O texto a seguir é uma contribuição sobre a questão das bicicletas e sua inserção no transporte e no trânsito da cidade. Tentei sintetizar o que vi e ouvi desde que comecei a pedalar em São Paulo, o que, curiosamente, coincide com o mandato do atual prefeito. De qualquer forma, são apenas opiniões de um ciclista entre muitos, certamente permeadas pelo que já pude ouvir de outras pessoas que conheço.
Henrique Mogadouro da Cunha
Nas últimas eleições municipais, era muito incomum ouvir qualquer candidato falar sobre o uso de bicicletas como meio de transporte. Quando muito, as magrelas eram tratadas como uma solução visionária, quase como se o mecanismo que nos permite pedalar ainda não tivesse sido inventado. Parecia que a bicicleta, enfim, só podia ser pensada no registro do ambientalismo mais despolitizado, uma espécie de “terceira via” entre carro e ônibus. Ironicamente, já naquele ano de 2008, eram mais de 300.000 as pessoas que usavam a bicicleta diariamente como meio de transporte, segundo a Pesquisa Origem/Destino do Metrô. Ou seja: os visionários não eram tão visionários assim, nem a solução tão milagrosa ou distante quanto parecia. De um jeito ou de outro, a cidade precisava admitir que as bicicletas já existiam e que, antes de serem pensadas como solução para um futuro distante, deviam ser encaradas como um problema atual. Hoje todos gastam ao menos um pouco de saliva com as bicicletas, mas não basta “ter simpatia”.
Algumas coisas mudaram das últimas eleições para cá: uma delas é que a administração Kassab soube incorporar ao seu vocabulário a palavra “ciclofaixa”, um instrumento previsto desde 1998 no Código de Trânsito que, nesta moda recente, transformou-se em “ciclofaixa de lazer”, funcionando em horários restritos e apenas aos domingos. Essas ciclofaixas não poderiam ser (e nem se pretende que sejam) estendidas para os outros dias da semana, e nem mesmo para o restante da cidade. Não são integradas realmente ao trânsito, e ocupam sempre a faixa da esquerda, muitas vezes em vias com altas velocidades. Também é bastante sintomática a sua sinalização espalhafatosa, com cones a cada poucos metros e funcionários terceirizados segurando bandeiras de pare/siga, o que na prática atende muito mais aos interesses dos patrocinadores da faixa do que propriamente à segurança das pessoas. Nem seria preciso dizer, além do mais, que tais ciclofaixas foram todas criadas em bairros como Alto de Pinheiros, Moema, Itaim, etc. Não consegui descobrir se a ciclofaixa de lazer é invenção da Prefeitura de São Paulo, ou se surgiu primeiro em algum outro lugar. O fato é que a moda está pegando.
Justiça seja feita: nem só de penduricalhos tem sido feita a política para bicicletas. Nos últimos anos, houve alguns avanços: na criação de bicicletários em estações de metrô e trem (embora vários deles sejam concedidos à Porto Seguro, que aluga bicicletas favorecendo seus segurados, e agora estejam surgindo outros tantos associados ao Bradesco e ao Itaú); na construção de uma ou outra ciclovia como a da Radial Leste ou a do Rio Pinheiros; no acesso das bicicletas ao Metrô, que muito lentamente começa a ser levado a sério; enfim, em algumas medidas pontuais e que não mudam substancialmente a política da prefeitura para ciclistas: para a administração municipal, passamos de visionários suicidas a esportistas de final de semana. Uma iniciativa preocupante a esse respeito é um Projeto de Lei do vereador Gilson Barreto, do PSDB, apresentado em 2009. Em primeiro lugar, ele estabelece legalmente a possibilidade de que as ciclofaixas tenham horários restritos de funcionamento, o que absolutamente não estava previsto no Código de Trânsito. Além disso, transforma itens supérfluos como luvas, óculos e tênis em equipamentos obrigatórios. Precisamos de muito mais (e de muito menos) que isso para pedalar tranquilamente pelas ruas de São Paulo.
É necessário que as políticas para bicicletas em São Paulo sejam orientadas pelo reconhecimento, já consolidado no Código de Trânsito, de que as bicicletas são um meio de transporte, com o mesmo direito dos outros veículos de transitarem pelas vias da cidade. Além disso, é fundamental que o transporte não-motorizado seja concebido não como “alternativo”, mas como integrado ao transporte público, de modo que as grandes viagens às quais a população é submetida diariamente não sejam um impedimento para aproveitar os pedais nos trajetos mais curtos e somá-los ao transporte de massas. Para isso, mais importante do que as ciclovias ou ciclofaixas (que de fato são úteis em algumas vias, mas absolutamente desnecessárias em outras) é a garantia de vagas em bicicletários bem espalhados pela cidade como um todo. Ter ou não ter onde amarrar a bicicleta faz toda a diferença para inseri-la de maneira viável no cotidiano, o que não é tão evidente para quem não usa esse meio de transporte.
Precisamos de um sistema público de estacionamento e aluguel de bicicletas em estações e terminais de transporte público, que não favoreça clientes desta ou daquela empresa, mas que seja concebido como um direito, e de bicicletários públicos nas ruas. Sinalização adequada para que o convívio entre veículos motores e amotores seja possível com o mínimo possível de segregação, além de campanhas de conscientização que evidenciem a importância de se dar a preferência a veículos menores e pedestres, como já prevêem o próprio Código de Trânsito e diversas resoluções do Contran, do Denatran e outras instâncias que seguem sendo ignoradas pelo poder público em nossa cidade. Precisamos, sobretudo, que o poder público comece a ouvir o que têm a dizer as centenas de milhares de pessoas que pedalam em São Paulo todos os dias para ir trabalhar, estudar ou se divertir – enfim, para exercer seu direito à cidade. Pessoas que provavelmente nunca participaram de qualquer movimento ambientalista ou militaram pela “adoção” das bicicletas, mas simplesmente precisam delas.
Artigo publicado no site do Maringoni