Por Raquel Rolnik e Kazuo Nakano
A mobilização de investimentos públicos na indústria da construção civil tem sido uma das soluções keynesianas para momentos de crise econômica. Porém, existem armadilhas perigosas se a solução encontrada for um pacote habitacional baseado somente na ampliação do acesso ao crédito para a compra de produtos imobiliários, associada à desoneração da indústria da construção, sem conexão com nenhuma estratégia de planejamento urbanístico, fundiário e institucional.
É perigoso confundir política habitacional com política de geração de empregos -as quais, embora tenham relações óbvias, não são sinônimos.
Construir moradias é produzir cidades. O risco é transformarmos o sonho da casa própria em pesadelos de cidades apartadas e insustentáveis. No Brasil a faixa de renda familiar mensal inferior a três salários mínimos concentra 90% do déficit habitacional. Desde 2005 têm aumentado os recursos habitacionais para setores de menor renda. Em 2007, um excelente ano para o setor imobiliário, das 500 mil unidades financiadas no país, 50% das novas casas e apartamentos foram para famílias com renda superior a cinco salários mínimos mensais. Da parcela financiada com recursos do FGTS, 61% foram para famílias de baixa renda. Porém, metade dos financiamentos acessados por essas famílias foi para compra de materiais de construção usados em loteamentos precários e favelas, sem assistência técnica que pudesse garantir construções seguras e de qualidade.
O resultado foi o adensamento nas favelas e periferias e uma sobreoferta de unidades habitacionais para a demanda de renda média que permanecem “encalhadas”, engrossando o número de imóveis vazios, hoje quase em mesmo número do que o do chamado “déficit habitacional”.
Provavelmente, é parte desse estoque que o pacote pretende salvar com uma de suas medidas mais perversas -o uso de recursos subsidiados, do FGTS, para financiar imóveis de R$ 500 mil.
A grande disponibilidade de crédito gerou uma explosão nos preços de terrenos, “empurrando” o mercado de baixíssima renda para a informalidade.
Na equação proposta agora, o governo subsidiaria fortemente a compra dos produtos imobiliários para essas famílias. Na prática, sem regulação no mercado de terras, o subsídio será integralmente engolido pelos proprietários de terrenos (inclusive pelas incorporadoras que fizeram grandes estoques nos últimos anos).
Uma política de ampliação do direito à moradia deve ser focalizada nas necessidades habitacionais das populações de baixíssima renda -que não podem ser atendidas por um modelo único, baseado na compra individualizada de um produto imobiliário. É preciso criar serviços habitacionais como o aluguel subsidiado e a assistência técnica articulada com a promoção habitacional por autogestão ou a compra de materiais de construção, além de modalidades que incluam a reabilitação de edifícios existentes localizados em espaços urbanos consolidados, em especial nos centros das cidades, aproveitados para moradias populares, evitando a criação de guetos nas periferias e enormes impactos ambientais e na mobilidade urbana.
Hoje é viável lançar um pacote de desenvolvimento urbano estruturado sobre uma verdadeira política habitacional. O Estatuto da Cidade, a lei nº. 11.124/2004 – que institui o Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social e o Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social, a Lei da Assistência Técnica e o Plano Nacional de Habitação- recentemente formulado – permitem avançar significativamente em outras direções.
Ignorá-los solenemente no momento de lançar um grande investimento público em moradia é, além de desprezar 30 anos de conquistas político-institucionais, repetir os erros do passado.
No Brasil, onde as cidades são marcadas por profundas desigualdades e exclusões socioterritoriais, o principal sentido dos processos de produção de moradias é engendrar urbanidades que garantam o bem-estar e o desenvolvimento das pessoas. Estamos diante de uma bela oportunidade. Um milhão de moradias? Sim. Mas onde, como e para quem?
RAQUEL ROLNIK , arquiteta urbanista, é professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP e relatora especial para o Direito à Moradia da ONU.
KAZUO NAKANO , arquiteto urbanista do Instituto Pólis, é doutorando do
Núcleo de Estudos Populacionais da Universidade de Campinas.
Fonte: Jornal Folha de São Paulo, 17/07/2009.