Uma das grandes tarefas para a mudança é desconstruir a imagem que o chamado “mainstream” ajudou a solidificar no ideário do senso comum: a economia não é uma ciência neutra, dotada de um arsenal de instrumentos e tecnicalidades que sempre pode conduzir a um único resultado certo e seguro.
Paulo Kliass
Infelizmente, algumas das previsões mais pessimistas a respeito dos desdobramentos da crise econômico-financeira, que teve início há 4 anos, parecem estar se confirmando no horizonte. De um lado, à época, ouvíamos os analistas que subestimavam os riscos de encadeamento generalizado de um problema menor, que diziam eles estar bem localizado nos desequilíbrios e nas imperfeições do mercado bancário norte-americano. De outro, havia um conjunto de especialistas que caracterizavam a crise estado-unidense como sendo apenas a ponta de um iceberg, bem mais volumoso e profundo, que poderia provocar um efeito de contágio negativo de dimensões globais.
Assim, aquilo que fora apresentado por alguns como sendo apenas o efeito de um desarranjo no sistema das hipotecas imobiliárias do sistema financeiro dos Estados Unidos, na verdade operou como um catalisador de uma crise potencial bem mais ampla, de proporções internacionais. A chamada “bolha” do mercado de imóveis havia espalhado seus efeitos para os outros setores. Para além dos bancos tradicionais, os demais agentes do sistema financeiro foram rapidamente afetados, a exemplo dos fundos de investimento, das seguradoras, dos fundos de pensão. A maior parte de tais instituições revelaram-se totalmente a descoberto em suas operações, uma vez que as crenças ultra-liberais levadas ao paroxismo permitiram ao sistema bancário alavancar suas operações e eternizar o repasse dos riscos evidentes de seus empréstimos e de suas concessões de crédito. A desregulamentação, tão apregoada como a panacéia para que fosse alcançada a suposta eficiência do mercado, passou a apresentar a sua pesada fatura.
Dado o elevado nível de internacionalização dos mercados financeiros e a grande interdependência de suas diversas praças em todos os continentes, não tardou muito para que o espaço da União Européia também passasse a sofrer os efeitos perversos do contágio epidêmico. A crise atravessou as águas atlânticas e suas conseqüências atingiram um conjunto de países, que – diga-se de passagem – já sofriam bastante com as políticas de ajuste severo patrocinadas pela troika composta pelo Banco Central Europeu (BCE), pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) e pela Comissão Européia (CE).
Apesar da crise, o pensamento neoliberal persiste e resiste
As dificuldades enfrentadas pelo receituário neoliberal em dar conta da conjuntura, após a deflagração da “inesperada” hecatombe, contribuiu para a criação de um certo otimismo, no que se refere à eventual possibilidade de vivermos uma oxigenação e uma renovação da hegemonia desse pensamento ortodoxo, que vem orientando o universo dos tomadores de decisão na área econômica pública e privada desde o final dos anos 1970 e início dos 1980. Tal perspectiva, um tanto imbuída de certa dose de ingenuidade e de voluntarismo, imaginava que o fato de se ter lançado mão de medidas caracterizadas por um profundo pragmatismo para sair da crise, teria sido o reflexo de uma reviravolta nas bases ideológicas do conservadorismo econômico. Mas, na verdade, a questão é bem mais complexa do que aparenta.
É verdade que o pensamento heterodoxo passou a ganhar mais espaço nos meios de comunicação e mesmo no discurso de alguns importantes dirigentes políticos. Vários economistas de renome internacional passaram a reconhecer a incapacidade da usada cartilha, pela qual haviam rezado até anteontem, em resolver os problemas da crise. Isso significava admitir que o excesso de desregulamentação e a liberalização desenfreada da economia haviam operado como elemento prejudicial para a maioria da população e para a maior parte dos países. Isso significava se render às evidências de que a ação do Estado seria essencial para atuar no sentido de atenuar os efeitos perversos da crise. Alguns dos conceitos e das proposições associadas ao economista John Maynard Keynes voltaram ao centro da cena, perdendo um pouco de força a conduta preconceituosa contra eles adotada até então pelos principais formadores de opinião. Afinal de contas, se não fosse a presença ativa do Estado, intervindo com seus fundos de salvamento generalizado, o sistema financeiro transcontinental teria sofrido perdas muito mais significativas.
Porém, esse recuo tático do pensamento conservador não foi acompanhado por nada parecido com uma eventual substituição da cultura hegemônica neoliberal. Houve sim um choque inicial, é importante reconhecer. Talvez até mesmo para os indivíduos mais sinceros, para os menos ideologizados e para os menos comprometidos com o sistema financeiro, o universo do fenômeno econômico pós crise venha realmente a ser explicado por outros conceitos e por diferentes pressupostos teóricos.
Mas o que não se pode perder de vista é o processo de consolidação do enfoque neoliberal. Afinal, foram mais de 3 décadas de esmagamento ideológico conservador, construído e fortalecido pela implementação de políticas econômicas ensandecidas pelo mundo afora. As principais instituições multilaterais encarregaram-se da tarefa e não por acaso alguns de seus ideários eram conhecidos pela alcunha de “Consenso de Washington”, em razão das sedes de Banco Mundial (BM), do Federal Reserve (FED – Banco Central norte-americano) e do FMI. As principais faculdades de economia em todos os continentes tiveram seus currículos moldados segundo esses princípios, seja nos cursos de graduação, seja nos centros de pesquisa de mestrado e doutorado. A grande maioria dos órgãos de comunicação também foi contaminada por tal visão, reproduzindo indiscriminadamente a concepção unilateral da supremacia dos mercados, em detrimento da suposta ineficiência da ação do Estado.
Mudança para novo paradigma é processo lento
Ora, parece razoável admitir que tal mudança hipotética na hegemonia ideológica é um processo lento e não se produz assim tão rapidamente. Daí porque o mais correto é compreendermos esse movimento como um recuo tático e não como alteração no padrão de compreensão do fenômeno econômico. Há toda uma geração que foi formada nas bases do conservadorismo liberal e que precisa de muito tempo e de muita pressão gritante da realidade objetiva para que se disponha a enxergar o mundo através de outras lentes. O tempo requerido para a consolidação efetiva de uma visão alternativa é longo, também numa perspectiva geracional.
Apesar da lenta agonia da crise, a fama dos economistas continua a ser muito negativa junto à maioria da população. Os poucos exemplos de conversão sincera, por parte de economistas mais conhecidos, a uma visão menos comprometida com os interesses do capital financeiro são o melhor retrato de tal dificuldade. A troika continua a propor suas receitas ortodoxas para os países da União Européia, recusando-se a reconhecer a dureza dos ajustes frios e que não levam em conta os aspectos sociais da crise. O saldo do primeiro mandato do Presidente Obama também funcionou como uma espécie de ducha de água fria naqueles que depositavam esperança numa possibilidade de mudança efetiva, depois do lema vitorioso do “Yes, we can!”. Até mesmo a vitória mais recente de François Hollande nas eleições francesas ainda tarda a apresentar resultados palpáveis em termos de saída da recessão em seu próprio país e de implementação de políticas econômicas alternativas à sua rival alemã, Ângela Merkel, nas instâncias da União Européia.
Como uma parte considerável dos meios de comunicação cria na população a expectativa de que os economistas sabem tudo e têm respostas para tudo, ocorre uma curiosa conjunção de interesses a esse respeito. O fenômeno econômico deixa de ser pensado como parte integrante do universo das ciências sociais. Aquilo que as diversas correntes das escolas clássicas (Adam Smith, David Ricardo, Karl Marx, entre outros) consideravam como “economia política” (“political economy”) foi sub-repticiamente convertido a simplesmente “economia” (“economics”), com a perda evidente de muito mais substância do que o simples adjetivo da política.
Economia não é técnica neutra; é integrante das ciências sociais
Uma das grandes tarefas para a mudança é desconstruir a imagem que o chamado “mainstream” ajudou a solidificar no ideário do senso comum: a economia não é uma ciência neutra, dotada de um arsenal de instrumentos e tecnicalidades que sempre pode conduzir a um único resultado certo e seguro. Exatamente em razão de suas relações com elementos da história, da sociologia, da ciência política, da antropologia, das relações internacionais, entre tantos outros, a economia tem por objeto de estudo um fenômeno ultra complexo e que responde a múltiplas causas. O que dizer então das perguntas encaminhadas aos “oráculos” das consultorias financeiras – como se fossem seres super dotados – a respeito de itens como crescimento do PIB para o ano que vem, taxa de inflação para o próximo biênio, evolução futura do mercado de “commodities”?
Os modelos utilizados pelos “especialistas” baseiam-se em instrumental da chamada econometria para tentar chegar a tais respostas. Trata-se de uma sofisticação de elementos da estatística para explicar o comportamento de variáveis da economia. O problema é que sempre são utilizados os dados do passado para tentar fazer as projeções para o futuro. E como a dinâmica econômica responde a fatores de natureza histórica, política e social, nem sempre o futuro reproduz as linhas de comportamento do passado. Na verdade, tais modelos deveriam ser utilizados com muito mais cautela e menos certeza.
Às vésperas da crise bancária de 2008, a absoluta maioria das empresas de consultoria econômica ignorava a possibilidade de emergência de uma crise sistêmica. As chamadas agências de risco ofereciam ótima notação para os bancos que quebraram logo a seguir, sempre na linha do AAA. No final de 2010, as previsões dos “especialistas” para o crescimento do PIB brasileiro de 2011 situavam-se na faixa de 4% – o resultado final foi de apenas 2,7%. Situação análoga ocorre para o PIB do presente ano: os “modelos” diziam que após a baixa de 2011, a economia só poderia se recuperar, com algo em torno de 4,5%. Porém os dados do setor real nos informam que dificilmente cresceremos mais de 2%. Mas então, e os modelos? Ora, os modelos…
Assim, a má fama que geralmente se atribui aos economistas é derivada desse tipo de comportamento. Mas não se trata de um problema associado à profissão em si. A questão reside na maneira como uma parcela dos responsáveis, formados de acordo com os pressupostos conservadores e defensores dos interesses do “establishment”, se apresentam para o conjunto da sociedade. Agem como se fossem portadores de um saber inquestionável e se consideram capazes de realizar todo o tipo de previsão econômica infalível para o futuro. Seus modelos são implacáveis na defesa de soluções duras, com conseqüências sociais e políticas catastróficas – e que não chegam nem mesmo a alcançar os objetivos pretendidos no início. Salários, desemprego, gastos sociais, desindustrialização? Ora, trata-se de variáveis pouco significativas, quando o importante é assegurar equilíbrio de mercado, atratividade do capital externo, concessão de fundos públicos para as empresas privadas, ajuda orçamentária para instituições financeiras com problemas de solvência.
A absoluta maioria dos órgãos de imprensa abre espaço apenas para os “especialistas” e “analistas” que compartilham essa mesma visão. A cada novo fenômeno a explicar ou a cada nova medida anunciada pelo governo, são ouvidos os profissionais de sempre e o público é contemplado com uma suposta “opinião inquestionável” dos economistas a respeito do tema, como se fosse uma espécie de consenso construído de forma artificial e casuística. Apesar das novidades trazidas pela crise, a sociedade permanece sendo informada a respeito apenas das bases da mesmice para o seu enfrentamento.
Paulo Kliass é Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal e doutor em Economia pela Universidade de Paris 10.
Artigo publicado pela Agência Carta Maior