Fora das ruas tomadas pela população descontente, a violência continua sendo exercida de maneira simbólica: a grande mídia, o senso comum, e algumas autoridades têm se referido aos manifestantes como “baderneiros”, “vândalos” e outros qualitativos, construindo a imagem de um inimigo, muito semelhante ao processo que foi feito durante a ditadura civil-militar: a construção do “subversivo”. O artigo é de Caroline Silveira Bauer.
Caroline Silveira Bauer (*)
As manifestações contra o aumento das tarifas de transporte urbano, que se iniciaram em Porto Alegre e agora se disseminam por todo o Brasil, tem sido marcadas não somente pela violência física durante os atos. Fora das avenidas e ruas tomadas pela população descontente, a violência continua sendo exercida de maneira simbólica: a grande mídia, o senso comum, e algumas autoridades têm se referido aos manifestantes como “baderneiros”, “vândalos” e outros qualitativos, construindo a imagem de um inimigo, muito semelhante ao processo que foi feito durante a ditadura civil-militar: a construção do “subversivo”.
O filósofo francês Pierre Ansart chamou este processo de “ortodoxia terrorista”, onde o exercício do terror através da ideologia estabelece uma dicotomia simplória entre o legítimo e o ilegítimo, o justo e o injusto, o certo e o errado. “O ilegítimo é tudo aquilo que convém controlar, combater e excluir. A ideologia terrorista leva ao extremo essa dimensão […]; o ilegítimo já não é apenas o inferior que é preciso controlar, e sim o mal que cumpre destruir para que a sociedade legítima se realize”, afirma Ansart.
O discurso sobre a “baderna” e o “vandalismo” do movimento contra o aumento das passagens carece de informações e argumentações lógicas, pois seu objetivo não é convencer através do raciocínio, mas sim de estigmatizar através do apelo às emoções e à violência simbólica, utilizando-se esses recursos linguísticos de difícil precisão. Ora, a desinformação também foi um elemento de persuasão que não deixou de ser empregado com o fim do período autoritário-ditatorial no Brasil. Em outras palavras, não se trata de explicar quem são os manifestantes, mas sim de designar os inimigos, aprofundar as distâncias entre os cúmplices da repressão e suas vítimas.
Nas primeiras manifestações, os “baderneiros” e os “vândalos” eram aqueles que empregavam algum tipo de violência em seus atos, fazendo com que o movimento perdesse um pretenso caráter de “pacifista”. Agora, essas designações tornaram-se mais permeáveis, e a repressão passa a combater um número maior de dissidentes, em uma espiral repressiva crescente: o descontentamento e suas expressões passam a ser criminalizados. Existir um “criminoso” fundamental para sustentar o medo. Nada mais expressivo de uma cultura autoritária, marcada pela lógica do terror, e, por isso, antidemocrática; “sujeitos sem direitos”, nas análises do filósofo italiano Giorgio Agamben.
(*) Caroline Silveira Bauer é professora de História Contemporânea na Universidade Federal de Pelotas. Doutora pela Universidade Federal do Rio Grade do Sul e pela Universitat de Barcelona, é autora do livro “Brasil e Argentina: ditaduras, desaparecimentos e políticas de memória”.