Sem dúvida alguma vivemos um período histórico no qual o debate racial ganhou novos contornos e projeção na sociedade brasileira. O ideário de democracia racial apontado pelo movimento negro, como um entrave para o avanço do debate, é colocado em xeque a cada dia, o que representa um avanço importante, mais também novos desafios.
Neste momento, quero me ater a um deles. Em um país de maioria negra, em torno de 54%, com uma enorme diversidade, como construir um projeto de enfrentamento ao racismo?
Se pensarmos o racismo como estrutural, baseado na formação histórica brasileira, alicerçada pelo modo de produção escravista que perdurou por quase 4 séculos e no projeto construído pelas elites nacionais de formação do capitalismo moderno, com a opção de excluir economicamente, socialmente e culturalmente a população negra, temos um pressuposto: nem o liberalismo e muito menos o neoliberalismo são respostas para o enfrentamento ao racismo.
O professor Silvio Almeida é certeiro quando afirma que debater o racismo estrutural é debater o sistema tributário regressivo, baseado no consumo e que na ponta onera mais as mulheres negras. É debater o desmonte nas leis trabalhistas e a precarização do trabalho, como estamos assistindo com os trabalhadores e trabalhadoras por aplicativos, a reforma da previdência que impedirá a aposentadoria dos mais pobres, a política de teto de gastos que congelou por 20 anos os investimentos nas áreas sociais. Sem contar o papel do sistema financeiro especulativo no aumento do empobrecimento das pessoas mais pobres, com práticas abusivas de financiamento.
Entre uma das consequências que esse projeto econômico que aprofunda as desigualdades traz, está o recrudescimento de um Estado que também é estruturalmente violento. Uma das expressões desse processo foi a recente aprovação do Pacote Anticrime que amplificou o Estado Penal, trazendo consequências para o encarceramento em massa e a legitimação da letalidade policial, produtos do genocídio negro.
Também não podemos ignorar que um dos grandes contrapontos ao alargamento do debate racial foi também o avanço da articulação de setores ideologicamente fascistas, inclusive muito bem capitaneada pelo atual presidente nas últimas eleições gerais, o que despertou uma reação de setores médios progressistas para construir um contraponto e a necessidade de juntar todos contra o fascismo, abstraindo inclusive a agenda econômica.
Nesse processo, um setor do movimento negro disputou essa agenda e convenceu uma parcela desses setores médios que o combate ao racismo é uma das agendas prioritárias para este contraponto e esse movimento, que já vem estruturado há algum tempo, ganhou bastante visibilidade no processo eleitoral de 2020, inclusive com doações de uma fatia da burguesia nacional para candidaturas negras em partidos de esquerda como o PSOL, o que gerou bastante polêmica e discussão.
Interessante notar que, mesmo o PSOL sendo um dos poucos partidos que antes da aprovação no TSE e no STF de distribuição proporcional para candidaturas negras, já tinha aprovado uma política que estimula financeiramente candidaturas negras, que passaram a receber 50% a mais e mulheres negras 80% a mais na mesma faixa de prioridade de homens brancos, sofre sistematicamente o ataque de que seria um partido racista.
Não quero de forma alguma negligenciar os erros que a esquerda cometeu e comete na sua leitura sobre a centralidade da luta racial, ou até mesmo os privilégios da branquitude na própria esquerda, mas também não posso negar a luta das negras e negros organizados em partidos, disputando seus rumos e produzindo avanços, pois o partido é um organismo vivo de disputa e construção permanente. A negritude do PSOL organiza o combate ao racismo estrutural na perspectiva anticapitalista.
É no mínimo curioso que o PSOL, em seu momento de crescimento, seja o foco de constrangimentos, ataques e disputa de lideranças em detrimento do silenciamento em relação a outros partidos.
As disputas que estão colocadas neste momento dizem muito do que serão as próximas décadas. Se o enfrentamento ao fascismo e à extrema direita ficarem restritos aos marcos liberais e neoliberais, não teremos condições de enfrentar verdadeiramente o racismo. A pandemia escancarou o que negras e negros sentem na pele diariamente, o quanto a redução do Estado Social piora significativamente a condição de vida das pessoas e produz uma verdadeira Faxina Étnica.
Vale ressaltar que o movimento negro, assim como outros movimentos sociais, é diverso. Não há uma única forma de organização do povo negro, nem muito menos uma única corrente de pensamento, portanto não há monopólio sobre a pauta, sobre o discurso e sobre a narrativa. Se colocar como a única voz legítima e legitimadora de verdadeiros representantes do povo negro, reforça saídas individuais, salvacionistas e que reforçam um elitismo incapaz de construir saídas coletivas e estruturais. Trabalho com a perspectiva de um movimento negro que se aquilombe: movimento negro popular, democrático, participativo e revolucionário.
Sem dúvida, nessas eleições temos o desafio de ampliar significativamente a representação negra, tanto no parlamento como no executivo, para fazer frente ao conservadorismo. Mas isso não deve estar dissociado de uma formulação programática que olhe com profundidade os dramas vividos por nosso povo e que busque saídas estruturais, coletivas e que estejam em contradição ao atual modelo econômico e social que tanto nos massacra.
É urgente a formulação de um programa antirracista que passe pelo enfrentamento do genocídio negro e a reformulação do sistema de justiça e das políticas de segurança pública, de enfretamento ao racismo ambiental, ampliação dos programas sociais, políticas de transferência de renda e taxação das grandes fortunas e um programa econômico robusto de geração de emprego, renda e arranjos produtivos a partir das comunidades negras e periféricas. Portanto, se faz necessário um projeto estratégico de ruptura e não de acomodação, para de fato enfrentarmos o racismo estrutural e garantir a emancipação de nosso povo.
Por Joselício Junior
Mais conhecido como Juninho, é jornalista, militante do movimento negro e Presidente Estadual do PSOL-SP