No quarto dia de protesto contra o aumento da tarifa dos transportes coletivos, o Estado policialesco que o reprime ultrapassou, ontem, todos os limites e, daqui para a frente, ou as autoridades determinam que a polícia não aja feito um animal que baba, ao contrário do que vem fazendo, ou a capital paulista ficará entregue à desordem, o que é inaceitável. Durante sete horas, numa movimentação que começou na Praça Ramos de Azevedo, passou pelo Centro – em especial pela Praça da República e a Rua da Consolação – chegando à avenida Paulista, os policiais provocaram conflitos com os manifestantes, agrediram jornalistas e aterrorizaram a população.
Leonardo Sakamoto
A violência desmesurada, que tem sido a marca da Polícia Militar do Estado de São Paulo, uma corporação que mantém ranços desenvolvidos durante o último período ditatorial brasileiro, só tem feito aumentar. Por onde passaram, os 900 policiais deixaram um rastro de desrespeito aos direitos humanos – estudantes feridos, pessoas detidas por carregar vinagre (usado no combate à intoxicação das bombas), idosas senhoras que não participavam do ato e até uma universidade atingidas por bombas de gás lacrimogênio. Spray de pimenta foi jogado em um cinegrafista na Praça Patriarca e um policial, de acordo com imagens que aparecem em um vídeo, quebrou o vidro de sua viatura. Para quê, não se sabe. Em algumas das ruas e avenidas por onde passaram, especialmente na rua da Consolação, aterrorizaram a população e lançaram bombas para impedir a passagem dos manifestantes e inviabilizar uma passeata que seguia, até então, pacífica.
Atacada com bombas e tiros de borracha sempre que tentava seguir com a caminhada pacífica, uma minoria nem de longe representativa dos manifestantes devolveu com pedras e paus, sendo que a maioria correu desesperada para longe. Também uma minoria depredou ônibus, lixeiras e fez barricadas com sacos de lixo. O saldo foi de 235 pessoas detidas e outros tantos com ferimentos graves, entre eles jornalistas.
A PM agiu com ignorância, ao contrário do que disse o poder público, que a defendeu da truculência para justificar a contenção da manifestação. Num episódio em que isso ficou bem claro, um PM que passava pela rua Augusta, feriu gravemente o rosto de uma jovem repórter do jornal Folha de S.Paulo. Sacou a arma, mirou e atirou com bala de borracha. Outros seis jornalistas do periódico ficaram feridos.
Em suma, foi mais um dia de cão, pior do que os outros na região central, no qual a violência da polícia assustou e comprovou que as leis que garantem os direitos de paulistanos que vivem na cidade não vale absolutamente nada. O comportamento da polícia deixou apreensivos outras centenas de milhares da classe média que descobriram pela televisão que esse tipo de violência existe. Mas não assustou milhões de moradores da periferia, que experimentam desde cedo a truculência da polícia, que – não raro – os trata – como cidadãos de segunda classe. Ontem, o Centro virou Periferia.
O reconhecimento por parte do Secretário de Segurança Pública do Estado de São Paulo de que excessos podem ter sido cometidos, assim como a incapacidade do poder público de garantir que sua própria força policial aja de forma adequada, não atenuam a sua responsabilidade pelo fogo que atearam. Embora tenha afirmado que abrirá sindicância para apurar os fatos, o governo mantém a confiança na polícia, mesmo já tendo demonstrado sua incapacidade de lidar com manifestações e seu comportamento em momentos de enfrentamento social. Sabem todos muito bem o que estão fazendo.
A reação do governador Geraldo Alckmin e do prefeito Fernando Haddad às manifestações indica que eles se dispõem a endurecer o jogo. A atitude excessivamente moderada do prefeito cansa a população. Não importa se ele estava convencido de que a moderação era a atitude mais adequada, ou se, por cálculo político, evitou parecer truculento. O fato é que a população quer um transporte público de melhor qualidade e com preço mais baixo – e isso depende de coragem política, coisa que parece faltar.
De Paris, onde se encontrava para defender a candidatura de São Paulo à sede da Exposição Universal de 2020, o governador disse que “é intolerável a ação de baderneiros e vândalos. Isso extrapola o direito de expressão. É absoluta violência, inaceitável”. Depois das cenas de violência desta quinta, espera-se que ele segure seus policiais e determine que a PM aja com o máximo rigor para apurar a selvageria e conter a fúria de alguns de seus policiais, que se mostraram mal-preparados, mal-intencionados e alheios à sua função de proteger o cidadão, antes que esse comportamento violento tome conta da cidade.
Haddad, que se encontrava em Paris pelo mesmo motivo, também foi afirmativo ao dizer que “os métodos (dos manifestantes) não são aprovados pela sociedade. Essa liberdade está sendo usada em prejuízo da população”. Nesta quinta, reclamou da violência policial, mas disse que a tarifa não vai baixar. E o ministro da Justiça de seu partido político, José Eduardo Cardozo, ofereceu ajuda do governo federal para a contenção dos protestos. A gravidade da situação exige que o prefeito esclareça se com isso o seu partido quis dizer que concorda que manifestações populares devem ser reprimidas à bala.
Em tempo: Todos têm direito a ter uma opinião e divulgá-la. Por isso, respeito (praticamente) todas. Mas como percebi que a minha era diametralmente oposta à do jornal Estado de S.Paulo, desta quinta (13), no caso das manifestações contra o aumento no preço da passagem, aproveitei o texto do editorial de lá para uma paráfrase. A bem da verdade, o texto é o mesmo, invertendo o “sinal”. Certamente, o Estadão não vai se importar com este exercício de retórica vindo de alguém que respirou gás lacrimogênio na noite de ontem. E como fui informado que boa parte dos jornalistas que lá trabalham também discordam desse posicionamento, acho que estou absolvido.