As manifestações que tomaram as ruas das cidades brasileiras mexem com as nossas categorias tradicionais de análise. Tudo o que se elabore a respeito será insuficiente, pré-texto e pretexto que justifica o não entendimento completo desse contexto singular. A régua usada para medir movimentos anteriores não parece ser suficiente para avaliar os atuais, que “não têm CNPJ”. Uma embocadura possível é fazer considerações a partir do que diziam alguns cartazes que os milhares de manifestantes, na sua maioria jovens, portavam. Afinal, como ensinou Fernando Pessoa (1888/1935), “quem não vê bem uma palavra não pode ver bem uma alma”:
NOVAS FORMAS PARA ANTIGAS DEMANDAS?
Reflexões sobre as manifestações de massa no Brasil, a partir de junho de 2013
Chico Alencar
1- “O gigante acordou” Não só agora. A história brasileira registra manifestações massivas e explosivas de caráter urbano. Em 1880, ainda no II Reinado, o Rio de Janeiro agitou-se por dias seguidos, em reação da população contra o aumento de 20 réis na passagem dos bondes, gerando repressão da cavalaria e do Exército e nada menos do que 10 mortes. A monarquia só caiu quase uma década depois. Então, tanto o ‘gigante’ já acordou antes quanto é possível que volte, agora, a adormecer – sedado pela inorganicidade dos protestos e pela sua extrema diversidade, reflexo de uma sociedade que, historicamente, tem mais estadania do que cidadania. Que os conservadores não se sintam aliviados, porém: seu sono tende a ser leve, assombrando com a possibilidade de acordar a qualquer momento. E cobrando de um Estado constituído para abrigar poderosos interesses privados em seu interior, divorciado da população, que vê seu aparato com desconfiança. A novidade foi a mobilização independente, a revelia de partidos, sindicatos e demais estruturas intermediárias da sociedade. E, às vezes, até contra elas. Isso não é necessariamente virtuoso ou atrasado, é singular. A direita tenta puxar a água das mobilizações para o seu moinho passadista. Setores de esquerda, no velho tom do profetismo depois do acontecido, insinuam que já apontavam há tempos os sinais desse ‘levante’. Reconheçamos que ninguém previu a dimensão que os protestos de junho tomaram.
2- “Não é por centavos, é por direitos”. A questão das tarifas foi a faísca que incendiou uma planície de insatisfações até então conformadas. A repressão policial adicionou combustível e demandas reprimidas de diversos setores provocaram o incandescente protesto “contra tudo o que aí está”. Há setores sociais novos, apelidados de ‘classe C’, que parecem ter chegado ao limite de sua estimulada capacidade de consumo. Agora, engarrafados nas ‘carrocracias’ urbanas, no sufoco da especulação que aumentou violentamente os preços dos aluguéis e dos imóveis, sem planos privados de saúde e possibilidades de pagar escolas particulares, clamam por serviços públicos de qualidade. A irritação cotidiana com a péssima mobilidade urbana do país – segundo o IBGE, apenas 3,8% dos nossos 5.567 municípios têm Plano Diretor de Transportes, embora 74% deles possuam estrutura administrativa/burocrática para o setor – criou caldo de cultura que engrossou os protestos. Contradições do processo capitalista brasileiro, que incorpora novos setores, promove novas identidades reivindicantes e não consegue resolver as demandas sociais daí decorrentes.
3- “Queremos escolas e hospitais padrão Fifa”. Estádios suntuosos foram reformados ou construídos pelo consórcio negocista Fifa-Governo Brasileiro-Parlamento – que aprovou a Lei Geral da Copa e o Regime Diferenciado de Contratações de Obras Públicas, dando arcabouço jurídico aos empreendimentos espúrios. As arenas faraônicas cumpriram papel pedagógico, ao demonstrar que recursos existem, que prazos podem ser cumpridos… e a falta de critérios no uso do dinheiro público, que não chega para escolas e hospitais. Os megaeventos, daqui para a frente, serão polos provocadores desses protestos. O “padrão Fifa” que se reclama, por óbvio, não é o da gestão da entidade, com tantas denúncias de corrupção. A dimensão de direitos sociais e coletivos que as manifestações apresentaram é inquestionável. E mesmo uma perspectiva história, com leitura da trajetória de desigualdade e Poder Público a serviço das elites, foi quantificada na praça pública (provavelmente não percebida ainda por boa parte dos que foram às ruas): “são 513 anos e 20 centavos” .
4- “Fora todos os governos!”. A tônica personalista da política vigente levou a uma contradição: há 3 meses, a aprovação ao desempenho dos governantes – no plano federal e estadual – já contrastava com a avaliação das políticas públicas de saúde, educação, segurança, moradia e trânsito, de tendência claramente negativa. Nas ruas, o repúdio era contra os partidos, pois, no senso comum, nenhum presta. De fato, desde o fim da ditadura são 30 anos de legendas quase sempre insossas, meras máquinas burocráticas de fazer votos e reproduzir mandatos. Pesquisa recente revela que 81% dos consultados os consideram corruptos, sem exceção. A rejeição é também à péssima qualidade dos serviços públicos e contra os meios de comunicação de massa, com seu noticiário interessado. Tudo foi posto em questão por uma geração que não conheceu o PT contestador e sim o do poder. Que não viveu qualquer polarização política, mas sim o avassalador processo de ‘peemedebização’ e despolitização da política, com sua devassidão ética, azeitada máquina de captar votos e voracidade de ocupação de espaços, além do esmaecimento das fronteiras ideológicas entre direita e esquerda.
5- “Saí do Facebook!” A maior novidade é a articulação em rede saindo da telinha para a vida real: ‘o post nos libertará!’. Nunca na história desse país houve tamanho “enxameamento viral”, de uma certa forma mais ‘social’ que ‘político’, e que tende a ser não contínuo e crescente, mas intermitente, como um ‘foco guerrilheiro pós-moderno’ que surpreende o poder com ações ousadas, exemplares, e depois recua – sem sequer saber da existência do manual do velho Che e das estratégias do general Giap, herói da resistência vietnamita contra as potências imperialistas… As manifestações revelavam um alentador desejo de participação, de cada um ser ator de sua história – de certa forma, cada pessoa sendo sua própria manifestação. No contexto ideológico do hiperindividualismo capitalista em que vivemos, muitos, inteiramente à margem de partidos, sindicatos, grêmios e associações, levaram demandas a partir de sua percepção pessoal, coletivizando-as em sua debutância militante, colocando-as na cena pública. Impossível não se expressar ali também pleitos de viés conservador que estão no senso comum, como a redução da maioridade penal, o sentimento antipolítica e de negação da militância organizada. E o elogio – até com certa arrogância – do espontaneísmo e de uma democracia exclusivamente direta, sem qualquer traço orgânico. Visão ingênua e simplista, irrealizável na sociedade de massas do século XXI.
6- “Penso, logo não assisto”. As redes sociais confrontaram as redes empresariais e seus grupos restritos, monopolistas. A mídia direta polarizou com a mídia tradicional, embora venham desta – especializada, por dever de ofício – a maioria das intensas e diversas informações que circulam nas redes. Inegável que a internet promove uma democratização dos meios de comunicação, abalando a força indutora da mídia grande, questionadíssima em todas as manifestações. Não por acaso está montada uma rede de espionagem, a partir dos EUA, para o controle destas informações, além de, em alguns países, a internet ser rigorosamente controlada e restrita. Nas passeatas, a cobertura das TVs foi hostilizada a ponto de seus repórteres terem que ir sem a canopla dos microfones com as logomarcas de suas empresas. Tão questionada como os partidos, a mídia grande comercial, por óbvio, pouco destacou esse aspecto dos protestos. Mesmo os jornais impressos, muitos pertencentes à mesma rede de comunicação, não noticiaram essa forte contestação. Fundamentalismos religiosos também foram fustigados.
7- “Negociação é enrolação, queremos solução!” Mais que busca por negociação, os atos de rebeldia não demandavam das autoridades que recebessem uma ‘comissão’ para apresentar a ‘pauta de reivindicações’. Não foram constituídos interlocutores. Era como se a multidão de anônimos que assaltou a esfera pública, afirmasse que quem tem a obrigação de decodificar e formular políticas públicas a partir das demandas necessariamente difusas – e, aqui e ali, confusas – são os agentes políticos que se assumem como tais ou estão mandatados para tanto. “Quem quiser nos ouvir, ouça”: a cidadania – diversa e não mais dispersa – aponta os problemas, com a autenticidade de quem os sofre na carne e na alma. Resolvê-los é tarefa dos que são pagos por ela para esse serviço, que é político e técnico. Desafio grande para quem andava tão blindado contra as massas, só consideradas como de manobra nos anos eleitorais. Foi comovente ver governos acuados, revogando o “irrevogável” (a começar pela própria empáfia do Poder). A força da multidão tradicionalmente tão manipulável deixou perplexos os que se julgavam inquestionáveis no seu parasitismo mandonista. Bagunçou o roteiro dos poderosos. Mas as classes dominantes não ficarão sossegadas enquanto não reorganizarem o cenário de sua dominação. Já operam nesse sentido, com todo o seu aparato, inclusive midiático, para ‘domesticar a rebeldia’.
8- “Quem luta, conquista”. Revelando a força da pressão direta da praça sobre os palácios – antiga proclamação das esquerdas -, as manifestações já produziram resultados concretos, tanto em ações do Poder Executivo (redução de tarifa para 70% da população de cidades grandes e médias e anúncio de projetos para melhorar a mobilidade urbana), do Legislativo (acelerando-se a aprovação de matérias que tramitavam em passo lento) e mesmo do Judiciário (prisão de um deputado ladrão). As diferentes tribos sem tribunos, ocupando os espaços centrais das cidades, constituíram uma original e multifacetada tribuna popular. Essa tribuna informal disse, sem dizer, que democracia é mais que votar. A antiga cultura participativa da qual emergiu o PT, atualizada, negou o ‘mestre’ hoje acomodado. O não-palanque, sem microfones a serem disputados, afirmou a ânsia por uma sociedade de direitos, onde o ideal de consumo não pode mais ser o de se endividar para comprar carro mas ter transporte coletivo decente. As manifestações de junho produziram, também, um efeito-demonstração: de lá para cá centenas de pequenos movimentos reivindicatórios eclodiram ou se reanimaram. E, ao menos até aqui, com alguma atenção da mídia grande, que habitualmente os desconsidera totalmente.
9- “País mudo não muda”. Só o prosseguimento das manifestações tirará da inércia os paquidérmicos Poderes da República. Ao contrário de alguns outros movimentos, no Brasil e no mundo, não há aqui, até o momento, formulação de tomada de Poder, e sim seu questionamento radical. Semelhante ao ‘Ocupa Wall Street’, aqui se enfatiza mais o que não se quer do que o que se quer. A ocupação dos espaços públicos por multidões manifestantes – multiclassistas, destaque-se – questiona a lógica do poder que passa pelo controle do território, proclamado como ‘dever de manutenção da ordem’. Reivindicantes/protestantes presentes e visíveis alteram a natureza da tradicional ‘impotência’ das massas frente ao poder estabelecido. Esse autoempoderamento abre a possibilidade estimulante de se estar fazendo história. Para Manuel Castells, sociólogo estudioso da sociedade em redes, “é o caos criativo. Anormal seriam legiões em ordem, organizadas por uma única bandeira e lideradas por burocratas partidários. O espaço público reúne a sociedade em sua diversidade: a direita, a esquerda, os malucos, os sonhadores, os realistas, os ativistas, os piadistas, os revoltados…” Autor, entre outras obras, do recente “Rebeldes de Indignação e Esperança”, Castells diz que esses movimentos buscam mais um sentido de vida, que mesmo uma alardeada prosperidade e/ou econômica não trouxe, do que conquistar os aparelhos estatais e, a partir dali, destruir o sistema. Ressalta a trilogia da trilha das redes: “conectar mentes, criar significados, contestar o poder”.
10- “Não nos representam!” A este reiterado brado, a reação foi a afirmação, correta, de que sem partidos não há democracia. É imprescindível entender, porém, que os partidos não são mais a única forma de representação da sociedade, perderam esse monopólio e andam cada vez mais dissociados de suas vontades, seja por seu controle caciquista (prática dos da direita), seja por suas autofagias e baluartismos (costumeiros nos de esquerda). Aliás, os grandes partidos brasileiros – que sofrem de ‘nanismo moral’ – e os ditos ‘nanicos’, legendas de aluguel, também não querem aprofundar a democracia, e rejeitam mecanismos de transparência e participação direta da população. Não seria exagero dizer que com esses partidos não há democracia! O galopante personalismo político, com seus caciques e pré-candidatos a tudo, no qual as celebridades individuais valem mais que os colegiados e os programas, recuou, ao menos momentaneamente. Os ‘presidenciáveis’ do sistema, com seus simulacros de disputas antecipadas, refluíram para seus nichos tradicionais de atuação, cancelaram agendas, aguardam um momento mais propício para voltar à cena e reocupar o noticiário sucessório. Do ponto de vista das organizações políticas, só tenderão a produzir algum encantamento os partidos-movimento, articulados em ruas e redes.
11- “Vândalo é o Estado”. A sociedade de massas e as grandes metrópoles estimulam mentalidades competitivas e comportamentos de forte tom agressivo, como se vê diariamente até nas discussões de trânsito. A tensão urbana do sofrido cotidiano explode com frequência, sem controle racional possível.As fagulhas no campo seco favorecem o incêndio, que também é desejado – e, volta e meia, até estimulado – pelos que querem mais repressão e fechamento, os reacionários sempre intolerantes a mais liberdade e mais amplos direitos. É fato que diversas manifestações acabaram por sacudir uma ‘cauda envenenada’, que reunia desde jovens no limiar da marginalização – no Brasil, cerca de 24 milhões entre 15 e 25 anos foram excluídos da escola e do mundo do trabalho – até os ditos mais politizados, defensores da ‘ação direta contra os símbolos do estado e do capital’, entre eles anarcopunks e ‘blacks blocs’. Chegavam encapuzados e com artefatos explosivos de fabricação caseira em manifestações que clamavam por transparência e não violência. Muitos tinham o ânimo maior de confrontar a polícia. Esta, despreparada e militarizada, vendo em todos o arcaico “inimigo interno” dos tempos da Guerra Fria, vinha disposta a, sendo fustigada ou não, atacar tudo e todos, sem critério e economia de bombas, gases, cassetetes, além da tática dos provocadores infiltrados e de forjar flagrantes e, artificialmente, colocar “armas” nas mãos dos manifestantes. A repressão inaudita das PMs foi, sem dúvida, um fator de crescimento das mobilizações, como protesto contra a violência estatal. O “vandalismo” do abandono de equipamentos públicos, sobretudo nas periferias, e da subtração de recursos, que a corrupção estrutural realiza, foram constante e corretamente denunciados.
12- “Eu sou qualquer pessoa, sou todo mundo, sou ninguém” É verdade, por outro lado, que o vazio ideológico e a progressão, nos tempos atuais, da distopia, produzem ‘rebeliões do efêmero’, com uma espécie de solidariedade pós-moderna eventual, com o compartilhamento de reivindicações particularistas. Jovens representantes da Federação Anarquista, por outro lado, costumam lembrar a bela consigna “povo forte não precisa de líderes”. Frase de Emiliano Zapata, principal líder da Revolução Mexicana do início do século passado… “Podemos ser qualquer pessoa, elas se apropriam das suas próprias lutas, não precisam ficar esperando alguém dizer o que fazer”, explicou Mayara Vivian, que é da coordenação do organizado Movimento Passe Livre de São Paulo. Alguma forma de organização e liderança, ainda que mutante e rotativa, é necessária. O sistema representativo atual não corresponde ao brado das ruas desde a sua fonte alimentadora: dos 513 deputados eleitos para a Câmara dos Deputados na atual Legislatura, 369 receberam recursos de corporações empresariais, e apenas 2% exclusivamente de pessoas físicas.
13- “Não tenho hospitais, não tenho escolas, não tenho transporte… E não tenho mais paciência também!”. No Brasil, a degradação da qualidade de vida das pessoas, sobretudo nos grandes centros, tem raízes estruturais. O chamado “inferno urbano” não se explica simplesmente por razões demográficas e imediatas, setoriais. Segundo o economista Reinaldo Gonçalves, o modelo liberal periférico, que a década do lulopetismo não reverteu, implicou “um país ‘invertebrado’, com a perda de legitimidade do Estado (Executivo, Legislativo e Judiciário) e das instituições representativas da sociedade civil (partidos políticos, centrais sindicais e estudantis, organizações não governamentais…). Trata-se de um social-liberalismo corrompido por patrimonialismo, clientelismo e corrupção e garantido pelo ‘invertebramento’ e pela fragilidade da sociedade civil”. Gonçalves lembra o crescente endividamento das famílias pobres e de classe média como fator de inquietação social, no contexto econômico de liberalização, privatização, desregulação, dominância do capital financeiro, subordinação e vulnerabilidade externa estrutural: “a distribuição limita-se à redistribuição incipente da renda entre os grupos da classe trabalhadora de tal forma que os interesses do grande capital são preservados; não há mudanças na estrutura primária de distribuição de riqueza e renda no que se refere aos rendimentos da classe trabalhadora versus renda do capital”.
14- “Não adianta rugir como um leão e votar como um jumento!”. Aqui há uma mediação com a democracia representativa tradicional, chamando a atenção do próprio cidadão eleitor: ele também é responsável pela degradação do sistema político, ao não dar um voto consciente nem acompanhar as instâncias propriamente políticas. Os muito interessados na políticagem de negócios prevalecente são alimentados pelos muitos “analfabetos políticos”, pouco interessados nessa dimensão essencial da existência. O sistema partidário-eleitoral em vigor, fulanizador, excludente, marqueteiro e fisiológico, favorece a compra de votos e a eleição de pessoas sem o menor espírito público, a despeito das leis que criminalizam a captação de sufrágio e tornam inelegíveis os ‘fichas-sujas’. Evidencia-se, por outro lado, que, se o reconhecimento das conquistas eleitorais e da democracia formal ainda guarda importância, as generosas aspirações das ‘revoluções’ de trabalhadores do século passado precisam ser revistas: ninguém, sendo sincero, pode afirmar como elas se dariam ou darão na atualidade das estruturas de classes, da segmentação e ‘desmaterialização’ da produção e do advento das novas tecnologias e de novas questões, cruciais, como as ambientais e das afirmações da diversidade de orientação sexual, etnicoculturais e de gênero. A afirmação de uma nova geração de direitos nos coloca questões inéditas.
15- “Se vocês não nos deixam sonhar, não os deixaremos dormir”. A propósito, Slavoj Zizek, em visita ao Occupy Wall Street (Liberty Plaza, Nova York), em 2011, alertava: “Não se apaixonem por si mesmos, nem pelo momento agradável que estamos tendo aqui. (…) O verdadeiro teste do seu valor é o que permanece no dia seguinte, ou a maneira como nossa vida cotidiana será modificada. Apaixonem-se pelo trabalho duro e paciente – somos o início, não o fim. (…) Há um caminho longo pela frente, e em pouco tempo teremos de enfrentar questões realmente difíceis, questões não sobre aquilo quenão queremos, mas sobre aquilo que queremos.(…) Qual organização pode substituir o capitalismo vigente? Que tipos de líderes nós precisamos? As alternativas do século XX obviamente não servem. (…) O problema maior não é a corrupção ou a ganância, mas o sistema que nos incita a ser corruptos. (…) Tentarão transformar isso aqui em um protesto moral inofensivo. Mas a razão de estarmos reunidos é o fato de já não aceitarmos um mundo onde reciclar latas de Coca-Cola, dar alguns dólares para entidades caritativas ou comprar cappuccino da Starbucks, que reverte 1% da renda para os pobres do Terceiro Mundo, seria suficiente para nos sentirmos bem. Depois de terceirizar o trabalho, depois de terceirizar a tortura, depois que as agências matrimoniais começaram a terceirizar até nossos encontros é que percebemos que, há muito tempo, também permitimos que nosso engajamento político seja terceirizado – mas agora nós o queremos de volta! (…) Quando fundamentalistas conservadores nos disserem que os EUA são uma nação cristã, lembremo-nos do que é o Cristianismo: o Espírito Santo, a comunidade livre e igualitária de fiéis unidos pelo amor. Nós, aqui, somos o Espírito Santo, enquanto em Wall Street eles são pagãos que adoram falsos ídolos! Dirão que somos violentos, que nossa linguagem é violenta, referindo-se à ocupação. Sim, somos violentos no sentido em que Mahatma Gandhi o foi. Somos violentos porque queremos dar um basta no modo como as coisas andam. Mas o que significa essa violência simbólica quando comparada à violência necessária para sustentar o funcionamento do sistema capitalista global”.
16- “Desculpe o transtorno, estamos mudando o país”. A multidão produz uma sensação de força que pode se tornar tão generosa quanto… pretensiosa. Não se muda o país sem o enfrentamento, por exemplo, da questão da dívida pública. Ela comeu 44% do Orçamento da União em 2012 (R$ 753 bi), enquanto a Saúde recebeu 4% (R$ 71 bi) e a Educação 3,3% (R$ 57 bi). Transportes ficaram em 0,7%, Segurança 0,39% e Habitação 0,01%. Para este ano de 2013, o valor a ser pago em juros e amortizações da dívida subirá 20%, para gáudio dos grandes rentistas do capitalismo financeirizado. Estas formulações, que exigem mais informações e análises, não estavam nas ruas, ao menos de maneira expressiva, notável. Mas sabemos que as mudanças só serão estruturais e não cosméticas com um novo paradigma de modelo econômico, e as consequentes Reformas Tributária, Administrativa e Política, desde que fecundadas por intensa participação popular. A questão ambiental, tão crucial, também não estava significativamente representada nas ruas. Sem isso, o transtorno não transforma.E o que alguns proclamam como revolução será apenas pontual irrupção. De toda forma, convém considerar o que Peter Pál Pelbart, filósofo húngaro e professor na PUC/SP, autor de “Vida Capital”, pondera (“Anota aí: eu sou ninguém” – FSP, 19/7/2013): “talvez uma outra subjetividade política e coletiva esteja (re)nascendo, aqui e em outros pontos do planeta, para a qual carecemos de categorias. Mais insurreta, de movimento mais do que de partido, de fluxo mais do que de disciplina, de impulso mais do que de finalidades, com um poder de convocação incomum, sem que isso garanta nada, muito menos que ela se torne o novo sujeito da história”.
Chico Alencar – deputado federal PSOL/RJ