A eleição do pastor Marco Feliciano do PSC/SP para presidir a Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados causou furor social e mobilização política, não sem motivos. Creio, contudo, que o pecado maior da escolha tenha origem em buracos mais profundos.
Ricardo Alvarez
Marco Feliciano é mesmo tudo aquilo que se pode esperar de um ser das trevas.
Empresário e pregador, suas opiniões são típicas daqueles que vivem às turras com a vida, desgostosos com a diversidade e inimigos da cultura. Sua visão de mundo é ladeada rigidamente por estacas que não se permitem ultrapassar. Seu horizonte de vida é, assim, delimitadamente estreito e obtuso, como sua opinião sobre a união de pessoas de mesmo sexo.
Para ele o homossexualismo deve ser combatido e recriminado como doença. Repulsivos são outros arranjos emocionais que não os heterossexuais. Os que assim o desejam são desvirtuados sociais, necessitados de corretivos a serem aplicados pelos que seguem os verdadeiros caminhos da retidão, como ele próprio.
O folclore é amplo. Vídeos e frases pululam nas redes sociais evidenciando raciocínios estreitos e opiniões pouco inteligentes sobre temas não tão complexos. Claro está que a reflexão e o pensamento não são o seu forte, este mais inclinado para o convencimento dos fiéis nas oferendas polpudas e doações graciosas.
O rol dos disparates é longo. Não concentraremos nossos esforços nesta face mais visível e risível do deputado. Há outros problemas que entendemos mais graves neste episódio.
O primeiro é a banalização no Brasil desta relação de expropriação de pobres e a contrapartida geração de pastores ricos. Já é tempo de darmos um basta no comércio explícito de passaportes para o céu e isolantes para o inferno. O estado brasileiro é laico, deve garantir a livre expressão religiosa, mas deve agir com energia quando o espírito fica no subsolo e ganância material mora na cobertura.
Outra faceta do episódio é a incitação ao ódio como mecanismo de ascensão política. A conquista do mandato de deputado pelo Sr. Feliciano resulta de uma combinação de acharque econômico dos fiéis associada à difusão de opiniões claramente agressivas e desprovidas de fundamento. A história é farta destes párias e o fim da novela é sempre dolorido.
Sua figura reitera o desprezo aos Direitos Humanos e colabora com uma ideia que se dissemina no seio da sociedade: de que eles servem apenas como escudos para bandidos e outros malfeitores. Na posição de deputado federal estas opiniões ganham contornos de maior significado.
Feliciano é um digno representante deste pensamento. Fosse ele dois séculos mais velho teria hordas de escravos aos seus auspícios e saberia muito bem organizar palavras e argumentos para justificar esta condição.
Feliciano é ainda um representante disfarçado de opiniões explícitas da direita mais tosca e reacionária no Brasil. Aquela que acha que índio atrapalha o desenvolvimento, negro se associa a bandidagem, pobre só quer saber de ajuda do governo, drogado é caso de polícia e mulher deve mesmo ganhar menos fazendo o mesmo serviço.
Alguns de seus projetos apresentados na Câmara apontam diretamente para isto.
Um deles identifica inconstitucionalidade em posição do STF “que reconhece como entidade familiar a união contínua, pública e duradoura entre pessoas do mesmo sexo, anulando-se todos os atos dela decorrentes”.
Outro defende a “internação compulsória para tratamento e desintoxicação, em instituição apropriada, pelo prazo considerado necessário para o tratamento integral”.
Mas não para por ai. Em outro projeto propõe tornar-se “obrigatória a castração e a esterilização de todos os cães, macho e fêmea respectivamente, da chamada raça Pit Bull, evitando-se a sua procriação”. Eu disse que a reflexão não é seu forte.
E talvez este seja o mais emblemático de todos: “As cédulas de dinheiro circulante, fabricado pela Casa da Moeda, continuarão a ostentar a frase “Deus seja louvado”, agora de forma obrigatória”. Talvez o constrangimento maior não seja o de receber notas e mais notas de pobres pouco esclarecidos, mas sim de que estas não contenham uma louvação permanente.
Ressalto, porém, que sua eleição para a Comissão de Direitos Humanos da Câmara evidência uma crise política que parece não ter fim, alimentada permanentemente por uma sucessão de fatos que lhe dão substância: o afastamento abissal entre representados e representantes.
Os acertos políticos de manutenção da chamada governabilidade tornaram o governo Dilma refém das mesmas alianças espúrias que se fizeram no governo Lula, FHC, Collor, e assim sucessivamente por décadas atrás. O presidencialismo de coalização é a mãe e o pai destes monstros políticos que elegem homofóbicos para dirigir os debates sobre Direitos Humanos, desmatadores para assuntos ambientais e fraudadores para temas de finanças e orçamento do estado, além de outras aberrações.
Há tempos que a Câmara Federal e o Senado têm dado pesados subsídios à despolitização geral da sociedade, quando deveria agir em linha contrária. A escola do vale tudo reverbera em especial nas bordas da sociedade, nas camadas de pior formação política e alimenta a lógica da “farinha pouca meu pirão primeiro”, naquele bloco que mostra os dentes contra partidos e representação política e acredita que “ninguém presta”.
No fundo a esbórnia geral interessa diretamente aos reacionários e conservadores, que gastam tubos de dinheiro em campanhas eleitorais e aumentam o fosso no Brasil entre representantes e representados, compondo o parlamento de gente da pior espécie, em partidos sem definição programática e dispostos a tudo para se perpetuar no poder.
Fossemos levar a sério as opiniões de Feliciano, o pastor não deveria ser apeado da presidência da Comissão de Direitos Humanos da Câmara, deveria sim perder o mandato por ferir a Constituição Federal em seu artigo 3º que trata da constituição dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: “construir uma sociedade livre, justa e solidária”. É o que ele decididamente não faz.
Ricardo Alvarez é professor e dirigente do PSOL de Santo André/SP