Por Patrícia Fachin
Ao avaliar a crise internacional e as propostas da esquerda frente à catástrofe que se forma no mundo contemporâneo, Eric Toussaint apresenta duas esquerdas diferentes e diz que ambas propõem rumos distintos para resolver o emaranhado que se formou nos últimos anos. A esquerda radical, explica, ainda se preocupa com o socialismo e com as questões ecológicas, fala em ecosocialismo, se manifesta através dos movimentos sociais, e luta para pôr em prática “soluções anticapitalistas, feministas e anti-racistas”. Na outra frente, está a esquerda social liberal ou social democrata, presente em governos como Barack Obama, Lula, Gordon Brown, Zapatero. Esses, afirma, além de investirem num modelo econômico neoliberal, são incapazes de perceber a amplitude da crise ecológica, “reforçam o modo de produção produtivista colocando talvez um pouquinho da cor verde sem, de forma alguma, adotar as medidas radicais que se impõem”.
A crise civilizatória por qual passa a humanidade atualmente é também, para o politólogo belga, reflexo da história da esquerda social democrata que “adaptou-se à sociedade capitalista”. Em entrevista especial concedida por telefone a IHU On-Line, Toussaint diz que, além de não se respeitar a “verdadeira democracia baseada na autogestão”, “a crise profunda da esquerda está ligada, de certa forma, a uma deformação das propostas dos socialistas, dos comunistas como Karl Marx e Friedrich Engels”. Ao defender o socialismo do século XXI, ele ressalta que ele não deve reproduzir o que foi colocado em prática no século XX, mas, sim, “ser uma resposta profundamente democrática e autogerenciável às experiências negativas do passado”.
Questionado sobre a possibilidade de construir uma proposta mais radical que leve ao fim do capitalismo, ele é incisivo: “Isso implica em profundas mobilizações sociais para recolocar em pauta um verdadeiro processo revolucionário como o que triunfou há 50 anos em Cuba, em 01 de janeiro de 1959”. E enfatiza: “É preciso uma nova política anticapitalista, socialista e revolucionária que deve incluir uma dimensão feminista, ecologista, internacionalista, anti-racista. É preciso que estas diferentes dimensões sejam integradas de maneira coerente no que está em jogo no socialismo do século XXI.”
Eric Toussaint é doutor em Ciências Políticas, pela Universidade de Liége, Bélgica, e pela Universidade de Paris VIII, França. É autor de A bolsa ou a vida (São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2002).
Confira a entrevista.
IHU On-Line – O senhor diz que para resolver os problemas das crises globais é necessário fazer uma ruptura radical. Isso ainda pode ser proposto pela esquerda? Como?
Eric Toussaint – Pode-se constatar, claramente, que a proposição de uma ruptura radical com a sociedade capitalista é feita por setores da esquerda, como partidos e organizações sociais. Ela partiu da esquerda radical em todo o mundo, através de partidos da esquerda revolucionária como, no Brasil, o PSOL, o PSTU. Há outros partidos com esta mesma orientação na América Latina. Na Europa, se constroem partidos revolucionários, como na França, onde acaba de ser fundado, há um mês, o novo partido anticapitalista (NPA), que tem como figura pública o funcionário dos correios Olivier Besancenot. Temos o mesmo processo em outros países, igualmente na Ásia. No que se refere aos movimentos sociais, toma-se conhecimento de suas declarações, adotadas no momento do Fórum Social Mundial em Belém, em 30 de janeiro. Constata-se também que esta declaração de movimentos sociais convida a uma ruptura total com o capitalismo e recusa a perspectiva de uma reforma do capitalismo e de uma nova regulamentação. Se lermos a declaração da Marcha Mundial das Mulheres adotada em 1º de fevereiro em Belém e a declaração final dos povos indígenas, percebemos que a mesma opção é afirmada.
Então, minha resposta é: é claro que hoje, no mundo, diferentes partidos e diferentes organizações sociais propõem uma ruptura radical com o capitalismo.
IHU On-Line – Entre os setores da esquerda, duas opções são discutidas quando trata-se de pensar em modificações. Alguns buscam a superação da fase neoliberal recuperando um desenvolvimento regulado pela ação estatal, e outros defendem uma ruptura socialista. Esses são caminhos possíveis? Não está na hora de propor algo novo?
Eric Toussaint – Sim, é claro que estes caminhos são possíveis. O primeiro esquema que você descreve é colocado em prática por organizações de esquerda que estão na situação de governo. Esta é a política, por exemplo, de Luiz Inácio Lula da Silva, no Brasil; essa é a mesma política aplicada por Cristina Kirchner, Bachelet etc. Na Argentina, há dois meses, o governo de Cristina Kirchner renacionalizou os fundos de pensão. Então, estas políticas de recuperação, que é a primeira observação que você apresenta em sua questão, são colocadas em prática. Mas isso não permite responder, em minha opinião, ao desafio que nos estabelece a crise global. Pode-se constatar que a acepção política que mantém a dominação da crise capitalista sobre o conjunto da sociedade é a de que o Estado intervém facilmente como o Estado bombeiro para parar o incêndio provocado pela crise global do capitalismo. Então, a outra observação que propõe uma verdadeira ruptura socialista é a de um Estado de proposição. Não posso citar governos, atualmente no poder, que coloquem em prática de maneira coerente esta orientação, mesmo se alguns deles, como os de Hugo Chávez ou de Evo Morales, agem parcialmente nesta direção. Seus discursos são de ruptura socialista, mas suas práticas são mais moderadas do que isso. Então, será que o esquema mais radical é possível? Certamente que ele é possível. Mas isso implica em profundas mobilizações sociais para recolocar em pauta um verdadeiro processo revolucionário como o que triunfou há 50 anos em Cuba, em 1º de janeiro de 1959. Nesse momento, se assistiu a uma verdadeira revolução com mudanças intensas, com profundas redistribuições de riquezas, uma supressão do controle pelos capitalistas dos grandes meios de produção e uma profunda democratização também. Na sequência, Cuba, submetida ao bloco dos Estados Unidos e, igualmente, à influência da União Soviética, mudava parcialmente de direção. Mas não se pode esquecer disso. E eu acabo de indicar que isso começava por um autêntico processo revolucionário. Não vejo por que, diante desta crise capitalista global, não se poderia, novamente, conhecer, no futuro, explosões revolucionárias, como se conheceu em Cuba.
IHU On-Line – O senhor argumenta que o atual momento não trata apenas de uma crise econômica ou financeira, e diz que a questão é muito mais profunda. Em que sentido esse emaranhado global tem a ver também com a crise da esquerda? Podemos dizer que ambos aspectos estão entrelaçados?
Eric Toussaint – Sim. Há, efetivamente, uma crise da gestão social e liberal. E eu entro na gestão social liberal, na política do governo Lula, na política do governo Zapatero, na Espanha, ou de Gordon Brown, na Grã-Bretanha para dar exemplos, ao mesmo tempo, na Europa e na América do Sul. Há uma crise profunda, pois há aqueles que votaram para colocar estes governos no poder esperando outro tipo de política. É preciso lembrar, em todo o caso na eleição de Lula, que o programa com o qual ele foi eleito em 2002 anunciava uma verdadeira ruptura com as questões neoliberais. Ao invés de uma ruptura, assistiu-se a uma continuidade. Então, a crise de credibilidade da esquerda faz parte da crise global. É claro que, na memória coletiva, há também os ciclos dramáticos da experiência do socialismo real do século passado. Na memória coletiva, fica a ideia de que o socialismo é associado com uma estatização completa da economia, com a dominação de um partido único e uma ausência de verdadeira liberdade democrática. Então, há, por um lado, um balanço muito negativo da gestão social liberal, ou seja, da política social democrata, e, por outro, um balanço desastroso da gestão do cachimbo staliniana ou do socialismo burocrático que dominou a experiência do bloco soviético do século XX. Ainda não se superou esta crise de credibilidade. E é isto que está em jogo no debate do que alguns chamam de socialismo do século XXI. O socialismo do século XXI deve ser uma resposta profundamente democrática e autogerenciável às experiências negativas do passado. Então, não se trata de reproduzir o que foi colocado em prática no decorrer do século XX. Trata-se de, diante desta crise global do sistema capitalista, com aspecto de crise de civilização, responder igualmente à crise da esquerda. É preciso uma nova política anticapitalista, socialista e revolucionária, que deve incluir uma dimensão feminista, ecologista, internacionalista, anti-racista. É preciso que estas diferentes dimensões sejam integradas de maneira coerente no que está em jogo no socialismo do século XXI.
IHU On-Line – O que está acontecendo com a esquerda mundial? Por que existe uma lacuna entre a teoria e a prática do pensamento político de esquerda?
Eric Toussaint – A esquerda mundial atravessa uma crise profunda devido a sua história. A história da corrente social democrata é uma derrota profunda, pois adaptou-se à sociedade capitalista. É também a derrota da esquerda, para utilizar uma palavra conhecida, da esquerda staliniana, ou seja, a experiência que dominou as tentativas de construção do socialismo na União Soviética e na China. Esta também foi uma derrota profunda, pois não se respeitou a verdadeira democracia baseada na autogestão, porque se quis tudo estatizar e tudo dominar a partir do Estado. Houve um profundo erro. O socialismo não é o controle de toda economia pelo Estado. E, justamente, a crise profunda tem a ver com a questão seguinte que você previu. A crise profunda da esquerda está ligada, de certa forma, a uma deformação das propostas dos socialistas, dos comunistas como Karl Marx e Friedrich Engels. Karl Marx dizia que a sociedade à qual nós aspiramos, o comunismo, é a associação livre dos produtores livres. Dizia também que a emancipação dos trabalhadores será a obra dos próprios trabalhadores. Marx acrescentava que o Estado, no comunismo, terá desaparecido. E o socialismo é a transição entre o capitalismo e o comunismo. E, no socialismo, o Estado existe ainda, mas, ele existe de maneira provisória e deve visar ao seu próprio desaparecimento.
Ora, o que foi feito na experiência soviética? Ao invés de provocar o desaparecimento do Estado, a parte comunista, sob a direção de Stalin reforçou como nunca o Estado, e proibiu aos outros toda uma série de expressões democráticas. Foi uma profunda perversão do projeto socialista que é, ao contrário, profundamente democrático. Se pegarmos a experiência dos socialistas, o que eu chamo de social democracia, Lula, Daniel Ortega, da Nicarágua, Zapatero e Gordon Brown também não são a favor do desaparecimento do Estado. São a favor da manutenção do Estado capitalista com socialistas no governo. Então, eles precisam de um Estado capitalista regulamentando um pouquinho a atividade do capital. A esquerda que está no poder e que dominou no passado traiu o verdadeiro projeto libertador e emancipador do socialismo. Aí, estão, portanto, as razões profundas da crise da esquerda. Há uma esquerda radical e revolucionária que defende o projeto socialista original, que tenta, a partir de uma atividade nos movimentos sociais, fortalecer através de diferentes meios. Esta esquerda radical participa também das campanhas eleitorais. Ela tenta eleger parlamentares que conduzam uma luta anticapitalista nas instituições parlamentares, ligada à uma perspectiva de ruptura, não a uma perspectiva de adaptação ao sistema. A ideia é de favorecer uma autêntica revolução, uma transformação radical das relações de propriedade e das relações sociais na sociedade.
Fonte: Instituto Humanitas Unisinos – http://www.unisinos.br/ihu/
Tradução: Luciana Cavalheiro