Há algumas semanas, Rafael Correa — o mesmo presidente equatoriano eleito pelos movimentos sociais; que enfrentou o mercado financeiro pedindo a auditoria da dívida pública; que conduziu um processo constituinte cujo texto final foi redigido no masculino e feminino e divulgou campanhas governamentais de combate ao machismo — ameaçou renunciar ao posto caso fosse aprovada a descriminalização do aborto em caso de estupro. A proposta foi feita pela deputada Paola Pabón, de seu próprio partido. O argumento contrário do presidente era a defesa constitucional da “vida” (do feto) desde a concepção.
Carolina Peters
O que torna tão difícil o debate do aborto, inclusive dentro da própria esquerda? Parece insuficiente alegar que esta se dê em razão da influência da igreja progressista na construção de organizações de esquerda e nos movimentos de massa, caso comum na América Latina: outras tradições políticas, se não titubeiam na defesa de pautas feministas, por vezes concebem a luta das mulheres como uma questão puramente tática, quando não meramente instrumental.
O controle sobre os corpos e a sexualidade das mulheres, a imposição da maternidade, responde a um modelo pautado pela divisão sexual do trabalho, dentro do qual o trabalho doméstico não reconhecido e não remunerado realizado pelas mulheres gera, ainda que indiretamente, mais-valia. Também no campo do trabalho remunerado, as trabalhadoras recebem salários menores que os de homens no exercício da mesma função, diferença que chega, no Brasil, a uma remuneração 60% menor quando comparado o salário do homem branco ao da mulher negra. A defesa do aborto legal, garantido pelo sistema público de saúde; a defesa da autonomia das mulheres sobre seus corpos e da maternidade como uma escolha consciente e compartilhada; é uma questão de classe.
Estima-se que ocorram no Brasil 1 milhão de abortos por ano. Um dos maiores índices de mortalidade materna no país se dá em decorrência de procedimentos abortivos inseguros, afetando sobretudo as mulheres pobres, majoritariamente negras. Esses números se associam às taxas de homicídio crescentes entre a juventude negra e periférica levada a cabo pela intensa militarização das cidades; uma verdadeira Faxina Étnica. Com o avanço das políticas neoliberais privatistas e a transferência da gestão da saúde pública para Organizações Sociais de Saúde (OSS), muitas das quais instituições religiosas, o atendimento médico aos casos de complicações decorrentes de abortos clandestinos, bem como abortamentos espontâneos, é negligenciado. Há relatos numerosos de procedimentos realizados sem anestesia, constrangimento moral das mulheres e delação às autoridades policiais por parte dos profissionais de saúde. A intensa judicialização e penalização das mulheres também são marca da proibição do aborto no Brasil.
A defesa do aborto legal é parte da luta em defesa da saúde pública, contra as privatizações e a intervenção de entidades religiosas sobre o Estado supostamente laico. A privatização via OSS e o sucateamento do Sistema Único de Saúde (SUS) impõe ainda entraves para a garantia da interrupção voluntária da gestação nos casos previstos por lei, tais as resultantes de estupro, gravidez ectópica (fora do útero) ou de feto anencéfalo e nos casos em que esta represente risco à vida da mãe. Atualmente, há apenas 65 hospitais aptos a realizar o procedimento em todo o território brasileiro.
Do lado de cá do Atlântico, antes de avançar na conquista de direitos, o movimento feminista e a esquerda socialista se organizam para evitar retrocessos. Na contramão de nosso vizinho Uruguai, que legalizou o aborto até a décima segunda semana e viu zerar o índice de mortalidade, tramita no Congresso Nacional um projeto de “Estatuto do Nascituro”, que prevê direitos plenos ao feto desde a concepção, retrocedendo na lei atual em detrimento dos direitos da mulher. Este projeto de lei propõe, entre outras coisas, a dotação de uma “bolsa estupro” para as vítimas prosseguirem com a gestação e a garantia de direitos de paternidade aos estupradores. Países como Nicarágua e El Salvador, onde se adota uma legislação semelhante a esta proposta, de criminalização irrestrita do aborto (tipificado, inclusive, como crime hediondo), registram aumento na taxa de mortalidade materna, sobretudo em consequência de negligência médica diante da ameaça de processos criminais caso um tratamento resulte em risco para o feto.
O projeto em questão não simboliza uma iniciativa isolada de parlamentares conservadores, mas é expressão de uma bancada organizada no Congresso Nacional brasileiro, que em relação orgânica com os setores do agronegócio e peso na base do governo impulsionam a agenda conservadora no Planalto. Vale recordar que o aborto (ou antes, sua criminalização) foi o grande tema da disputa presidencial passada, sendo o segundo turno das eleições de 2010 marcado pela busca de adesão dos setores conservadores por parte de ambas as candidaturas.
Se por um lado as jornadas de junho representaram um destravamento das lutas sociais no Brasil, como se viu posteriormente pela mobilização nacional dos povos indígenas entre setembro e outubro, a greve massiva dos professores no Rio de Janeiro e tantas outras manifestações que seguem tomando as ruas por todo o país; por outro, as forças conservadoras continuam articuladas e em ofensiva. Nas ruas e no processo eleitoral que se abre no próximo ano, cabe à esquerda organizada se apropriar da pauta feminista e disputá-la no seio do povo, acumulando forças para garantirmos o que já conquistamos e podermos avançar.
Carolina Peters é da Executiva Estadual do PSOL SP