A QUESTÃO ECOSSOCIALISTA
*Por Djalma Nery, do PSOL de São Carlos.
Não nos regozijemos demasiadamente em face dessas vitórias humanas sobre a natureza.
Friedrich Engels
O ser humano vive da natureza significa que a natureza é seu corpo, com o qual ele precisa estar em processo contínuo para não morrer. Que a vida física e espiritual do ser humano está associada à natureza não tem outro sentido do que afirmar que a natureza está associada a si mesma, pois o ser humano é parte da natureza.
Karl Marx
Partimos do irrefutável: sem as condições adequadas de habitabilidade, a vida humana encontra-se sob risco. A interface com o mundo natural é uma condição para a nossa existência – dependemos da natureza e à ela estamos conectados. Discutir ecologia – e também socialismo – deve passar por esta premissa, ou fugirá à uma inevitabilidade indiscutível. Como escreveu certa vez o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro: “Somos natureza, ou não seremos”.
Os últimos 40 anos – marcados por um intenso desenvolvimento tecnológico, industrial e produtivo – propiciaram o ensejo para que o debate ecológico viesse a emergir com força, alçando-o à centralidade que hoje possui. Já não é mais possível oferecer uma análise social completa ou minimamente consequente sem falar da relação do ser humano com o seu entorno, com a natureza e as outras formas de vida.
Isso se dá, por um lado, devido à percepção da finitude material do planeta, que se faz cada vez mais óbvia já que a exploração daquilo que muitos chamam “recursos naturais” tem um limite – o limite de sua existência. Logo, o pensamento ‘econômico’ de crescimento linear infinito não pode se ajustar em um mundo finito, e precisa ser revisto, principalmente, no que diz respeito à sua relação com o mundo natural.
De outro lado, a ascensão do pensamento sistêmico[1] – que percebe a Terra como um organismo vivo onde todos somos partes conectadas de um mesmo todo, junto com outras formas de vida – modifica cada vez mais nossa percepção de mundo. Além disso, a ideia de ciclo torna-se inegável – no planeta Terra, tudo vem de algum lugar, e tudo vai para algum lugar; não existe “jogar fora” em um ambiente integrado. Essa visão deve reorientar nossa maneira de estar no mundo, e alimentar muitas experiências, reflexões e possibilidades.
Para entendermos o encontro entre esse tema aparentemente tão atual (a ecologia) e algo que se discute em escala mundial há pelo menos 150 anos, o socialismo, é necessário remontarmos a trajetória histórica de ambos, e encontrar o momento onde se cruzam e se unificam no nascimento do ecossocialismo. Se aceitamos a definição minimalista de que socialismo é a busca por um mundo mais justo, fraterno e igualitário, iremos perceber que, em uma dada perspectiva, na verdade, esses conceitos socialismo e ecologia, pelo meno em algumas de suas correntes, encontram-se naturalmente associados, pois possuem objetivos comuns.
Ambos defendem os valores qualitativos: o valor de uso, a satisfação das necessidades, a igualdade social, a preservação da natureza, o equilíbrio ecológico (…) Diz-se que as divergências de fundo são as que mantêm separados aos ‘vermelhos’ e aos ‘verdes’, aos marxistas e aos ecologistas. Os ecologistas acusam a Marx e Engels de produtivismo. Justifica-se essa acusação? Sim e não[2].
Michel Lowy continua, dizendo que a questão ecológica constitui-se enquanto um dos principais desafios à nova geração de marxistas e que existem argumentos para sustentar ambas as opções da ‘acusação’ feita acima. Por um lado, ninguém combateu mais a lógica capitalista de produção pela produção e acumulação de mercadorias e capital como um fim em si mesmo do que Marx. Ninguém mais do que ele defendeu a importância dos ‘valores de uso’ e o bem estar humano que depende da relação harmônica com o entorno.
Por outro lado, a fixação pela ‘missão civilizatória do capital’ e o ‘desenvolvimento das forças produtivas’ como caminho único para a revolução e a derrocada da sociedade de classes (reforçada por inúmeros pensadores posteriores), em conjunto com uma ausência de crítica severa ao industrialismo e a dilapidação do meio ambiente (fruto de uma época onde tal percepção fazia-se menos presente) apontam de fato para o positivismo e o produtivismo em Marx e Engels.
Ainda com as divergências, foi possível e necessário encontrar uma construção comum que unificasse ecologismo e marxismo. Mas nem sempre foi assim, e precisamos revisitar brevemente a história de ambos para entender porque chegou-se a conclusão da necessidade de se forjar uma terminologia específica para explicitar essa união, dando origem ao termo ecossocialismo.
SOCIALISMO: utopia antropocêntrica e ‘modernização do bem’
É preciso levar em conta que as pessoas são, em grande medida, reflexo do tempo em que vivem e suas subjetividades são formadas pelas experiências e possibilidades que as cercam. Marx e Engels – para citarmos diretamente dois expoentes na concepção daquilo que entendemos por socialismo hoje – foram sujeitos de seus tempos: a saber, meados do século XIX, momento marcado por intensos processos de industrialização, expansão e consolidação do Capital, e pela ausência de uma percepção massificada da finitude do planeta e, portanto, da necessidade de um pensamento ecologicamente orientado. Afinal, em um mundo sem internet, aviões, carros, rádio, e com uma população global 7 vezes menor do que a atual, realmente as problemáticas centrais trazidas pela ecologia pareciam distantes da realidade concreta da população.
Neste sentido, seria demais esperar que pessoas do passado resolvessem antecipadamente uma questão que não estava realmente posta para elas. Isso não quer dizer que Marx e Engels jamais pensaram na relação entre ser humano e natureza[3], mas que, talvez, em seu tempo, não tenham dado à temática, a importância que ela hoje exige.
Diversos teóricos apontam aquilo que seria a obsessão pela “missão civilizatória do Capital” nos escritos de Karl Marx. Ou seja: como etapa prévia a emancipação humana, seria necessário desenvolver ao máximo as forças produtivas, libertando os seres humanos da escravidão do trabalho, fazendo com que as máquinas e as tecnologias trabalhassem para prover nossas demandas materiais – uma realidade que facilmente poderia nos lançar à uma distopia, retratada em diversos filmes que abordam o tema.
Desta forma, alguns pressupostos apresentados por tais pensadores em termos de reordenação social traziam, em síntese, diversos elementos em comum com o positivismo, e a ânsia por um progresso material e tecnológico tão em voga à época. Tais pressupostos, à luz dos novos conhecimentos e fatos, mostram-se insatisfatórios perante um mundo finito e, no limite, até mesmo antiecológicos. Para dar um exemplo: as imensas fábricas ou os modelos centralizadores de produção (tais como os campos de monocultura do agronegócio) não constituiriam, a priori, um problema para os socialistas, mais preocupados com a distribuição (ou posse) dessa produção do que com seus métodos – o mais importante seria garantir que aquilo que fosse socialmente produzido fosse socialmente distribuído. Digo “a priori” pois aos socialistas do passado não foi dada a chance de vivenciar a produção de larga escala contemporânea em todo seu gigantismo e suas consequências e, talvez, se aqui hoje estivessem, reorientariam seus pensamentos e percepções no sentido do que hoje apontamos como ecossocialismo.
Porém, dada a difusão de perspectivas contemporâneas como a teoria da complexidade (MORIN, 2010); a teoria dos sistemas (VON BERTALANFFY, 1975), entre outras, que apontam críticas intrínsecas a essência dos modelos de industrialização, a centralização da produção e a questão da escala (SCHUMACHER, 2011), foi necessário ressignificar o que se entende por socialismo, pura e simplesmente, agregando ao mesmo o qualitativo ‘eco’, trazendo novos parâmetros à equação.
Isso se dá, também, porque não há um consenso entre os socialistas sobre a centralidade desta pauta, e alguns ainda defendem que a mesma é secundária em relação a luta de classes, a relação capital-trabalho e a exploração da mais-valia, por exemplo. Estes defendem que é preciso antes de mais nada pensar em um modelo socialmente justo de organização humana, ainda que isso signifique reproduzir os métodos de produção industriais e centralizadores do regime capitalista.
Aqui insere-se também a problemática da pós-modernidade, tão debatida em um momento de aparente falência das grandes utopias e de proliferação das lutas identitárias e setoriais que, algumas vezes, apresentam-se em detrimento de um embate sistêmico contra o Capital.
Após a Guerra Fria – e com a queda do muro de Berlim – alguns, como o historiador norte-americano Francis Fukuyama, decretaram o fim da história. Falava-se (até antes disso) na morte dos projetos globais de sociedade: não haveria uma resolução unificada para os problemas sociais e políticos da humanidade. As resoluções do grande conflito global capitalismo/comunismo haviam se dado em favor do primeiro, e já não haveriam polos concorrentes em disputa. Dali pra frente, se daria apenas o aprofundamento do projeto vitorioso. Tal situação enterraria então, na leitura de alguns, o que a modernidade havia trazido de mais emblemático.
O conceito de ‘modernidade’ pode ser descrito, entre outras coisas, pela racionalização da vida, pela superação de velhos axiomas e de condutas obscurantistas, e por uma tentativa de otimizar a existência através da ciência e do conhecimento. Tais características encaixariam-se facilmente em uma descrição de comunismo: um mundo racional, bastante diferente da irracionalidade insustentável e acumuladora da lógica capitalista. Há quem defenda que ‘O Manifesto do Partido Comunista’, de 1844, seria a obra fundamente da modernidade, pois demonstra a existência clara de um projeto articulado de sociedade baseado na razão e na ciência, tendo impactado toda a geopolítica do momento.
De maneira rasa e sucinta – para seguir com o recorte deste texto – a pós-modernidade se configura então de outra forma, relativizando caminhos únicos, apresentando um gigantesca multiplicidade de opiniões e possibilidades para a superação do estabelecido.
ECOLOGIA: caminho do meio, crítica da modernidade
O que traz de novo a ecologia para as lutas sociais afinal?
Antes de mais nada, é interessante dizer que as chamadas lutas identitárias ou setoriais trouxeram um ‘problema’ ao materialismo histórico dialético em sua concepção ortodoxa pois, muitas vezes, suas lutas setorizadas desfaziam (mesmo que aparentemente) tensões até então calcadas em um recorte de classe, transferindo-as para outras localidades. Por exemplo, a luta das mulheres poderia, a princípio, unificar mulheres de classes sociais distintas (burguesas e operárias) em torno de um objetivo comum – combater o patriarcado. O mesmo poderia se operar para as questões de racismo, homofobia, etc. Com a ecologia não foi diferente – de ricos a pobres, de patrões a empregados, a busca por um ambiente saudável poderia suplantar antagonismos de classe. Como o marxismo poderia lidar com isso?
De fato, sem a compreensão classista da sociedade, todas essas lutas, fragmentadas, encontram-se sob risco de não apresentar uma resposta global a problemática que as origina pois, em nossa concepção, todas estão associadas ao modo de produção hegemônico, e só podem ser superadas de fato com a superação do mesmo. Ou seja, racismo e capitalismo encontram-se associados e, para superar o primeiro, é preciso superar também o segundo, pois, nos marcos do atual sistema, toda conquista é transitória. Logo, assumindo a pluralidade da ecologia, existem escolas não classistas, que se desvinculam de um projeto global de enfrentamento, e preferem tratar a questão ambiental isoladamente, assumindo ser possível construir um mundo sustentável, com relações harmônicas com a natureza sem, necessariamente, superar o sistema capitalista. Nós, ecossocialistas, discordamos e nosso lema é: ecossocialismo ou barbárie. Não existem alternativas mediadoras.
Desta maneira, começamos a compreender como a ecologia, a princípio, emergiu no final dos anos 60 como um caminho do meio ante as polaridades políticas demarcadas da época[4], e se postulou com força aonde parecia não haver espaço para novas abordagens.
A crítica central que ela traz pode ser resumida na crítica à modernidade[5] como uma visão de mundo hegemonizada pela concepção linear de progresso, pelo cientificismo e pela razão. Tal visão se constituía enquanto elemento comum das duas grandes polaridades mundiais postas durante grande parte da segunda metade do século XX e, em especial, durante a Guerra Fria: os blocos capitalista e comunista do globo – ambos corriam para garantir e aumentar sua produtividade, calcados na noção de disputa pela hegemonia através do progresso científico. Mas a ecologia questiona o ‘como’ fazer, sem esquivar-se de questões concretas como garantir alimentação, abrigo e todas as condições necessárias à população mundial.
Esta crítica parte da percepção de que, ainda que tenham fins diferentes (em um caso, a superprodução visa aprofundar as desigualdades; em outro, diminuí-la), valendo-se dos mesmo métodos, a permanência do ser humano na Terra encontra-se ameaçada. Logo, repensar o modo de produção em sua totalidade faz-se necessário para garantir a continuidade da experiência humana. Podemos criar maneiras sustentáveis de produzir aquilo que se faz necessário, sem agredir a natureza e inviabilizar a vida das futuras gerações, às quais caberá a tarefa de aprimorar as relações sociais existentes, visando uma sociedade cada vez mais justa, fraterna e igualitária.
Com relação às perspectivas de matriz não europeias acerca da ecologia, poderíamos chamar de ‘ecologia não-oficial’ ou ‘ecologia ameríndia’ tudo aquilo associado às práticas do “Bem Viver” sistematizadas por Alberto Acosta (2015). O autor se apoia na visão de mundos de povos indígenas (como os kícwa, os aymara, os guaranis, etc) que compreendem a importância em se viver de modo harmonioso com a natureza, com os outros indivíduos de sua comunidade, como também consigo mesmos. Além da clareza no entendimento da necessidade da sensibilidade com o todo para se alcançar o bem viver, Acosta destaca a força resiliente dos povos indígenas no enfrentamento das opressões sofridas através dos séculos:
Os indígenas não são pré-modernos nem atrasados. Seus valores, experiências e práticas sintetizam uma civilização viva, que demonstrou capacidade para enfrentar a Modernidade colonial. Com suas propostas, imaginam um futuro distinto que já alimenta os debates globais. O Bem Viver faz um primeiro esforço para compilar os principais conceitos, algumas experiências e, sobretudo, determinadas práticas existentes nos Andes e na Amazônia, assim como em outros lugares do planeta (ACOSTA, 2015, p. 24).
Conscientes de que tais práticas não devem ser ignoradas num registro das diversas ecologias possíveis, a ecologia dos povos ameríndios oferece respostas às criticas aos projetos despolitizados de conservação da natureza e de desenvolvimento sustentável. O bem viver ancestral:
revela os erros e as limitações das diversas teorias do chamado desenvolvimento. Critica a própria ideia de desenvolvimento, transformada em uma enteléquia que rege a vida de grande parte da Humanidade – que, perversamente, jamais conseguirá alcançá-lo. Por outro lado, os países que se assumem como desenvolvidos mostram cada vez mais os sinais de seu mau desenvolvimento. E isso em um mundo em que as brechas que separam ricos e pobres, inclusive em países industrializados, se alargam permanentemente. A visão de mundo dos marginalizados pela história, particularmente dos povos e nacionalidades indígenas, é uma oportunidade para construir outros tipos de sociedades, sustentadas sobre uma convivência harmoniosa entre os seres humanos consigo mesmos e com a Natureza, a partir do reconhecimento dos diversos valores culturais existentes no planeta. Ou seja, trata-se de bem conviver em comunidade e na Natureza (ACOSTA, 2015, p. 24-25).
O intento em se retratar a profundidade das práticas indígenas ancestrais transcende a de reivindicar espaço histórico nas definições sobre as ecologias. Aquém do pouco desenvolvimento dos conceitos que este breve tópico nos permite, é possível encontrar entre as reflexões de Acosta ou na vivência e observação imediata destes povos, que a perspectiva crítica e integrada que buscamos por meio de ferramentas tecnológicas alcançar, já está desenvolvida e posta há muitas gerações. São estas práticas tão ‘rudimentares’ que abarcam as dimensões orgânica, ética e política de um ecologismo que serve à todos, e não somente a um projeto descarnado de civilização, que divide natureza, ambiente e economia, fracassando antes mesmo do seu início ao defender um projeto de integração por meio da valorização de fragmentos insustentáveis. Ainda nas palavras de Acosta:
A questão continua sendo política. Não podemos esperar uma solução “técnica”. Nosso mundo tem de ser recriado a partir do âmbito comunitário. Como consequência, temos de impulsionar um processo de transições movido por novas utopias. Outro mundo será possível se for pensado e organizado comunitariamente a partir dos Direitos Humanos – políticos, econômicos, sociais, culturais e ambientais dos indivíduos, das famílias e dos povos – e dos Direitos da Natureza (2015, p. 26).
A metodologia dos povos indígenas encontra mais coerência dentro de um propósito ecológico de mundo – através da restauração dos vínculos comunitários e das comunidades com a própria natureza – do que as perspectivas técnicas de restauração de equilíbrio.
PERMACULTURA: outra estrutura ou outra cultura?
Dentre as inúmeras experiências, escolas e propostas surgidas no bojo da contracultura mundial está a permacultura, ou cultura da permanência. Cunhada em meados dos anos 70 por dois australianos, ela visa a criação de ambientes, espaços e assentamos humanos sustentáveis e integrados com a natureza e seu entorno. Para isso, lança mão de várias técnicas, tecnologias e princípios balizados por uma ética inclusiva e integradora, além de assimilar cosmologias de povos tradicionais e indígenas. Rapidamente a proposta ganhou mundo, e hoje já são milhares os centros e ‘estações’ que vivem e praticam a permacultura ao redor do mundo, buscando colocar em prática esse tão falado ‘outro mundo possível’.
Apesar de muitos enxergarem na permacultura apenas técnicas de plantio e de construção verde e sustentável, ela se apresenta como muito mais de que isso: a permacultura é todo um projeto de sociedade, baseado em uma ética de existência e de vida nas relações humanas e para com as outras formas de vida do planeta.
Além disso, ela ganha cada vez mais espaço dentro do ambiente urbano, latente de contradições e aonde se fazem mais urgentes transformações estruturais, concretas e práticas, como o vislumbre de outras possibilidades. Afinal, o que são as cidades senão um reflexo material das nossas escolhas individuais e coletivas?
Ao mesmo tempo em que o meio em que vivemos condiciona várias de nossas percepções, ele também é construído a partir de uma sequência de decisões e caminhos trilhados. Existe uma relação dialética entre o dentro e o fora: um influencia o outro, e é por ele influenciado. É por isso que a maneira que escolhemos nos alimentar, nos vestir, construir nossas casas, lidar com a água, etc, influencia diretamente no resultado de quem somos, assim como nossa existência dá o tom e a cara destas escolhas. É preciso observarmos essas manifestações simultaneamente como causa e consequência de uma dada conjuntura. E basta um pouco de sensibilidade para perceber que há algo de errado com a maneira como nos organizamos, principalmente no ambiente urbano, onde as contradições e problemas se intensificam e proliferam mais rapidamente.
Por onde começar a mudança? Alguns defendem que toda a mudança parte do indivíduo; outros dizem que as mudanças mais relevantes são as coletivas, sociais. E desta divergência, nasce muito descompasso. Num esforço de síntese temperado com a vivência em movimentos sociais, em comunidades alternativas e práticas contemporâneas, sinto que a resposta não está em nenhum dos polos, mas em algum lugar entre eles: é preciso simultaneamente promover mudanças individuais e coletivas, pois ambas retroalimentam-se. É claro que as mudanças de maior impacto são as que alcançam mais gente, mas não podemos descartar a capacidade de dispersão das escolhas pessoais.
A permacultura é uma grande inspiração neste sentido. Acreditamos que é possível realizar uma transição civilizacional a partir de novas possibilidades concretas, demonstradas e vividas na prática. Mas o intuito não deve ser o de fazer isso apenas em nosso quintal: acreditamos na capacidade de fazer com que outras escolhas se tornem cada vez mais populares, transformando-se em política pública e se difundindo por toda a sociedade. É claro que não podemos ser ingênuos, e ignorar que se dará embate nessa transição, uma vez que algumas poucas pessoas se beneficiam diretamente do caos e da miséria, e constroem seus impérios com base na dilapidação da Terra e na exploração alheia. Contra este tipo de prática, teremos que tornar tão óbvios os benefícios de outras escolhas, que eles não mais terão a escolha de fazer mal ao mundo, pois a população, organizada e convencida, não permitirá. Permacultura é uma maneira de promover autonomia; é busca de reconexão; valorização de conhecimentos tradicionais; combate a terceirização e a mercantilização da vida. É o valor de uso sobre o valor de troca. Ela é, basicamente, uma maneira de organizar a vida.
Como todos os campos do conhecimento a permacultura é também plural, e existem aqueles que a praticam apenas em sua dimensão técnica e de benefícios pessoais, desconectados de uma leitura social mais ampla. Por isso, também é preciso aprimorar e aprofundar as práticas e reflexões. Essas multiplicidades explicam em partes a necessidade de um conceito que agregue definitiva e irrefutavelmente os pólos da ecologia e da luta socialista em uma única força: o ecossocialismo.
ENTÃO, ECOSSOCIALISMO?
Assim surge o ecossocialismo como uma via de harmonização daquilo que consideramos descuidos ou perigos na atuação ortodoxa do materialismo histórico e da ecologia conservacionista ‘pura’ – ao primeiro, é preciso acrescentar uma dimensão de crítica ao método de produção; ao segundo, faz-se importante impedir uma prática segmentada que acredita na possibilidade no bem-estar ecológico desvinculado do bem-estar social coletivo.
Pensando especificamente no contexto do estado de São Paulo, região mais industrializada do país, é possível perceber que o desenvolvimento moderno/capitalista impacta diretamente à condição de vida de toda a população: das 15 cidades consideradas as mais poluídas em quesito atmosférico, 9 encontram-se em São Paulo[6]. Em outras palavras, o direito a um meio ambiente saudável preconizado na Constituição Federal brasileiro encontra-se subjugado ao modo de produção e à demanda por lucro e acumulação, uma vez que o resultado do que é produzido nas inúmeras indústrias do estado não é socializado, mas sim o seu revés, cuja conta é paga pela população como um todo. Eis a grande questão: o sistema capitalista externaliza seu impacto ambiental, apropriando-se privadamente da natureza mas socializando os danos que a ela causa.
Outro exemplo importante é a privatização dos parques estaduais proposta pela gestão Alckmin em SP: 25 unidades de preservação consolidadas em áreas públicas estão a ponto de serem entregues sob concessão à iniciativa privada para a exploração florestal e turística, sob a justificativa de que é possível garantir a manutenção da função ambiental das mesmas associada à exploração comercial particular, desonerando o Estado de seus compromissos e gastos com tais unidades.
Também segundo à Constituição Federal, a preservação do meio ambiente é tarefa do Estado, fato que embasa a tese de inconstitucionalidade na concessão dos parques. Citando as palavras do deputado estadual Carlos Giannazi, do PSOL,
O projeto é um absurdo por diversos motivos (…) Primeiro por afetar diretamente a população, que será cerceada do seu direito de freqüentar uma área pública; depois por autorizar a exploração madeireira e sub-produtos florestais, e ainda pelo desrespeito ao meio ambiente, já que as áreas receberão manejos de toda sorte em função de sua exploração comercial. Isso para não dizer das comunidade que habitam as áreas há séculos e que não têm noção do que vai ocorrer com suas vidas[7]
Trata-se de mais demonstração de que a preservação ecológica encontra imensos limites dentro do atual sistema, percepção que reforça a tese ecossocialista de associação das lutas e de um processo verdadeiramente revolucionário como condição para a preservação ambiental e da relação harmoniosa com a natureza.
Por último, o ecossocialismo traz, também, uma dimensão da práxis individual muitas vezes negligenciada pelos círculos socialistas. Esse ‘outro mundo possível’ pode e deve ser vislumbrado (ainda que não possa ser concretizado a contento) em experiências pontuais que nos sejam possíveis, e inspirem processos mais profundos e amplos, tais como as diversas experiências comunitárias em ecovilas, centros de permacultura e agroecologia espalhadas pelo mundo. Obviamente sua influência é restrita, porém tais práticas não devem ser desvalorizadas ou desconsideradas, e sim estimuladas e vivenciadas.
A existência do termo, por si, indica que ainda falta um pouco para podermos dele nos desfazer – esse seria nosso ideal: ter as coisas tão associadas, ao ponto de não necessitar de um qualitativo extra e, ao falar de socialismo ou de ecologia, simplesmente, já abarcar todas as questões acima elencadas que nos parecem cruciais.
Temos a convicção que se a camarada Rosa Luxemburgo estivesse aqui entre nós, muito provavelmente, ela gritaria conosco: ECOSSOCIALISMO OU BARBÁRIE!
REFERÊNCIAS
ENGELS, Friedrich. A dialética da natureza. Paz e Terra, 1979.
MARX, Karl. Sobre a nacionalização da terra. Estudos de Sociologia, v. 2, n. 3, 2008.
MORIN, Edgar; LE MOIGNE, Jean-Louis. A inteligência da complexidade. 2000.
VON BERTALANFFY, Ludwig. Teoria geral dos sistemas. Vozes, 1975.
DUPUY, Jean Pierre. Introdução à crítica da ecologia política. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1980.
SCHUMACHER, Ernst Friedrich. Small is beautiful: A study of economics as if people mattered. Random House, 2011.
http://culturaebarbarie.org/sopro/outros/suficiencia.html
[1] – A visão sistêmica é parte de um novo paradigma emergente das ciências que surge no século XX e faz oposição ao pensamento mecanicista do século XVII representando principalmente pelas figuras de Descartes, Newton e Bacon. Ele aponta, em suma, para a não fragmentação das esferas da vida e da ação humana, a partir da perspectiva de integração entre ser humano e natureza, afirmando a interconexão latente que nos une como em uma “Teia da Vida” (obra de um dos principais expoentes dessa corrente de pensamento, Fritjof Kapra). Também confere valor científico a subjetividade (através das artes e da espiritualidade), colocando-a como componente fundamental, ao lado da racionalidade, para promover um real desenvolvimento humano. Dessa maneira, estimula a dinâmica de transversalidade e interdisciplinaridade na pesquisa, no ensino e na ciência de um modo geral.
[2] – LOWY, 2004, p. 2. Tradução nossa. Disponível em: <http://www.anticapitalistas.org/IMG/pdf/TC_Ecosocialismo.pdf>
[3] – Muito pelo contrário, como podemos constatar em diversos textos e excertos como em “A dialética da natureza” (ENGELS, 1979); “Sobre a nacionalização da terra” (MARX, 2008); e diversos trechos do ‘Capital’ e dos “Manuscritos Econômico-Filosóficos” onde tal temática está bastante presente.
[4] – Sobre isso, Dupuy (1980) oferece um interessante panorama, comentando aquela que seria a primeira candidatura oficialmente ecológica a nível mundial, demarcando os primeiros passos da ecologia na política institucional (após os ‘sucessos’ na luta anti-nuclear): o candidato à presidência da França, em 1974, o ecologista e agrônomo René Dumont.
[5] – Sobre este ponto, recomendo este vídeo onde toco exatamente neste grande diferencial do pensamento ecológico: https://www.facebook.com/djalmaneryneto/videos/341354122880545/
[6] – Matéria disponível em: <http://controversia.com.br/3109>.
[7] – Disponível em: <http://www.pragmatismopolitico.com.br/2016/06/privatizacao-de-25-parques-publicos-e-aprovada-em-sao-paulo.html>