Por Eduardo Galeano • Versus 11• junho de 1977
Quando terminaram os trabalhos do concurso da Casa de Las Américas, Sergio Chaple me propôs que viajássemos a Gran Tierra.
No dia seguinte voamos em uma casca de noz sobre a selva.
Aterrissamos no fim do país. As montanhas do Haiti brilhavam, azuis, no horizonte.
– Não, não – disse Magüito. Aqui não termina Cuba. Aqui começa.
São secas as terras da ponta de Maisí, embora estejam à beira-mar. As secas arrasam os cultivos de verduras e feijões. Em Maisí cruzam-se os quatro ventos, que carregam as nuvens e distanciam a chuva.
Magüito nos levou à sua casa para tomarmos um café.
Ao entrar, acordamos uma porca que dormia na entrada. Ficou furiosa. Tomamos o café rodeados de crianças, porcos, cabritos e galinhas; nas paredes, Santa Bárbara rodeada por dois Budas e um Sagrado Coração. Muitas velas acesas. Na semana passada Magüito havia perdido uma neta.
O tempo chegou. Ficou sem cor; nascera uma flor de algodão. Nada vale nada quando o tempo é chegado. Todos viemos por um tempo. Às vezes, antes desse tempo, acende-se velas para alguém, como fizeram comigo há 37 anos, não dura até amanhã, dizem, e com isso se embarca.
A missa e as velas eram coisas da mulher, esclareceu-nos Magüito, que só pensa em adorar bonecos e todas essas mumunhas.
Ele não acreditava em nada de lá de cima. Também não acreditava que San Luis de Beltrán eliminara o mau-olhado, é essa força de olhar e causar danos que possuem alguns indivíduos de olhar forte como a serpente maja.
– Os soldados diziam que se viesse um tiro, Santa Bárbara o sustentaria.
Pela porta, aberta de par a par, vimos passar os pescadores. Vinham do mar, com capotões e aguajises presos nas varas, já limpos e salgados, prontos para secar. A poeira do caminho levantava nuvens a suas costas.
– Atrasos – vociferou Magüito – abusos.
Quando apareceu o primeiro helicóptero, as pessoas fugiram espavoridas. Até o triunfo da revolução, carregavam-se nos braços os doentes graves, em liteiras, através da selva, e morriam antes de chegar a Baracoa. Ninguém se assustou quando nosso aviãozinho aterrissou no aeroporto novo. Vieram os barbudos e levantaram o primeiro hospital em Los Llanos. O santuário já não era, aqui, o Ministério da Saúde Pública.
– O homem de pulso não pode ver abuso – disse Magüito. – É o meu defeito. Se tenho inimigos, estão escondidos. Sempre dancei conforme a música, fui bebedor e folião, bom companheiro. Daqui para cima, todos me conhecem.
E nos advertiu:
– Aqui não somos bravos. Nos curtimos mas não nos envolvemos. Os lá de cima, os de Gran Tierra, são piores que a mosca azul.
No caminho, os resplendores feriam os olhos. O vento, que soprava baixo e em redemoinho, cobria com máscaras de poeira avermelhada os homens e as coisas.
– Olha, olha. Naquela gruta os índios se queimaram. Fugiam dos espanhóis e entravam nas grutas. Naquela gruta se trancaram e se queimaram vivos. Ainda se encontram os ossos e os colares. Tudo incendiado.
Atravessamos umas plantações de café. Foi um alívio entrar em túneis de sombra.
A gente do lugar odiava morcegos. À noite, os morcegos saíam das grutas e se atiravam sobre o café. Mordiam os grãos, e lhes chupavam o sumo. Os grãos secavam e caíam.
Sobre as escarpas, dominando o mar, Patana Arriba. Erguendo-se, em frente aos arrecifes, Patana Abajo. Todo mundo se chamava Mosqueda.
– Entre filhos e netos – disse Don Cecílio –, estive contando nas outras noites, havia aproximadamente trezentos. Já não há mulher na casa. Estou fazendo oitenta e sete. Eu antes criava cabritos, reses e porcos, lá embaixo. Aqui parece que o café me deu sorte. Se eu pesquei? Pesquei ou pequei? Se ainda me lembro? Algo fica. Na memória e no impulso.
E acrescentou com um sorriso que mostrava as gengivas sem dentes:
– Por alguma coisa Mosqueda é o nome predominante, o que multiplica.
Tínhamos sede. Don Cecilio Mosqueda saltou da cadeira de balanço.
– Eu subo.
Um dos netos, ou bisnetos, Braulio, agarrou-o por um braço e o obrigou a sentar.
Braulio subiu ao tronco alto com os pés amarrados. Balançou nos galhos, machado na mão, e uma chuva de cocos caiu no chão.
Você é um lagarto, menino.
A água de coco me escorria pelo pescoço.
O gravador despertava curiosidade em Don Cecilio. Mostrei-lhe como funcionava.
– Esse aparelho é realmente científico – disse – porque conserva viva a voz dos mortos.
Coçou a barba. Apontou o gravador com o indicador e disse: “Quero que ponha isso aí”. E contou:
– Às vezes, em Patana Abajo, caem vermes de um animal. É em Patana Abajo e eu estou aqui, os mato, sem tocá-los. A cura segue pelo ar. Deve-se saber de que cor é o animal e em que lugar tem os vermes. As palavras são secretas.
– Creolina – disse Braulio, baixinho, olhando para o chão.
O velho se mexia com os olhos fechados.
Braulio era o chefe dos carcereiros do patriarca. As brigadas de netos e bisnetos se revezavam para dormir. Ao menor descuido, Don Cecilio fugia a cavalo e de um só galope atravessava a selva e chegava a Baracoa ao amanhecer, para paquerar a garota que o deixava louco, ou ia caminhando pelas lombadas até Montecristo, que era bem longe, para fazer serenata a outra menina que lhe estava tirando o sono.
A revolução não parecia má a Don Cecilio.
– As pessoas viviam muito isoladas, como que falidas – me explicou. – Agora as culturas se interrelacionam.
Ele tinha descoberto o rádio. O papagaio da casa aprendera uma canção dos Beatles e Don Cecilio se inteirara de certas coisas que aconteciam em Havana:
– Os vestidos das mulheres, muito curtos, rapaz. Eu gosto de pernas de mulher, mas acontece uma coisa, que a sua mulher deve ver você e ninguém mais. Não é você quem vive com ela? Enfim. Para que seja mundo, temos que passar por isso. Tem que haver de tudo. Não gosto de praia. Quase não vou. Mas ouvi de várias testemunhas que em Havana existe uma coisa que se chama biquíni. Há algumas mulheres que vão à praia com a bunda de fora. Como se vestia a minha mulher? Pelas barbas de Netuno, rapaz, ela se despia pelos pés. Eu sou homem de muita fibra, é na praia e nos bailecos que aparece a depravação. Outra coisa que agora há muito em Havana é o divórcio. O divórcio não é sério.
– Mas Don Cecilio – interrompeu Sergio.
– E não é verdade que o senhor teve quarenta e tantas mulheres?
– Quarenta e nove – disse Don Cecilio – Mas não me casei nunca. Quem se casa se f…
Depois quisemos destramelar-lhe a língua, mas Don Cecilio não falou nada sobre o tesouro. Na região todos sabiam que ele tinha um tesouro enterrado em uma caverna.
Íamos a uma aldeia que se chamava La Máquina.
O caminhão recolhia a gente. Todo mundo à Assembléia.
– Plácido, vem, vamos! Não fuja, Plácido!
– Não me avisaram!
Esperavam o caminhão de banho tomado e penteados, as velhas com sombrinhas coloridas, as moças com roupas de festa, os homens cambaios por causa dos sapatos apertados. No caminhão, a poeira cobria rapidamente as peles e as roupas e tinham que fechar os olhos: reconheciam–se pelas vozes.
– Don Cecilio? Esse é um velho dos antigos. Vá lá. Tem mais de cem anos.
– Vai morrer sem dizer onde está o tesouro. Ninguém vai rezar-lhe as três missas.
– O que está dizendo, Ormidia?
– Que a sua alma não vai descansar, Iraida.
– E como vai descansar? Com tanto pecado e o enorme peso de terra que vai ter em cima.
– Eu tenho muita terra?
– Não te vejo, Urbino.
– Não, deixe estar. A que se necessita e nada mais.
– Ninguém lhe perguntou nada, Arcónida.
O caminhão saltava de buraco em buraco. A ramagem nos açoitava o rosto e das árvores se desprendiam caracóis coloridos. Aos tapas, aos trancos e barrancos, eu os metia nos bolsos.
– Não se assuste, o mundo se acabou!
– O mundo está começando, Urbino! Também viajavam várias crianças, dois cachorros e um papagaio. Cada um se arrumava como podia. Eu ia abraçado em uma pipa de água.
A três por quatro o motor pifava e tínhamos que descer para empurrar.
– Sou o escolhido – dizia Urbino. – Bom para tudo menos para partir.
– Faltava muito para chegar quando furou um pneu.
– Não tem jeito. Morreu.
E a procissão seguiu pelo caminho.
Tudo o que faltava era a encosta acima.
Homens e mulheres, crianças e bichos, subiam a montanha cantando.
– Impostei a voz, viram? Que peito tenho!
Iam pegajosos de suor e pó e investiam, felizes contra o sol de verão, sol das três da tarde, que atacava sem piedade.
– No dia em que eu morrer quem se lembrará de mim? Apenas a tina da água que bebi.
Urbino, que era coxo, caminhava agarrado à minha camisa.
– Eu canto o que sei, e ao mundo não devo nem temo – disse – esse ritmo, conhecem? É nosso. Se chama nengón. É um ritmo de Patana, mas de Patana Abajo. Se toca com maracás. E com guitarra de quatro cordas, de aço, que também é invenção nossa. Na região de Patana, naquele monte deserto, temos que inventar.
As copas das palmeiras ardiam contra um fulgor branco: levantava os olhos e ficava tonto. Eu pensava: uma cerveja gelada seria como uma transfusão de sangue.
– Dez mil coisas se passam aqui que Fidel nem sabe – dizia Urbino. – Peça em Havana para me mandarem as sementes que me prometeram. Não esqueça, sim?
Comprara um motor elétrico para sua oficina de carpintaria. Consultara antes e lhe haviam dito que sim, que comprasse, assim podia dar luz aos pataneros além de fazer móveis para todos. Mas o motor não funcionara nunca e os pataneros gozavam. Esses ferros vazios, diziam, esse motor é um tremendo fardo, Urbino, você foi embrulhado.
– Sem o motor continuamos no escuro. Me entende? Peça que me mandem os habelitos para habelitar o motor, que é tudo isso que vai lá dentro.
A costa ficou para trás e vimos as primeiras casinhas de madeira. Uns touros fugitivos atravessaram o caminho e seguiram a galope. Dos bananais pendiam botões violeta, inchados, a ponto de arrebentar. Parei para esperar uma velha que vinha arrastando seu longo vestido verde.
– Eu, de jovem, voava – me disse. – Agora não.
Toda Gran Tierra estava na Assembléia. Ninguém se queixava e as brincadeiras e canções continuaram até que tomou a palavra um camponês louro de pômulos salientes e traços duros, que falou da organização e das tarefas. Era o técnico em mecanização agrícola mais importante da região.
Depois ele nos convidou, a Sergio e a mim, para comer banana frita.
Tinha aprendido a ler e a escrever aos vinte e cinco anos.
Juntamos uma boa quantidade de caracóis coloridos. Esvaziamos com uma agulha, um a um, e os pusemos a secar ao sol. Eu estava deslumbrado com essas minúsculas maravilhas, de cores e desenhos sempre diversos. Viviam nos troncos das árvores e na parte de baixo das folhas largas das bananeiras. Cada molusco pintava sua casa melhor que Picasso ou Miró.
Nas Patanas me haviam dado um caracol difícil de encontrar. Chama-se Ermitão. Para esvaziá-lo tive bastante trabalho. O molusco estava bastante escondido, no fundo da concha de nácar, mesmo morto se negava a sair. O Ermitão soltava um cheiro, asqueroso, mas era de rara beleza. Sua concha, com estritas acobreadas e em forma de punhal malaio, não parecia feita para girar como um pião, mas para soltar–se e voar.
Aurélio nos contou que havia advertido: “Não vá a Patana, que lá queimam as pessoas e as enterram escondidas. Além do mais, andam muito depressa, os pataneros”.
Estávamos em La Asunción. Durante o dia, Aurélio nos acompanhava a todas as partes. À noite, não dormia. Ficava conosco até que alguém lá embaixo assobiava três vezes. Aurélio saltava pela janela e se perdia na folhagem. Logo voltava. Ficava em sua cama, fumando, até ao amanhecer.
Não lhe perguntamos nada.
– Você está azedo, Aurélio – dizia-lhe Sergio. E aconselhava, para um bom despojo, dormir com uma negra negríssima, se possível azul da Prússia, e tão feia como uma foca quando toma banho:
– Vai ver como termina a má sorte.
Então Aurélio sorria.
Sergio começava a imitar Amália Mendoza, La Tariácuri, chorosa em Gríteme, piedras del campo, ou Olga Zubarry, em El Ángel Desnudo, quando a menina pura se decide pelo sacrifício para salvar seu pai, e no momento em que está tirando a roupa cai um raio do céu e parte o aproveitador pela metade.
Então Aurélio se ria.
Batia à nossa porta a qualquer hora da noite.
Tinha medo de pesadelos. Concentrava-se pensando em um ponto dentro de um círculo e quando conseguia dormir aparecia um prego gigante que se fundia em seu peito, ou um enorme ímã do qual não se podia desprender, ou uma barra de ferro que o apertava contra a parede e lhe quebrava uma vértebra.
Aurélio era do Exército, 7º Regimento de Artilharia.
– Querem me dar baixa. Pedi para esperarem. Estou lá agüentando porque me agrada.
Havia tentado ir lutar na Venezuela. Já estavam saindo, ele e outros bolsistas quando foram pescados. Fidel falou-lhes. Disse-lhe que eram muito jovens, que era melhor estudar.
Quando vinha para Gran Tierra, no aviãozinho, pensava que tinha uma missão. Eu era correio e estava na Venezuela ou na Bolívia. No aeroporto a polícia me esperava. Eu fugia no teto de um trem.
Cruzamos com Aurélio, cedinho, à saída da aldeia. Levava uma forquilha em uma mão e um machado na outra. Disse-nos que tinha ido matar serpentes. Procurava-as entre as rochas e as moitas e cortava-lhes ou lhes quebrava os ossos.
Mostrou um machado que havia sido do pai.
Uma vez, em Camaguey, o haitiano Matías me pegou o machado. Não foi brusco nem nada. Eles sabem fazê-lo. Olha que vou golpeá-lo, disse, e levantei o machado. O velho Matías nem sequer me tocou. Pôs os braços em cruz, os descruzou e eu fiquei como cego, não sei, e ele já tinha o machado preso pelo cabo.
No café encontramos uma nuvem de garotas.
– Que fizeram do caracol? – perguntou uma. – Você tem, trigueiro?
Aurélio ficou vermelho.
Sergio recomendava, segredando:
Esta magra é gostosa. Passa uma calça do lado e ela enlouquece. Você a vê e diz: posso matá-la, pesará 50 libras, não vale nada. Mas tem charme.
Elas discutiam:
– Para os gozos foram feitas as cores.
– O jeito de vestir não tem nada que ver. Isso não influi no ser da pessoa.
– Que seja. O melhor vestido de noiva é a pele.
– Casa-se de uma vez para sempre.
– E se ele vai embora? Tem que se conviver para saber.
– Diga, Narda. De onde era aquele que dizia que para se apaixonar…?
– Pois eu tenho uma moral mais alta que o Pico Turquino.
– Ai, meu Deus. Estamos vivendo aqui há tempos e já não agüento mais.
A magra se chamava Bismania. Ela havia escolhido seu nome quando deixou de agradar-lhe o que tinha.
Lá perto havia uma brigada levantando paredes. Nos oferecemos para dar uma mão.
– Não gosto de nenhuma dessas – disse Aurélio.
Trabalhamos até ao anoitecer. Ficamos os três brancos de cal, duros de cimento.
Aurélio nos confessou que tinha vindo a Gran Tierra perseguindo uma garota. Tinham se conhecido em Havana quando ela lá estudava. O pai a mantinha fechada a sete chaves e jurava que se Aurélio se aproximasse dela metia-lhe um tiro na cabeça. Era ela quem mandava os mensageiros que assobiavam de noite ao pé da janela de Aurélio. Assim se encontravam, por um instante, entre as árvores.
Mas aquela noite ninguém assobiou e Aurélio não bateu à porta. Não o vimos no dia seguinte.
Quando perguntamos por ele, já estava voando de volta a Havana.
– Queria roubar a camponesa – nos disseram. – O pai mandou buscá-lo.
O pai de Aurélio usava as três insígnias de capitão. Aurélio tinha seis anos e fazia quatro dias que Batista havia fugido em um avião. Viu vir um homem imenso pela praia de Baracoa. Tinha a barba até o peito e um uniforme cor de azeitona.
– Está vendo – disse-lhe a mãe. – Esse é seu papai.
Aurélio correu pela praia. O homem levantou-o e abraçou-o.
– Não chore – disse. – Não chore.
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