, Turim, Einaudi, 1997, p. XI e XXXVII; os grifos são do autor).
(7) Importantes excertos dessa carta estão reproduzidos em “Textos selecionados de Gramsci”, cit., p. 170-5. Como se sabe, Togliatti – o destinatário imediato da carta – não a entregou ao Comitê Central do PCUS, por considerá-la “pouco firme” na defesa das posições da maioria; essa decisão foi duramente criticada por Gramsci, que acusou Togliatti de “burocratismo”. A íntegra da carta enviada ao CC do PCUS, da resposta de Togliatti e da tréplica de Gramsci podem ser lidas em A. Gramsci, La costruzione del Partito comunista 1923-1926, Turim, Einaudi, 1974, p. 124-37.
(8) Uma meticulosa análise das polêmicas travadas nesse período pode ser lida em Stephen Cohen, Bukharin. Uma biografia política, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1990, p. 147 s.
(9) Sobre esse trágico período da história soviética, cf. o documentado livro de Fabio Bettanin, A coletivização da terra na URSS. Stalin e a “revolução pelo alto” (1929-1933), Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1981.
(10) Antonio Gramsci, Quaderni del carcere, Turim, Einaudi, 1975, p. 1.020-1. Essa nota não está contida nos volumes temáticos dos Cadernos já publicados no Brasil, mas pode ser lida em “Textos selecionados de Gramsci”, cit., p. 194-5.
(11) Para uma melhor explicitação das categorias gramscianas, permito-me remeter a C.N. Coutinho, Gramsci. Um estudo sobre seu pensamento político, cit.
(12) A. Gramsci, Quaderni, cit., p. 764 [ed. brasileira: Maquiavel, a política e o Estado moderno, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1968, p. 150].
(13) Ibid.
(14) Para o leitor interessado num primeiro e breve contato com as posições políticas habermasianas, recomendo o seu ensaio “La revolución recuperadora”, in Jürgen Habermas, La necesidad de revisión de la izquierda, Madri, Tecnos, 1991, p. 251-317.
(15) Desenvolvi esse tema em vários dos meus trabalhos, particularmente em “Democracia e socialismo: questões de princípio”, in C.N. Coutinho, Democracia e socialismo, São Paulo, Cortez, 1992, p. 13-46; e “Os marxistas e a ”questão democrática””, in Id., Marxismo e política, cit., p. 71-89.
(16) Joseph A. Schumpeter, Capitalismo, socialismo e democracia, Rio de Janeiro, Zahar, 1984, p. 336-53. Sobre o esvaziamento (teórico e prático) do conceito de democracia no liberalismo, cf. o excelente livro de Domenico Losurdo, Democrazia o bonapartismo. Trionfo e decadenza del suffragio universale, Turim, Bollati Boringhieri, 1993, passim.
(17) Cf. C.N. Coutinho, “Vontade geral e democracia em Rousseau, Hegel e Gramsci”, in Id., Marxismo e política, cit., p. 121-42.
(18) Friedrich Engels, “Introdução” [de 1895] a Karl Marx, “As lutas de classe na França”, in K. Marx e F. Engels, Obras escolhidas, Rio de Janeiro, Vitória, vol. 1, 195
6, p. 121-2. Sobre a “autocrítica” engelsiana, cf. C.N. Coutinho, “A dualidade de poderes: Estado e revolução no pensamento marxista”, in Id., Marxismo e política, cit., p. 25-9.
(19) Os argumentos que apresento em seguida estão mais amplamente desenvolvidos em meus ensaios “Vontade geral e democracia em Rousseau, Hegel e Gramsci”, cit.; “Crítica e utopia em Rousseau”, Lua Nova. Revista de cultura e política, São Paulo, Cedec, nº 38, 1996, p. 5-30; e “Hegel e a democracia”, Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo, coleção “Documentos”, série especial, 1.6, julho de 1997.
(20) Cf., por exemplo, a nota sobre “Hegel e o associacionismo”, in A. Gramsci, Quaderni, cit., p. 56-7 [ed. brasileira: Maquiavel, cit., p. 145-6], na qual o pensador italiano inicia as reflexões que o levarão em seguida a elaborar o conceito de “sociedade civil”.
(21) Cf. Karl Marx, La questione ebraica e altri scritti giovanili, Roma, Riuniti, 1974, p. 45-88.
(22) G.W.F. Hegel, Grundlinien der Philosophie des Rechtes, Frankfurt am Main, Suhrkamp, 1995, p. 258, p. 401.
(23) A.Gramsci, Quaderni, cit., p. 1244 [ed. brasileira: Concepção dialética da história, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1966, p. 53].
Fonte: Especial para Gramsci e o Brasil.