Foi de maneira brutal que o Brasil perdeu um de seus melhores cineastas.
Eduardo Coutinho, assassinado no domingo passado, aos 80 anos, foi responsável por elevar o documentário a um dos gêneros fundamentais do cinema nacional contemporâneo, funcionando como um dos motores de reflexão sobre a linguagem cinematográfica entre nós.
Vladimir Safatle
Filmes como “Cabra Marcado para Morrer” (1985), “Edifício Master” (2002), “Peões” (2004) e “Jogo de Cena” (2007) são, certamente, algumas das melhores obras cinematográficas produzidas no Brasil.
Emblemática é a dinâmica interna que gerou “Cabra Marcado para Morrer”.
Em 1964, Coutinho começa a filmar a história do assassinato de João Pedro Teixeira, um dos líderes das Ligas Camponesas. Semanas depois do início da filmagem, o golpe militar eclode, vários membros de sua equipe são presos e o filme desaparece. Em 1981, os negativos são reencontrados e Coutinho decide continuar o projeto, mas agora na forma de um documentário que retraça a trajetória da viúva de Teixeira e de seus filhos.
Nessa mudança, da ficção para o documentário, cria-se um dos filmes mais fortes a respeito da experiência subjetiva de viver em uma ditadura militar. Seu tempo não é o tempo dos fatos a serem descobertos ou das ficções narradas. Ele é o tempo do filme que interfere no presente e desencadeia elaborações que, até então, não puderam ser feitas.
Sua matéria-prima é o silêncio, o filme perdido, a vida cortada e a transformação do que se corta, do que se perde em um novo arranjo.
De certa forma, essa é a tônica de outro documentário maior produzido por Coutinho, a saber, “Peões”. Seu assunto são as grandes greves do ABC paulista, nos anos 70.
Greves que, a princípio, fracassaram, já que as reivindicações centrais dos trabalhadores não foram contempladas. Mas, ao contar a história de vários personagens “menores” da época, cujos nomes não foram parar nos livros de história, Coutinho consegue mostrar a transformação pela qual sujeitos passam ao viver um acontecimento ou, se quisermos, como sujeitos são produzidos por sua fidelidade a acontecimentos. Mais do que fatos, seu documentário mostra aquilo que o filósofo francês Gilles Deleuze (1925-1995) um dia nomeou de “o devir revolucionário das pessoas”.
Dessa maneira, os documentários de Eduardo Coutinho quebraram a dicotomia entre fato e ficção para instaurar uma categoria singular. Uma categoria performativa da produção, das imagens que produzem o que filmam.
Talvez não tenha sido por outra razão que, graças a obras como as dele, algumas das mais belas páginas da história do cinema nacional foram escritas.
*Artigo publicado originalmente na edição desta terça-feira (04) do jornal Folha de São Paulo.