O país vira instrumento para nutrir o caixa da Fifa, entidade privada suíça; desafiar a zona de exclusão comercial perto de estádios pode dar até prisão
(Artigo publicado na Folha de S.Paulo, em 15 de abril)
Chico Alencar
O manifesto dos tenentes rebelados em São Paulo, em 1924, denunciava: “O Brasil está reduzido a verdadeiras satrapias, desconhecendo-se completamente o merecimento dos homens e estabelecendo-se como condição primordial, para o acesso às posições de evidência, o servilismo contumaz”.
Passados 88 anos, um anacrônico servilismo emoldura as iniciativas nas 12 cidades-sede da Copa de 2014 e nas alterações legais que o Congresso Nacional está votando para receber o megaevento.
Sobra subserviência, falta transparência: os compromissos do governo com a Fifa, assinados em 2007, seguem cercados de mistério. As informações sobre gastos e etapas das obras, nos portais oficiais, são contraditórias e incompletas.
O processo de remoção de moradias, que pode afetar 170 mil pessoas, desrespeita o princípio do “chave por chave”, que diz que ninguém pode ser despejado de sua casa sem receber outra, próxima e melhor.
O projeto da Lei Geral da Copa -bem mais do que uma “lei do copo de cerveja” nas partidas- transforma o Brasil em protetorado de interesses mercantis.
Ele “expulsa de campo” a legislação nacional que regula concorrência, patentes, direitos do consumidor, transmissões esportivas, gastos orçamentários, publicidade, punição a delitos e até calendário escolar. A lei das licitações já fora “escanteada” pelo Regime Diferenciado de Contratações. Uma entidade privada internacional impõe legislação excepcional, garantindo isenções fiscais a mais de mil produtos!
O projeto aprovado na Câmara assegura megaprivilégios à Fifa. O Inpi vira um “cartório particular”, com regime especial para pedidos de registro de “marcas de alto renome” apresentadas pela entidade.
Libera-se uma associação suíça de direito privado do pagamento de custos e emolumentos exigidos a todos que requerem registro de marca no Brasil. Trata-se de uma renúncia fiscal longa e onerosa!
O projeto afronta até um preceito defendido pelos liberais de todos os matizes: o da livre iniciativa.
Isto é evidenciado ao se “assegurar à Fifa e às pessoas por ela indicadas a autorização para, com exclusividade, divulgar suas marcas, distribuir, vender, dar publicidade ou realizar propaganda de produtos e serviços, bem como outras atividades promocionais ou de comércio de rua, nos locais oficiais de competição, nas suas imediações e principais vias de acesso”.
Prevê-se também que será objeto de sanções -como prisão de três meses a um ano- a “oferta de provas de comida ou bebida, distribuição de panfletos ou outros materiais promocionais (…), inclusive em automóveis, nos locais oficiais de competição, em suas principais vias de acesso ou em lugares que sejam claramente visíveis a partir daqueles”.
O “Estado Futebolístico de Exceção” cria suas “zonas de exclusão”.
A União fica também obrigada a disponibilizar, sem quaisquer custos para a Fifa, “a segurança, serviços de saúde, vigilância sanitária e alfândega e imigração”.
Além de disponibilizar gratuitamente todos esses serviços para um evento privado, o Brasil também se responsabiliza por quaisquer acidentes que venham a ocorrer.
A Fifa, que ganhou na África do Sul mais de R$ 7,2 bilhões só com radiodifusão e marketing, “marca sob pressão” as nossas autoridades. Em 2011, já faturou R$ 1,67 bilhão com vendas vinculadas à Copa de 2014. Medidas provisórias poderão ser editadas “na prorrogação” para garantir os resultados esperados.
No lugar de caixinha de surpresas, o futebol se transforma em um instrumento para nutrir a caixa-registradora da Fifa e dos seus sócios.
CHICO ALENCAR, 62, historiador, é deputado federal pelo PSOL-RJ