No começo de 2014 observamos nos jornais de todo país uma enxurrada de notícias sobre a eminente crise de abastecimento hídrico da maior cidade da América do Sul devido ao baixo nível dos reservatórios que compõe o sistema Cantareira, principal sistema de abastecimento da região metropolitana de São Paulo e outros 12 municípios – dentre eles Piracicaba e Campinas – e responsável pelo fornecimento de água para cerca de 14 milhões de pessoas.
Por Andreia Bianchi e Dante Peixoto
Os níveis dos reservatórios que compõe o sistema Cantareira iniciaram o ano já em baixa, uma média de 25% da capacidade total de armazenamento, e, somando a esse problema à ausência de chuvas neste verão, chegamos ao cenário alarmante de possibilidade de escassez de água para cerca de 30% da população do estado de São Paulo já no mês de maio, com grande probabilidade de adoção de racionamento na região. Mas será mesmo que os principais culpados pela crise da água são o Aquecimento Global, São Pedro ou o fulano que não fecha a torneira ao escovar os dentes?
A grande mídia não conseguiu esconder que algo além da falta de chuvas é responsável por essa situação, como se observa em manchetes como “Cantareira registra chuvas abaixo da média há 2 anos” (Folha de São Paulo – 29 de março), “Consumo de água cresce mais que produção” (Folha de São Paulo – 3 de abril) e “Crise de abastecimento era tragédia anunciada” (Le Monde Diplomatic – maio). Observando a situação mais de perto, percebe-se que o centro da questão está na gestão dos recursos hídricos do estado de São Paulo, que desde 1995 está sobre o comando do PSDB.
DESMONTE DA SABESP
É claro que os eventos climáticos deste verão contribuíram para agravar a crise, mas a própria Sabesp já alertava, em 1994, para um provável período de escassez após realizar uma análise do regime hídrico e sua série estatística, recomendando que a companhia se preparasse para esse momento. Entretanto, nessa mesma época a Sabesp começava a aderir ao modelo administrativo neoliberal, enfiado goela abaixo dos serviços públicos paulistas pelos tucanos, promovendo mudanças nos quadros da companhia e lotando de economistas e administradores de empresa setores estratégicos como gerências de operação e superintendências regionais. Ou seja, a Sabesp, através da política do Governo do Estado de São Paulo, é transformada em uma empresa que visa o lucro antes de qualquer coisa e deixa de lado a ideia do saneamento como uma importante questão para a saúde pública, tendo a água como um mero produto distribuído pela companhia.
Dez anos mais tarde, em 2004, houve uma série de seminários para debater a crise do sistema Cantareira ocorrida em 2003. Nesse momento, diversos especialistas apontaram para a necessidade de ampliar a disponibilidade de água do sistema, indicando que o melhor caminho para isso era buscar água no Vale do Ribeira através de uma obra que demoraria aproximadamente 10 anos para ser estudada, projetada e concluída, mas que, caso tivesse sido realizada, não haveria problema de escassez de água em 2014.
Apesar disso, o que se viu nos anos 2000 foi um aprofundamento ainda maior da política da água como uma mercadoria e da companhia a serviço do mercado e de interesses políticos escusos, com diretorias indicadas por interesses políticos nefastos, sem nenhuma abertura para um planejamento técnico sério e vinculado às necessidades da população. Prova disso é o quadro funcional da Sabesp, reduzido de 21 mil trabalhadores para 14 mil. Em particular o setor de engenharia e operação foi enxugado a ponto de, atualmente, várias unidades terem um quadro reduzidíssimo de técnicos capacitados para a atividade fim da companhia. Por outro lado, no último balanço divulgado pela Sabesp foi comemorado um lucro de 1,9 bilhões de reais da companhia, mostrando que do ponto de vista mercadológico a empresa vai bem.
Com o agravamento no quadro de abastecimento hídrico de São Paulo – que veio a se tornar a pior crise em 84 anos – a Sabesp, em conjunto com o Governador Alckmin, tomaram medidas pouco eficazes na tentativa de remediar a crise, tentando evitar um racionamento de água que certamente teria um impacto negativo nas urnas no mês de outubro. Em um primeiro momento, propuseram um bônus de 30% na conta de água das famílias que reduzissem seu consumo em 20%, o que resultaria num total de 50% de economia para o bolso dos paulistanos. Com o fracasso dessa política, cogitaram implementar uma multa para as famílias que aumentassem o consumo de água em relação ao consumo do mês anterior, porém essa medida não foi aprovada. Além disso, é de conhecimento geral que em algumas regiões da cidade de São Paulo – como na zona Norte e Leste, periferia da cidade – e município vizinhos a água já não chega às torneiras durante algumas horas por dia, apesar da existência do rodízio ser negada pelo Governador.
O que se observa é a tentativa de responsabilizar a população paulista por essa crise ao invés de ir à verdadeira fonte do problema, a irresponsabilidade na gestão dos recursos hídricos do estado de São Paulo feita pelo PSDB. Não por acaso o Ministério Público possui, segundo o Promotor de Justiça do Grupo de Atuação Especial do Meio Ambiente, Ivan Castanheiro, 50 investigações sobre a gestão da água feita pela Sabesp.
DESPERDÍCIO E URBANIZAÇÃO DOS MANANCIAIS
É de conhecimento da Sabesp que 24% de toda a água capitada pela companhia (porcentagem que seria ainda maior segundo o Sindicato dos Trabalhadores em Água, Esgoto e Meio Ambiente do Estado de São Paulo – SINTAEMA) é perdida nas tubulações da rede de distribuição entre os pontos de capitação e as torneiras das residências (como dado de comparação, essa porcentagem é de apenas 7% no Japão). As campanhas de conscientização da população sobre o uso da água são importantes, porém os maiores culpados pelo desperdício de água são a própria Sabesp e o Governo do Estado, que há décadas não realizam investimentos mínimos em manutenção.
Outra questão pertinente ao debate e que também é de conhecimento da companhia é o aumento da urbanização das áreas de manancial que abastecem o sistema Cantareira. Entre 1991 e 2013, o crescimento da população de oito municípios localizados nessa região foi de 71,68%, enquanto o mesmo dado para a cidade de São Paulo foi de 22,55% e do Brasil 36.92%. Ou seja, a região em que ocorre o abastecimento do sistema Cantareira passa por uma verdadeira explosão demográfica.
A especulação imobiliária em São Paulo obriga a população a buscar terrenos e aluguéis mais baratos em cidades vizinhas, que devido às obras do Rodoanel – que não por acaso leva o nome do ex-governador tucano Mário Covas – estão sendo mais procuradas devido a facilitação de acesso, resultado de qualquer obra rodoviária de grande porte. Observa-se, então, que o próprio Governo do Estado foi responsável por estimular a urbanização de uma região que, segundo a Sabesp e qualquer técnico em meio ambiente que se preze, deveria ser preservada, uma vez que a urbanização de áreas de manancial prejudica a capitação da água (devido, entre outros fatores, a impermeabilização do solo) e sua qualidade. Além disso, não se pode ignorar o fato de as obras do Rodoanel passarem, literalmente, por cima dos mananciais, colocando em risco não só o sistema Cantareira, mas também as represas Billings e Guarapiranga, utilizadas para o abastecimento hídrico da zona Sul da capital.
O JEITO PSDB DE RESOLVER O PROBLEMA
Com o cenário catastrófico e inevitável de desasbastecimento de água da principal região econômica do país, o Governo do Estado tomou uma medida desesperada: utilizar a água do “volume morto” do sistema. Estima-se que a água ali contida, que passou a ser retirada a partir de 15 de maio, poderia abastecer o sistema por 90 dias, previsão contestada por especialistas. Pior que isso, o custo operacional para seu funcionamento é muito maior, pois se trata de uma água abaixo do nível de captação normal da represa, uma zona de acúmulo de sedimentos contendo matéria orgânica, microorganismos anaeróbios e vários outros materiais que dificultam a remoção e o tratamento da água.
Não bastasse isso, especialistas de diversas áreas tem alertado que essa saída, na verdade, pode enterrar de vez a possibilidade de recuperação do sistema a curto prazo, uma vez que retirar a água abaixo do nível normal fará com que antes de começar a reabastecer o volume útil, se tenha que encher o volume morto. Isso tudo sem falar nos aspectos ligados a possível extinção de espécies, que tem sido alvo de preocupação de especialistas em biodiversidade.
A saída de médio prazo apontada pelo governador seria pegar água do Jaguari, afluente do Rio Paraíba do Sul, que é o responsável pelo abastecimento de várias cidades paulistas e da região metropolitana do Rio de Janeiro. Não bastasse o evidente problema político entre os interesses de municípios diversos, na melhor das hipóteses esta obra ficará pronta em dois anos, o que, evidentemente, não é uma solução para o problema.
Além de toda essa situação embaraçosa, as previsões hidrológicas indicam que o sistema Cantareira levaria 5 anos para recuperar seu regime “normal”, considerando o histórico de chuvas esperados para os meses de cheia. Com uma dose de chuvas bastante acima do esperado (mas ainda possível), o número pode cair para 2 anos, o que não muda nada a curto prazo.
O CENÁRIO ATUAL
Na última semana de junho as represas Jacareí/Jaguari – que representam 80% de todo o volume do sistema Cantareira e já funcionam com o volume morto – operam com 9% de seu volume e, se a situação continuar como está, essas represas deixarão de fornecer água entre os dias 15 a 25 de agosto. Para piorar a situação, o sistema Alto Tietê – responsável pelo abastecimento de 20% da região metropolitana de São Paulo, cerca de 3,3 milhões de habitantes – opera nessa última semana de junho com 26,4% de seu volume e, a menos que ocorram grandes chuvas nos próximos meses (o que é pouco provável durante o inverno), o sistema Alto Tietê deverá secar em novembro. Ou seja, antes do período de chuvas que ocorre no final do ano e é fundamental para repor a água dos reservatórios, 65,6% do abastecimento da região metropolitana de São Paulo provavelmente estará comprometido devido a escassez de água nos reservatórios.
A falta de água já em um problema em 32% das residências brasileiras, segundo notícia publicada na Folha de São Paulo em 10 de junho e, segundo dados levantados pela Comissão Pastoral da Terra (CPT), houve 93 conflitos por água no Brasil neste ano, maior índice desde que a pesquisa começou a ser feita em 2002, envolvendo 26.967 famílias e 2 assassinatos. Dentre esses conflitos, 60% ocorreram na Amazônia e Mata Atlântica, biomas ricos em água, o que demonstra que a disponibilidade de água não é o centro da questão nesses conflitos.
“Os governos federal, estaduais e municipais são os causadores diretos de 13 conflitos. As empresas são responsáveis por 18 casos. Apenas quatro dos casos envolvem fazendeiros e grileiros de terra. Os conflitos gerados pelas mineradoras, hidrelétricas e empresários somam 80,5% dos casos. Desse modo, fica clara a disputa entre grandes empresas de capital nacional e/ou estrangeiro pelos territórios – terra e água – de comunidades camponesas. […]As secas – isso é cada vez mais evidente – são fenômenos que não têm apenas causas naturais. O período seco de todo ano tem suas consequências sociais agravadas pela incúria dos responsáveis públicos e a manipulação política e econômica interessada de grupos privados, como acontece há séculos” (Conflitos no Campo no Brasil, CPT, abril de 2014).
O que podemos concluir com essa história toda pode ser resumido em dois pontos centrais: má gestão pública dos recursos hídricos de São Paulo, devido a irresponsabilidade de quase 20 anos de governo do PSDB, e a mercantilização do recurso natural mais importante para a vida, a água. Nesse cenário a água deixa de ser um bem público natural e passa a se tornar uma mercadoria, como qualquer outra, sujeita as leis do mercado e aos interesses do capital. Nesse sentido, fica evidente que a gestão da água deve ser feita de acordo com os interesses da população, não de grandes empresas. A água tem que ser nossa!
O QUE FAZER, ENTÃO?
É preciso dar um basta nos desmandos tucanos na Sabesp, fazendo pressão para que se dê uma guinada na estratégia organizativa da companhia, virando seu foco do lucro e do capital aberto para o abastecimento de água para o povo, o que passa por aliar a política da água como uma questão de saúde ao reestabelecimento de um quadro técnico capacitado da operação às instâncias de decisão mais importantes da companhia.
Também é urgente que se exija uma abertura dessas decisões estratégicas, de curto, médio e longo prazo para um debate verdadeiramente público. Uma boa oportunidade para isso é o processo de renovação das outorgas de uso da água da Bacia Hidrográfica dos Rios Piracicaba e Jaguari (onde se localiza o sistema Cantareira) que ocorrerá em 2014. Temos que garantir que os interesses da população estejam em primeiro lugar.
O rodízio/racionamento de água parece inevitável dado o cenário atual e ao não realiza-lo (oficialmente) o Governo do Estado está sendo, mais uma vez, irresponsável. Ao realiza-lo veladamente, desonesto. Por isso, deve ser cobrada honestidade do governo nos critérios para o racionamento, de forma que a população mais pobre da periferia não sofra mais que a população mais rica com essa política, uma vez que seremos todos afetados com a falta d’água.
A médio e longo prazo também é necessário repensar a ocupação das regiões de mananciais de forma a preserva-las, mas também garantir a moradia digna da população que já habita suas margens, muitas vezes por não haver outra opção. Da mesma forma, é necessário garantir um percentual fixo do lucro da Sabesp que deve ser investido em obras de ampliação e manutenção do sistema de abastecimento de São Paulo, visando também reduzir o desperdício que ocorre na rede de distribuição.
Ao que parece, chegamos literalmente ao fundo do poço (ou do reservatório) devido a uma política gananciosa e irresponsável de mirar lucros infinitos (e que não custa perguntar têm ido parar onde? Será que não há aqui mais um tucanoduto aqui?) aliado a um desmonte dos serviços públicos de qualidade. Isso tem sido a marca dos governos do PSDB desde sempre, nos cabe falar nome e sobrenome dos problemas e culpados e fazê-los pagar caro a conta da irresponsabilidade.
Andreia E. Bianchi é geográfa, estudiosa do tema e do Grupo de Trabalho Estadual do Juntos! e Dante Peixoto é engenheiro, professor e do Juntos! São Carlos.
Fonte: Juntos
Referências
Balanço Patrimonial Sabesp. Disponível em: http://br.advfn.com/bolsa-de-valores/bovespa/sabesp-SBSP3/balanco
Conflitos no Campo Brasil 2013. Comissão Pastoral da Terra. Disponível em: http://cptnacional.org.br/index.php/component/jdownloads/finish/43-conflitos-no-campo-brasil-publicacao/344-conflitos-no-campo-brasil-2013?Itemid=23
Copa em São Paulo? Vai ter. Água a gente não sabe. Entenda o problema do sistema Cantareira. Disponível em: http://gizmodo.uol.com.br/giz-explica-agua-sistema-cantareira/
Especialistas: não há solução de curto prazo para abastecimento de água em SP. Disponível em: http://www2.camara.leg.br/camaranoticias/noticias/CONSUMIDOR/465259-ESPECIALISTAS-NAO-HA-SOLUCAO-DE-CURTO-PRAZO-PARA-ABASTECIMENTO-DE-AGUA-EM-SP.html
Júlio Cerqueira César: Alckmin e Sabesp já fazem racionamento de água. Disponível em: http://www.viomundo.com.br/denuncias/julio-cerqueira-cesar-alckmin-e-sabesp-ja-estao-fazendo-racionamento-de-agua-ha-mais-de-2-meses-ele-e-dirigido-aos-pobres.html
No país, 32% afirmam ter sofrido falta d’água nos últimos 30 dias. Folha de S. Paulo. 10 de junho de 2014. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2014/06/1467727-no-pais-32-afirmam-ter-sofrido-falta-dagua-nos-ultimos-30-dias.shtml
‘Volume morto’ do Cantareira ameaça espécies de extinção. Disponível em: http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,volume-morto-do-cantareira-ameaca-especies-de-extincao,1149996,0.htm