No caso dos ônibus, há muita gordura para ser queimada e bastante espaço para avançar rumo a uma maior regulação. Apenas manter a tarifa e aumentar o repasse do subsídio sem exigência de contrapartida é perder uma oportunidade de promover uma melhoria da qualidade dos serviços de transporte público urbano.
Paulo Kliass
A onda de manifestações que o Brasil está vivendo durante os últimos dias teve seu início em uma reivindicação antiga, a respeito da melhora da qualidade do transporte público nas cidades e contra os reajustes das tarifas. Os últimos a poderem argumentar algum tipo de espanto e surpresa frente à escalada do movimento são justamente os nossos governantes. A administração pública conta com serviços de apoio na área de informação, inteligência e de avaliação política, exatamente para auxiliar as autoridades nas tomadas de decisão. Subestimaram a capacidade de mobilização e erraram feio! Continuaram a insistir na subestimação por vários dias e até parecia que haviam adotado a estratégia do “quanto pior, melhor”.
Com a violência inicial da repressão – nos dias em que Haddad e Alckmin estavam em Paris – e a falta de disposição do prefeito paulistano em recuar na decisão do aumento, o movimento cresceu e ganhou força em escala nacional. Com isso, ampliou-se o espectro da plataforma de lutas para além da simples revogação do reajuste da tarifa nas capitais. Saúde, educação, PEC 37, Pastor Feliciano, corrupção, despesas com a Copa e tantos outros temas entraram na pauta das ruas. Mas se o foco continuava ser o aumento da passagem, é difícil entender as razões que levaram algumas autoridades – por exemplo, os prefeitos de São Paulo e Rio de Janeiro – a demorarem tanto tempo para revogarem os atos que levaram a tal situação. Depois de vários dias batendo cabeça, em verdadeiro ziguezague de declarações e desmentidos, finalmente optarem pelo bom senso.
Passagem de ônibus e “almoço grátis”
Vejamos a situação de uma perspectiva mais ampla. Antes de mais nada, é importante frisar que a decisão é de natureza política, ainda que haja um conjunto de fatores e detalhes de ordem técnica, que precisam ser compreendidos e levados em consideração. Os economistas conservadores gostam de encher a boca e se sair com ditos carregados de lugar-comum, de preferência “in english”. Como se isso soasse mais sério e responsável… E aí arrotam com gosto a frase que está invadindo as páginas de economia dos grandes meios de comunicação nos últimos dias: “there is no free luch”. Em português, não há almoço grátis. Sim de acordo. Mas e daí? Afinal, de que almoço estamos falando? Do prato-feito no boteco da esquina que pode sair a R$ 5,00 ou do jantar milionário em Paris, que a comitiva do governador Sergio Cabral e do Prefeito Eduardo Paes encomendou em restaurante chiquérrimo e caríssimo? Em tese, ambos cumprem a função fisiológica de alimentação.
O mesmo raciocínio pode ser utilizado para o caso em questão. Toda e qualquer decisão de política pública tem seu custo, isso é um fato. O ponto a reter é que nem sempre os cidadãos devem incorrer no ressarcimento direto do custeio desse tipo de despesa realizada pelo Estado. Aquilo que os conservadores tentam passar como uma “obviedade” nem sempre encontra respaldo na realidade. No caso brasileiro, por exemplo, está definido na Constituição Federal que os serviços de saúde e educação deveriam ser públicos e gratuitos. Assim, se não há mesmo “free lunch”, isso significa que o conjunto da sociedade se responsabiliza pela realização desse tipo de gasto estatal. A segurança pública tampouco é objeto de pagamento pelos “serviços” oferecidos. Cada bomba de gás lacrimogênio, cada bala de borracha, cada jato de spray de pimenta, cada equipamento da Tropa de Choque, enfim, todo o arsenal da repressão tem um custo bem definido. E todos nós pagamos por isso, pois – afinal – não há almoço grátis.
Recursos orçamentários e prioridades nos gastos
Os governos existem justamente para oferecer esses e outros tipos de serviços públicos a seus cidadãos. A sociedade se organiza sob um contrato social determinado, onde a base de recursos para a ação estatal são os impostos e tributos. Não é por outra razão que o Orçamento da União para 2013 supera os R$ 2,3 trilhões, enquanto o do Estado de São Paulo alcança R$ 173 bilhões e o da Prefeitura de São Paulo soma R$ 42 bi. E o mesmo ocorre com os outros 25 estados e o Distrito Federal, além das mais de 5.600 prefeituras espalhados pelo Brasil afora. Assim, pode-se perceber que os recursos existem. O ponto sensível é o debate a respeito de como alocar esses valores e como estabelecer as prioridades para os gastos públicos. E aí as coisas começam a ficar mais complicadas.
Quem paga os custos do “coffee break” generosamente oferecido pelo governo federal ao grande capital sob a forma de isenção tributária? A lista é enorme, mas fiquemos apenas com a lembrança de alguns mais recentes: eliminação de impostos sobre aplicações de capital estrangeiro no mercado financeiro; eliminação de IPI para vários setores que não são convertidos em redução de preços para o consumidor; eliminação da contribuição patronal para a previdência social; concessão de empréstimos do BNDES com taxas de juros subsidiadas; entre tantos outros. Essas operações significam que o caixa do Tesouro Nacional deixa de recolher centenas de bilhões de reais. Os beneficiários desse “almoço” são os representantes do capital e os custeadores são os demais setores que pagam seus impostos sem discutir.
Quem paga o “free lunch” das despesas efetuadas com a realização da Copa do Mundo? O Ministério dos Esportes acabou de divulgar outro balanço intermediário, informando que os orçamentos das obras foram majorados em 10% sobre a previsão inicial e já estão em algo próximo a R$ 30 bilhões. Ou seja, apenas numa canetada, lá se foram mais R$ 3 bilhões a serem gastos sem nenhum controle nem licitação, pois foi criada uma lei especial de gastos para esse evento, o chamado Regime Diferenciado de Contratação (RDC).
Quem paga a “degustação especial” promovida pela existência da dívida pública em ambiente de taxa de juros oficial elevada? A cada aumento da SELIC o orçamento é impactado, como o de 0,5% na última reunião do COPOM, quando as despesas do orçamento federal foram elevadas em mais de R$ 10 bi. Mas, nesses casos, os auto-intitulados “fiscais do gasto público” não vêm a público clamar que isso não poderia ser feito, pois não existe “free lunch”! Como sempre, nós pagamos e eles usufruem.
Planilha de custos das empresas: caixa-preta
O cálculo do custo do transporte de ônibus deve ser realizado a partir dos diferentes gastos existentes e necessários para a operação do sistema. Não é muito complicado, comparado com outras áreas de serviço público. As empresas têm como custos fixos a amortização dos equipamentos, basicamente os ônibus e máquinas de oficina. Os custos variáveis são combustível, peças e itens de manutenção, além das despesas com pessoal. Sobre esse conjunto de gastos devem ser computados os impostos. Do outro lado da equação entram informações sobre número médio de passageiros por viagem, linhas mais e menos lotadas, porcentagem de passageiros isentos e estudantes.
O pulo do gato está na forma de apropriação de tais informações e na escolha da taxa de rentabilidade a ser aplicada sobre o capital investido. Como as prefeituras são o poder cedente nas concessões, elas têm o direito e o dever de exigir transparência e abertura das informações. Em São Paulo, por exemplo, havia uma empresa pública grande operando (a CMTC), que permitia uma comparação com o desempenho das empresas privadas. Mas na onda de privatização das gestões anteriores, ela foi praticamente liquidada e opera poucas linhas na cidade. O problema é que a planilha de cálculo das empresas do setor é considerada uma verdadeira caixa-preta. Cabe ao poder público abri-la e jogar luz no debate.
A forma de organização das empresas de ônibus é bastante conhecida em nosso País. Constituem uma verdadeira máfia, atuando junto às Câmaras Municipais, aos setores da máquina administrativa das prefeituras que se deixam corromper e ao próprio executivo central. Há uma lista extensa de casos em que se suspeita que o seu poder levou mesmo à morte de prefeitos e à crise nas administrações. O foco é sempre a renovação das concessões existentes e a busca de novas linhas para operar. Como são responsáveis por um setor bastante sensível para a maioria da população, mantêm uma espada permanente no pescoço do chefe do executivo, com uma ameaça potencial de paralisação dos serviços. Chantagem pura. Mas o que as pessoas normalmente esquecem é que a prefeitura também conta com um poder bastante forte nessa queda de braço. No limite, ela pode promover a intervenção nas empresas que não estejam cumprindo a contento as condições do serviço. Mas para isso, é necessário vontade política e apoio da população.
Melhorar qualidade, a caminho do passe livre
Não podemos nos esquecer que transporte público urbano é uma concessão de serviço público. Assim como a exploração do petróleo, dos portos, das rodovias, dos aeroportos, das ferrovias e outros. E exatamente por essa condição particular, a coisa não funciona como gostariam os modelos dos liberais (agora bem caladinhos) na base do “mercado da batatinha”. Não existe isso de calcular o preço da passagem com base na lei da oferta e da demanda. É tipicamente o caso que os manuais de economia qualificam de “preço administrado”. O poder público deve atuar como órgão regulador e fiscalizador, definindo as tarifas e, principalmente, a margem de ganho das empresas. Além disso, cabe à prefeitura estabelecer as condições de qualidade e segurança dos serviços para o bem estar da população que utiliza os transportes.
Agora que a opção foi pela revogação do aumento da passagem e o debate está quente no interior da sociedade, abre-se o espaço para os prefeitos e as câmaras legislativas promoverem uma abertura das estruturas de custos do setor. O pior dos mundos seria manter para os transportes públicos a mesma postura do governo federal com o sistema financeiro. Reduziu-se um pouco a SELIC, mas não se tocou no “spread”, a margem de ganhos dos bancos. No caso dos ônibus, há muita gordura para ser queimada e bastante espaço para avançar rumo a uma maior regulação. Apenas manter a tarifa e aumentar o repasse do subsídio sem exigência de contrapartida é perder uma oportunidade de promover uma melhoria da qualidade dos serviços de transporte público urbano.
O momento para uma ação mais incisiva é esse. Definir regras para melhoria da qualidade, tais como: i) redução da idade média da frota; ii) conversão paulatina para veículos operando com energia alternativa ao diesel; iii) ampliação da malha de cobertura; iv) implantação do bilhete mensal e de integração com os demais serviços (metrô e trem); entre tantos outros. Além disso, há estudos que comprovam que São Paulo e Rio de Janeiro são as cidades onde a tarifa de transporte urbano são as que mais pesam no bolso dos trabalhadores em todo o mundo. Em resumo, a agenda de mudanças necessárias é extensa. Agora, é botar a mão na massa e começar a trabalhar para aperfeiçoar o sistema, tornando-o mais justo, mais eficiente e de maior qualidade. Esse é o caminho a ser pavimentado para a busca do objetivo mais estratégico de um sistema de transporte público e gratuito – o passe livre.
Paulo Kliass é Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal e doutor em Economia pela Universidade de Paris 10.