O golpe civil-militar de 1964 completou 50 anos nesta semana. Ao contrário de países sul-americanos que viveram experiências similares, o Brasil nunca fez verdadeiro ajuste de contas com seu passado recente.
Randolfe Rodrigues
Esse ajuste tanto diz respeito tanto à punição dos responsáveis por atos de tortura e assassinatos de civis sob a custódia do Estado, quanto às respostas para as demandas populares que ganhavam força às vésperas do episódio.
Comissões da Verdade têm propiciado a retomada do debate. Dezenas de famílias reivindicam saber o paradeiro e o direito de enterrar seus entes queridos, bem como a punição de seus algozes.
Novas evidências ajudam a passar a limpo esse período. Para que a justiça seja feita, mesmo tardiamente, é necessário revisar a Lei de Anistia e garantir a punição de crimes de agentes públicos (tema de campanha lançada pela Anistia Internacional em 1o de abril). É o que proponho com o Projeto de Lei 237/2013, sob relatoria do senador João Capiberibe (PSB-AP) na Comissão de Direitos Humanos do Senado.
Porém, depois das manifestações de junho de 2013, considero muito oportuna a reflexão sobre o que chamo de pauta interrompida. No início dos anos 60, vivíamos uma encruzilhada com paralelos no quadro atual. A população se mobilizava para que o progresso social não beneficiasse apenas uma minoria, propugnava que recursos naturais fossem controlados por empresas brasileiras e que houvesse uma desconcentração das propriedades de terras. E o povo ia às ruas reivindicando mais acesso à educação e diminuição das desigualdades regionais.
A participação popular ativa era um empecilho à implementação de um modelo de desenvolvimento excludente e vinculado aos interesses do capitalismo internacional. O golpe serviu para viabilizar outra lógica de desenvolvimento, e para calar a voz das ruas era necessário suprimir as liberdades democráticas.
O golpe interrompeu um país que dava certo, com a cultura em seu melhor momento. Entre 1946 e 1963, crescíamos em média 7,12% ao ano. O índice de GINI (mede concentração de renda) antes da ditadura mostrava um país menos desigual. Hoje, mesmo com a redemocratização, ainda não conseguimos atingir o índice pré-ruptura democrática. Ademais, entre 1964 e 1985, a dívida externa foi de US$ 3,4 bilhões para US$ 105,2 bilhões.
O golpe, além das atrocidades, significou oportunidades perdidas. Passados 50 anos, mesmo depois de profundas mudanças na economia, as principais demandas populares continuam presentes e necessárias.
Exemplos disso são a não realização da reforma agrária e a manutenção da concentração de renda. A opção pelo modelo exportador, que tem levado à reprimarização da economia, não criou condições para fortalecer o mercado consumidor interno e nem ajudou a tirar milhões de brasileiros da pobreza de forma consistente e duradoura.
Hoje, como ontem, garantir a participação direta dos cidadãos é processo a ser articulado com a mudança de rumo do nosso modelo de desenvolvimento. Faz-se urgente recuperar o tempo perdido e atender às demandas expressas nas mobilizações anteriores ao golpe, e que voltaram às ruas em junho de2013.
*Artigo publicado no Jornal Folha de S.Paulo, em 02/04/2014., em Opinião Tendências/Debates