Feminismo, fenômeno de massa? (uma reflexão preliminar)
“WE SHOULD ALL BE FEMINISTS”
Depois de longa temporada em baixa, o Feminismo volta à moda desfilado pela Chanel em seu Boulevard primavera/verão 2014 durante a Paris Fashion Week. Daí até os discursos do Oscar foi um pulo. Igualdade salarial entre homens e mulheres, representatividade, solidariedade entre as mulheres: Feminismo é palavra corrente, com direito a edição especial da revista Elle trazendo Emma Watson, embaixadora da ONU Mulheres, na capa. Longe dos holofotes, esse fenômeno se manifesta com o aparecimento de centenas de páginas e perfis autoproclamados feministas nas redes sociais, reunindo dezenas de milhares de seguidores. Sai de cena o tabu e a figura da militante fora dos padrões de beleza, mal amada. O Feminismo agora é POP, se veste bem, tem pele e cabelos impecáveis. É “flawless”, como diria Beyoncé.
Ao rés-do-chão, desde o começo da década, as mulheres organizadas em partidos e coletivos de esquerda atuantes no movimento estudantil brasileiro iniciaram um processo de composição de Frentes Feministas nas universidades com o objetivo de enfrentar os casos de violência nos campi silenciados pelas reitorias e administrações; posicionar as pautas feministas dentro das reivindicações estudantis; e aumentar o espaço político das mulheres dentro dos fóruns estudantis. Essas movimentações fomentaram a realização de Encontros de Mulheres Estudantes e a criação de coletivos de curso unitários, que ganham novo fôlego a partir de 2013.
As grandes manifestações de rua de 2013 potencializam um descolamento já corrente entre o engajamento político dentro da universidade e os fóruns tradicionais e reivindicações históricas do Movimento Estudantil. As Frentes e coletivos impulsionados pela esquerda organizada passam a congregar cada vez mais pequenos coletivos locais sem ligação a partidos, feministas autonomistas, moderadoras de páginas feministas no Facebook. Estudantes que enxergam no Feminismo, e não no Movimento Estudantil, sua inserção na vida política da Universidade.
Vale ressaltar que um fenômeno semelhante ocorre no âmbito do Movimento Negro, como resultado de uma década de políticas afirmativas e a adoção do sistema de reservas de vagas para negros e pardos por importantes instituições de ensino superior. Esta nova intelectualidade negra que se auto organiza dentro das universidades brasileiras tem papel fundamental no debate feminista atual, muitas vezes polarizando com concepções liberais no seio do movimento feminista, dado o caráter intrinsecamente anticapitalista e antineoliberal da luta anti racista no Brasil.
MEU CORPO É UM CAMPO DE BATALHA
Não somente como dimensão simbólica, mas física, o corpo é território privilegiado de disputa para as feministas contemporâneas em sua pluralidade de formas e trajetórias, e múltiplas orientações do desejo. O Transfeminismo conquista terreno e reforça a noção de interseccionalidade no feminismo: as mulheres são várias como suas lutas e não podem ser reduzidas a um “universal” que apague suas especificidades e desigualdades. A insígnia “meu corpo, minhas regras” sintetiza um conjunto de lutas por autonomia, em defesa de direitos sexuais e reprodutivos.
As mulheres brasileiras saem às ruas em contraofensiva à cultura de estupro, seja de forma organizada, como no caso das “Marchas das Vadias” (que ganham edições anuais não somente em capitais, com distintas composições), dos atos públicos pela condenação de acusados de estupro ou ações jurídicas pela derrubada de sites de apologia ao estupro; seja em protestos espontâneos contra vazamentos de vídeos íntimos e assédio sexual como os que têm ocorrido em pequenas cidades do interior do país.
A maternidade entra na pauta feminista como direito das mulheres, ligada a campanhas e projetos de lei contra a violência obstétrica e pela humanização do parto através do Sistema Único de Saúde (SUS). Ao mesmo tempo, resistimos às investidas contra o aborto legal (no Brasil, aplicável somente a gravidez resultante de estupro, risco à vida da gestante e anencefalia do feto), e contra tentativas de retroceder em direitos sexuais elementares, como a simples garantia de atendimento integral, multidisciplinar e de urgência às mulheres vítimas de violência sexual nos aparelhos públicos de saúde, que a bancada religiosa no Congresso busca restringir.
A luta por autonomia é também cultural e identitária, encampada pelos movimentos de mulheres negras no resgate da simbologia do uso dos turbantes; o orgulho dos cabelos cacheados e crespos, em oposição às pressões da indústria da beleza; a denúncia do uso do blackfacing na dramaturgia, como recurso racista e misógino. Particularmente nos debates sobre sexualidade, o Feminismo Negro contribui com uma leitura menos moral e mais estrutural das relações, apresentando questionamentos importantes, a exemplo das ponderações à tentativa de ressignificação positiva do termo “vadia”. O movimento tem protagonizado importantes atos de rua, como a Marcha Nacional das Mulheres Negras, marcada para novembro deste ano, construída por todo o país, articulando ações regionais e nacionalizadas desde o final de 2014.
O direito ao prazer, a ocupação do espaço público e fim do assédio, o enfrentamento à objetificação e mercantilização dos corpos, a autoestima estão na ordem do dia e trazem à baila não somente novos debates e sujeitos, mas também embates ideológicos. Se difunde um discurso liberal, fundado em uma visão essencialista do gênero que suprime relações de classe e se apega ao mito do empoderamento individual, palatável aos veículos de mídia e que encontra eco na sociedade.
Apesar da diversidade de tendências em seu interior, o Movimento Feminista no Brasil se estabelece na segunda metade do século passado a partir da ação política das mulheres da esquerda, hegemonizado pela tradição marxista. Por um lado, esse novo cenário de fragmentação dos espaços de atuação gera uma postura adesista a posições liberais e teorias pós-modernas do gênero por certas correntes da esquerda socialista no intuito de catalisar essa disposição de luta. No outro extremo, de forma isolada, posturas sectárias negam o valor do engajamento de celebridades nas pautas e da massificação do ideário feminista.
O ESPAÇO POLÍTICO DAS MULHERES
Partindo de um momento em que, apesar de generalizados os espaços de auto organização das mulheres internamente, organismos autônomos eram exceção, essa virada tem impacto sobre as esquerdas brasileiras, em particular sobre os trabalhos de juventude, que buscam dialogar com o contingente de jovens mulheres que se informam, formam e se engajam no debate feminista através da rede e das ruas.
Do ponto de vista organizativo, mesmo as correntes políticas anteriormente mais refratárias à auto organização das mulheres e às pautas históricas do Movimento Feminista passam a apostar em instrumentos próprios, mais amplos, para intervenção no movimento de mulheres. Diminui a resistência aos mecanismos para implementação da paridade de gênero em direções partidárias, sindicais e no movimento social, e perde força entre as esquerdas brasileiras o rótulo “divisionista”, que não referenda a auto organização das mulheres.
Essa mudança gradual, interna às organizações clássicas da esquerda, é paralelamente acompanhada por iniciativas alheias a estes instrumentos, que se contrapõem em especial à forma Partido. Processos que apesar de simultâneos pouco dialogam. A iniciativa #partidA, por exemplo, conduzida por intelectuais e jovens feministas, busca responder ao mesmo tempo à baixa representatividade feminina na política institucional e à crise da democracia representativa, fundando um organismo a partir do protagonismo e das experiências de mulheres, propondo o que chamam de Democracia Feminista, como única democracia real possível.
O que há de novo nessa movimentação talvez seja a formulação de um instrumento próprio para a atuação das mulheres dentro da institucionalidade. Propiciar em melhores condições políticas e estruturais a disputa de candidatas mulheres é uma iniciativa importante e já levada a cabo por feministas brasileiras em outros momentos da nossa história através dos partidos de esquerda. Mas interessa sobretudo saber qual a proposta, o programa e a estratégia, para mais que promover mulheres para que ascendam a cargos de poder, subverter a lógica de poder capitalista-patriarcal para que as mulheres passem a ocupar sistematicamente os espaços políticos decisórios.
Neste contexto, para a esquerda socialista, afirmar um feminismo classista vai muito além do nível discursivo e da proposta de organizar na base as mulheres trabalhadoras. É assumir uma leitura de como a divisão sexual do trabalho e as relações sociais de gênero integram a estrutura da sociedade de classes. Assumir, nos termos da socióloga brasileira Heleieth Saffioti, opressão-exploração como par indissociável. Avançar em formulações que abram as organizações para as mulheres e estimulem seu protagonismo, provando-se instrumentos viáveis de atuação política das feministas.
É preciso admitir que a influência liberal não possui só deméritos. Ela traz à tona temas negligenciados de grande importância, sobre os quais o feminismo marxista começa a refletir de forma mais profunda, como a auto imagem, beleza e vestimentas, o orgasmo. Questões que dizem respeito ao entendimento das mulheres no mundo, sua autoestima intelectual, sua motivação para se posicionar publicamente, manifestar descontentamento, fazer política.
Dizem que Feminismo é a ideia radical de que as mulheres são gente. Não “empoderadas” pelo mérito e para o consumo, como quer o mercado. Para as marxistas, isso significa que nos tornamos conscientes de que somos sujeito de nossa própria história.
Carolina Peters é membro da Direção Nacional do PSOL (Brasil) e constrói o coletivo de mulheres Rosas de Março.