Não é necessário grande esforço para notar o avanço das ideias conservadoras nas últimas décadas em todo o mundo. As grandes propostas da modernidade – a igualdade entre os indivíduos, a liberdade e a justiça para todos – e as transformações movidas pelas grandes utopias tem sido questionadas pela descrença generalizada, pela exacerbação do individualismo e por uma nova versão do “fim da história”. Mesmo que os ideólogos do liberalismo tenham sido forçados a admitir, após o estouro da bolha imobiliária de 2008, que algo estava errado no “fantástico mundo do livre mercado”, é inegável que vivemos sob uma hegemonia do pensamento liberal.
Ivan Valente
A débâcle do socialismo burocrático no leste europeu e os novos e polêmicos caminhos trilhados pelos Partidos Comunistas nos países asiáticos não foram suficientes para arrefecer a busca do liberalismo em afirmar-se como única forma válida de interpretar o mundo. Era preciso responder de forma contundente a processos sociais e políticos que seguem questionando o falso consenso liberal-democrático, como o importante movimento bolivariano latino-americano – que fala abertamente da conjunção entre socialismo e democracia –, a chamada “primavera árabe” e a resistência popular europeia à política da Troika.
O neoliberalismo, por sua vez, não foi apenas uma saída econômica diante de mais um ciclo de recessão da economista capitalista mundial. Ele veio para radicalizar a liberdade do mercado, redefinir o papel do Estado e reorganizar o conjunto das relações sociais, enfraquecendo direitos históricos da cidadania. Neste contexto, “esquerda” e “direita” seriam conceitos superados e a luta entre projetos antagônicos e classes seria substituída por esforços permanentes de conciliação. A polarização política e o “radicalismo” deveriam ser evitados em nome do compromisso com a democracia e a estabilidade da nova ordem mundial.
Tal ideia esvazia o espaço da política como instrumento de ação transformadora e reforça a manutenção do status quo. Com menos espaço para as forças de contestação, busca-se cristalizar o sentimento que não há alternativas viáveis à ordem liberal. O conformismo, alimentado por poderosos instrumentos de convencimento e alienação, e o individualismo, reforçado por diversos mecanismos que subvertem o convívio e a ação coletiva, se fortalecem. Disseminando de forma competente estes valores, as elites operam arranjos institucionais com vistas a consolidar a máxima “quanto menos ruptura e mais consenso melhor”.
É verdade que as promessas do liberalismo só fizeram ampliar a desigualdade social e o potencial para novas crises econômicas. O saldo em termos ideológicos, porém, é positivo para seus defensores. Mesmo governos, partidos e movimentos que se colocaram por muito tempo contrários ao falso consenso liberal-democrático tem se deixado cooptar.
Transição pelo alto e conciliação no Brasil
A história brasileira é marcada pela tentativa de controle das elites sobre as pressões transformadoras. Tal processo assegurou que as grandes mudanças na história do país se dessem na forma de transições conservadoras, sem experiências significativas de ruptura com caráter pedagógico para os “de baixo”. Houve momentos importantes de resistência e luta popular, que conheceram a virulência repressiva das classes dominantes. Mas da independência e a abolição da escravidão ao golpe militar de 1964, tudo teve a marca da conciliação das elites e das transições costuradas pelo alto.
Mesmo a superação da ditadura, sob a decisiva pressão do movimento democrático e de uma classe trabalhadora ascendente politicamente, se deu de forma negociada, com a derrota das “Diretas Já!” e a alternativa Tancredo/Sarney, que culminaria na Constituinte e nas eleições de 1989, quando as elites impediram a chegada ao poder de um governo dos trabalhadores.
É neste contexto histórico que a eleição de Lula em 2002, após quase 15 anos de hegemonia neoliberal, ainda tem uma forte carga simbólica. O processo conciliador e negociado já estava, entretanto, em marcha.
Uma década a ser compreendida
A última década foi marcada por alguns avanços distributivos e, paradoxalmente, por profundos recuos ideológicos. O começo do governo Lula, apesar dos pesares, gerou uma grande expectativa de mudanças. Mas a necessidade de ganhar a confiança do mercado financeiro levou a política econômica a extremos, com a manutenção da trilogia “controle da inflação, manutenção do superávit primário e câmbio flutuante”. Essa lógica implicava manter juros siderais, alavancando violentamente a dívida pública, que consome hoje metade do orçamento nacional.
O abandono de um programa efetivamente democrático e popular, que atacasse as bases de dominação do capital com medidas como a auditoria da dívida, a reforma urbana e agrária, a democratização dos meios de comunicação, o fim das privatizações e a reversão daquelas implementadas por FHC e o investimento público massivo nas áreas sociais, demonstrando uma inversão de prioridades, foi uma escolha consciente.
A opção por não melindrar o capital financeiro e os interesses estrangeiros levou, assim, a ações políticas bem definidas. A primeira visava ganhar o apoio dos excluídos e muitos pobres, a quem interessa uma inflação baixa que não lhes roube o salário. A segunda tinha como objetivo neutralizar o setor mais consciente e organizado do sindicalismo, controlando suas lideranças e rebaixando sua agenda política. Ambas criaram as condições para um fortalecimento do conservadorismo.
Essa estratégia inicial levou a uma frustração dos setores médios progressistas que constituíam parte importante da base do petismo. Tal processo se expressou particularmente no funcionalismo público, duramente atacado pela reforma da previdência em 2003. E alcançou seu ponto máximo com o escândalo do “mensalão”, causando grande desgaste na classe média como um todo.
Através de uma política econômica conservadora apoiada em medidas de largo alcance popular, muito eficientes para ganhar a confiança dos setores menos favorecidos, a aposta do lulismo foi combinar alguma distribuição de renda, crédito barato e consumo. Ampliando a base da pirâmide social, brasileiros foram incorporados ao mundo do trabalho e do consumo, criando a falsa sensação de ascensão social e favorecendo o discurso oficial de surgimento de uma “nova classe média”. Esse discurso tem sido instrumentalizado dentro e fora do governo para favorecer a ideia de que o florescimento de uma nova classe média traz demandas que só o mercado pode atender (planos de saúde, escolas privadas, carros do ano). Aqui, a luta em defesa de uma escola pública, gratuita e de qualidade para todos e de um sistema único de saúde público, com mais investimentos estatais, perde terreno. Os trabalhadores “incorporados” ao consumo tornaram-se a base de sustentação do lulismo e nesse movimento geram valores notadamente individualistas e conservadores, próprios dos setores sociais mais vulneráveis à ideologia dominante.
Rebaixamento programático e avanço conservador
Ao não atacar o modelo econômico das elites, consolidar a hegemonia do pensamento liberal e afirmar o sistema agroexportador como base de divisas para o país, o lulismo legitimou o agronegócio, recuando em qualquer proposta de reforma agrária e cedendo à pressão dos ruralistas na mudança do Código Florestal Brasileiro, brutal retrocesso na preservação do meio ambiente. Atuando como bancada suprapartidária e conhecendo seu peso na governabilidade conservadora, os ruralistas criaram asas e agora comandam uma nova ofensiva: atacam a legislação trabalhista no campo, o combate ao trabalho escravo e os direitos das comunidades indígenas e quilombolas. Os retrocessos podem ir mais longe, com a pressa por aprovar um novo Código de Mineração. Neste contexto, não foi à toa que figuras como os senadores Blairo Maggi e Kátia Abreu, notórios ruralistas, migraram para a base do governo – sendo o primeiro guindado à Presidência da Comissão de Meio Ambiente do Senado.
A mesma coisa se pode dizer do recuo governamental na regulação do setor midiático e na democratização dos meios de comunicação. Intimidado pelo discurso falacioso de “volta da censura” propagado pela grande imprensa, o governo continua financiando generosamente o setor com publicidade, desonerando grandes corporações com apoio do BNDES e entregando o patrimônio público às operadoras de telecomunicações. Ao alimentar valores do pensamento único conservador e influenciar a pauta política, o monopólio das comunicações, que concentra em poucas empresas e famílias as principais empresas do setor, é um dos maiores entraves a uma verdadeira democratização da sociedade brasileira.
Embora alguns ganhos nos direitos sociais, trabalhistas e civis tenham sido conquistados no período – notadamente por pressão dos movimentos sociais –, não está no horizonte a possibilidade de mudanças estruturais de interesse dos trabalhadores, como uma Reforma Tributária que tribute as grandes fortunas e priorize a taxação da riqueza e da propriedade ao invés do consumo e da renda assalariada. Hoje, a manutenção da política tributária representa uma brutal injustiça fiscal e social, reforçando a matriz patrimonialista e a concentração de riqueza.
O mesmo se nota na dificuldade em fazer avançar a Reforma Política, mais uma vez enterrada no Congresso. A quem interessa acabar com o poder econômico nas eleições e fortalecer a participação popular no processo político? Aprovar o financiamento público exclusivo de campanha com punição para a doação e recepção de recursos privados já seria uma grande revolução. Estabelecer mecanismos de participação direta, como plebiscitos e referendos, e facilitar os projetos de iniciativa popular seria outro grande avanço. Mas o que fazer quando tudo se choca com a governabilidade?
Governabilidade e bloqueio dos avanços
Nos últimos anos, esse conceito tem sido largamente usado para caracterizar a tática de viabilizar ações de governo através da conquista da maioria parlamentar via a incorporação de diferentes partidos à base de apoio do Executivo. Ao atuar em favor da desmobilização das forças sociais mais combativas, o lulismo descartou a possibilidade de transformações feitas com base na pressão da sociedade organizada e aceitou a lógica de governar sem a participação direta desses atores. Com isso, a conquista de maioria parlamentar tornou-se um objetivo a ser alcançado a todo custo.
Esse chamado “presidencialismo de coalizão” – condição, aliás, corrente antes da chegada do PT ao governo – é formado por uma base heterogênea de partidos políticos sem projeto, programa ou ideologia. Todos, porém, ávidos por participar da divisão de espaços no aparelho do Estado, liberar emendas parlamentares ao Orçamento Público e tirar vantagem de cada proposta que tramita no Congresso, como forma de apropriação privada direta ou em defesa de interesses de grandes e médios grupos econômicos.
Trata-se de uma prática que tem relação direta com a participação dos interesses privados nas decisões do Parlamento. A principal via de corrupção hoje, todos sabem, é o financiamento das campanhas eleitorais. Nesse processo, constituem-se bancadas “suprapartidárias”, que barram o avanço de qualquer medida progressista. Essas bancadas vão desde a junção de interesses econômicos (como a bancada ruralista) à união de posições políticas ou religiosas (como a bancada do fundamentalismo cristão). O consequente enfraquecimento dos partidos e o fortalecimento de interesses fragmentários, aliados à necessidade de assegurar o controle por parte do governo dos principais postos no Parlamento, levam a excrescências como a eleição de Marco Feliciano à presidência da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados.
Paralelamente, a governabilidade, cada vez mais dependente de partidos conservadores, rebaixa o horizonte do governo, mesmo em temas básicos da cidadania. Essa situação cria uma vergonhosa situação: enquanto medidas como a união civil de pessoas do mesmo sexo, a legalização do aborto e a descriminalização das drogas avançam em países vizinhos como o Uruguai, o Brasil vive uma brutal ofensiva conservadora contra tais iniciativas – incluindo a resistência, dentro e fora do governo, à punição pelos crimes praticados pela ditadura militar.
Existe uma saída
Romper este círculo vicioso e apresentar uma verdadeira resposta alternativa, admitindo o conflito de interesses e a necessidade da luta e da mobilização para afirmar o protagonismo das maiorias excluídas, é o grande desafio da esquerda. Mas, para isso, é preciso evitar táticas que possam enredar os setores populares em compromissos que neutralizem sua força transformadora. É verdade que vivemos um momento de baixa das lutas sociais, causado por uma diversidade de fatores e influenciado pelas opções políticas do bloco que outrora representava a resistência ao neoliberalismo.
Porém, temos experiências que demonstram que, mesmo nas regras do jogo democrático-burguês, é possível implementar políticas contra hegemônicas que fortaleçam os “de baixo”. É o que vemos no Equador, Bolívia e Venezuela, onde políticas efetivadas nos últimos anos, elevando salários, assegurando o acesso à saúde e educação, proporcionando alimentos a preços subsidiados, reduzindo drasticamente a pobreza, erradicando o analfabetismo e enfrentando as elites, mostraram que é possível contrariar interesses em favor de uma radical transformação social. Evidentemente, a realidade social, política e econômica do Brasil é diferente. Mas o é também porque as condições para a constituição de um projeto alternativo foram enfraquecidas em suas bases: a independência das organizações dos trabalhadores e a manutenção de um projeto de enfrentamento às elites nacionais e internacionais.
É possível reconstruir um projeto popular para o Brasil que enfrente o avanço conservador com base numa plataforma de mudanças estruturais. Mas isso só poderá ser feito amparando-se nas massas trabalhadoras e excluídas e rompendo, definitivamente, o ciclo de transições conciliadas que até aqui mantiveram as mesmas elites no comando da nação. Essa é uma tarefa urgente, que exige tenacidade daqueles que acreditam na democracia e no socialismo como forma de superar as mazelas de nosso povo.
Ivan Valente é deputado federal e presidente nacional do PSOL
Artigo publicado no Jornal Le Monde Diplomatique – Edição 70 – maio de 2013