É de admirar a simbologia. Na semana passada, o Rio de Janeiro foi palco de uma greve de garis. Dificilmente encontraremos uma classe de trabalhadores tratados de maneira tão explícita como subempregados desqualificados.
Vladimir Safatle
Recolher lixo, colocar a mão naquilo que os outros desprezaram e jogaram fora parece transformar tais pessoas na representação natural do fracasso humano, gente que alguns prefeririam não ver, pessoas invisíveis.
Assim, quando os garis do Rio de Janeiro declararam greve, logo na semana do sacrossanto Carnaval, o governo municipal compreendeu isso como um verdadeiro crime.
Como tais pessoas invisíveis ousavam manchar o mais belo cartão-postal do país?
Talvez não por outra razão o alcaide do momento, o senhor Eduardo Paes, resolveu colocar seu quepe de capitão de fragata e declarar estarmos, pura e simplesmente, diante de um motim.
Garis em greve só podem ser amotinados que esquecem qual é o seu lugar na escala de valor humano. Ou então, o que não deveria nos surpreender, agentes de Cuba, da Coreia do Norte, capachos de Hugo Chávez e comandados do último vilão do 007 estariam infiltrados na Comlurb (Companhia Municipal de Limpeza Urbana) pervertendo a boa índole do nosso povo.
Mas, sem se incomodar com a situação de amotinados de solo firme, lá foram os garis a fazer uma marcha de greve pelas ruas do Rio. E eis que o improvável acontece: a população sai às ruas para aplaudi-los. Nos meus 40 anos de passagem pelo mundo sublunar, não me lembro de ter visto grevistas serem aplaudidos na rua por populares. Dessa vez foi diferente.
Isso demonstra como parcelas da população não querem esquecer a situação de desprezo e espoliação na qual os trabalhadores pobres brasileiros vivem.
Eles estão dispostos a passar por situações individuais de desconforto, como não ter seu lixo recolhido, a continuar fingir não ver que ainda vivemos em uma brutalidade social insuportável.
Aplaudir sempre foi um gesto de quem reconhece a dignidade do que vê. Aplaudimos artistas pela dignidade da beleza. Aplaudimos oradores pela dignidade da inteligência e da força retórica. Aplaudimos garis pela dignidade dos humilhados que não temem bravatas e ameaças.
As pessoas que aplaudiram garis em greve deram a este país uma dignidade que nem sempre aparece.
Eles fizeram um pequeno gesto de forte carga política e que recupera o sentido do afeto político mais importante: a implicação e a solidariedade dos que deixam de lado, ao menos por um momento, interesses individuais. Naquele dia, o Rio de Janeiro mostrou ao país o caminho a seguir.
Artigo originalmente publicado no jornal Folha de S. Paulo de 11 de março de 2014