Jean Wyllys: “Como a jornalista cafona se sentiria se um grupo de pessoas, fazendo “justiça com as próprias mãos”, decide linchá-la por sua apologia ao linchamento?”
por Jean Wyllys
“A mais triste nação, na época mais podre, compõe-se de possíveis grupos de linchadores”.
Esta frase é, na verdade, um verso de Caetano Veloso, que, no início na década de 1990, indignado com uma onda de linchamentos no Brasil ainda subdesenvolvido, escreveu a canção “O cu do mundo”. Recorrendo ao fato linguístico de que palavra “cu” poder ser classificada como adjetivo ou substantivo comum, Veloso canta que o Brasil , “cu do mundo” (periferia das potências e dos centros de decisão da política internacional), seria, pela frequência com que linchamentos acontecem por esse sítio, um “cu” (no pior sentido desse “adjetivo esdrúxulo”: sujo, fedido, péssimo, insuportável).
O linchamento é – imagino que todos saibam disso – a violência dura (espancamentos e assassinatos) perpetrada por um grupo de pessoas como punição contra um indivíduo acusado de ter praticado algum delito, mas sem o devido processo judicial e em detrimento dos direitos fundamentais de toda pessoa humana garantidos pelas leis.
Há uma controvérsia sobre a origem da palavra “linchamento”. Alguns autores a atribuem ao coronel Charles Lynch, que fazia “justiça com as próprias mãos” durante a guerra de independência dos Estados Unidos. Outros, porém, defendem que a palavra é derivada do fato de o capitão William Lynch, do estado da Virgínia, ter mantido, por volta de 1780, um grupo de pessoas que, à margem da lei, punia com morte violenta os inimigos.
Em ambos os casos, a violência praticada pelo grupo contra os delinquentes reais ou supostos estava eivada de ódio racial contra os índios e os negros. Aliás, esses grupos foram o embrião da Ku Klux Klan.
Duas décadas depois daquele desabafo em forma de canção feito por Caetano Veloso, a “subsombra desumana dos linchadores” a que ele se refere volta a escurecer o céu de nosso frágil estado democrático de direito.
Em Goiânia, moradores de rua são exterminados com requintes crueldade por “justiceiros” anônimos “cansados” dos pequenos delitos ou simplesmente da feiura que os sem-teto trazem à paisagem urbana (anônimos porque não há, por parte das polícias locais, boa vontade de empreender uma investigação rigorosa e eficaz que os identifique e possibilite que sejam punidos na forma da lei).
Na capital paulista, além dos moradores de rua, principalmente aqueles entregues ao abuso do crack, são vítimas de “justiceiros” também homossexuais e travestis, abatidos por espancamentos e/ou assassinatos cada vez mais violentos.
No Rio de Janeiro, capital, homeless pardos, malandros pretos, ladrões mulatos e outros cidadãos quase pretos considerados “suspeitos” por causa da cor da pele e/ou do jeito que se vestem que costumam frequentar o Aterro do Flamengo foram alvos de uma reação violenta de “justiceiros” locais, que, para mostrar o quanto desdenham das garantias jurídicas e o quanto se consideram acima das leis, ataram a um poste, com uma trava de bicicleta, um dos malandros pretos espancados (um adolescente despido de sua roupa e dignidade).
A reação clara e inequivocamente criminosa dos “justiceiros” e linchadores cariocas à presença da população marginal no parque que consideram seu ganhou, de imediato, o aval e o estímulo (sim, estímulo!) da jornalista Raquel Sheherazade, âncora do Jornal do SBT, emissora que ocupa o segundo lugar em audiência.
Sheherazade não só defendeu abertamente o linchamento do menor como afirmou que as pessoas “de bem” não têm outra resposta para o “estado de violência” que não a “justiça com as próprias mãos” (claro que ela estava se referindo apenas aos delitos praticados pelos pobres e negros, já que defendeu e justificou a delinquência do astro pop Justin Bieber), desprezando o – e debochando do – papel das polícias, do Ministério Público, do poder judiciário e dos defensores dos Direitos Humanos na mediação dos conflitos em sociedade.
Acontece que, sendo o linchamento ou justiça por conta própria crimes previstos no nosso código penal, a apologia e o estímulo a estes crimes também constituem um crime! E aí?
Embora o nome de Raquel Sheherazade circulasse por textos de ativistas indignados com suas opiniões tão medíocres quanto reacionárias, eu, até então, não tinha dado muita atenção a ela; nem mesmo quando me citou de maneira negativa em sua fervorosa defesa da permanência do deputado pastor Marco Feliciano na presidência da CDHM da Câmara, apesar das acusações de racismo e homofobia que pesavam sobre ele.
Para mim, até então, Sheherazade não passava de uma mulher cafona, fundamentalista religiosa, limitada intelectualmente e de repertório cultural estreito – uma espécie de Afanásio Jazadji de tailleur – que caiu nas graças de Sílvio Santos. Não tinha, portanto, motivos para lhe dar atenção. Agora, porém, depois de sua apologia ao linchamento e da boa recepção que esta teve nas redes sociais, não posso mais ignorá-la: preciso enfrentá-la!
O elogio de Sheherazade e seus simpatizantes aos “justiceiros” do Aterro do Flamengo materializa a velha tendência de se buscar, no que diz respeito à segurança pública, “soluções biográficas para contradições sistêmicas”, como diz o sociólogo alemão Ulrich Beck. Isso quer dizer que a jornalista e sua gente pertencem à tradição que trata a delinquência fruto das históricas desigualdade e injustiça sociais com métodos de tortura ou execução sumária dos delinquentes, ignorando o sistema que os produzem.
Se nos encontramos num “estado de violência”, como ela diz, é também porque seu discurso e o de boa parte da mídia associam pobreza e negritude à criminalidade, desumanizando as populações das periferias e as expulsando da comunidade moral.
Em sua visão de mundo estreita e sustentada em preconceitos, Sheherazade e os que lhe aplaudem, consideram a defesa dos Direitos Humanos dos pobres e dos marginais um estorvo para a segurança do “cidadão de bem”. Ora, isso não passa de estupidez!
Esses direitos, em sua formulação consagrada internacionalmente, são de todos e todas e não apenas de Raquel Sheherazade e sua turma. Os direitos à vida e à integridade física, bem como o direito à defesa num julgamento justo, não podem ser entendidos como privilégios de gente branca que mora em bairros privilegiados e tem renda para o consumismo – que é como Sheherazade os entendem. Esses direitos são também daquele adolescente espancado e atado a um poste por uma trava de bicicleta! Como a jornalista cafona se sentiria se um grupo de pessoas, fazendo “justiça com as próprias mãos”, decide linchá-la por sua apologia ao linchamento? Sheherazade deveria refletir sobre essa pergunta antes de estimular a barbárie mais uma vez.
Desacreditar o Estado Democrático de Direito em cadeia nacional para defender linchamento de um adolescente negro, pobre e supostamente delinquente é apodrecer nossa época; é fazer, do Brasil, o cu do mundo!
Jean Wyllys é deputado federal PSOL/RJ
Artigo originalmente publicado no site da REvista CArta Capital