A persistência da crise econômica mundial, ou, ao menos, da estagnação ou baixo crescimento que se verifica desde os anos 1970, tem suscitado um amplo e contraditório debate entre especialistas, policy makers, acadêmicos. A falta de um consenso mínimo parece ser a marca registrada deste debate. Não apenas devido à aura de opacidade que envolve os problemas econômicos, mas sobretudo devido à diversidade de orientações teóricas que se digladiam para fornecer respostas a um fenômeno que, grosso modo, é relativamente inédito para o sistema capitalista. Não porque outras crises persistentes não tenham se verificado antes, mas porque a profundidade da estagnação, que já chega a 40 anos, e as consequências decorrentes dela tornam-na uma fase especial e nova na história do desenvolvimento do capitalismo. Além disso, durante o período que vai do fim da Segunda Guerra até a primeira metade dos anos 70, não se verificou uma crise financeira sequer, embora houvesse recessões pontuais em função de desequilíbrios corriqueiros no mercado, ao passo que de lá para cá a economia mundial tem sido sacudida periodicamente por depressões nos mercadores financeiros. A intensidade dessas depressões foi cada vez maior a partir da década de 1990.
Por João Gabriel Vieira Bordin
A diferença entre ambos os períodos é bastante evidente e indiscutível. No período que ficou conhecido como 30 anos gloriosos (que, a rigor, não passaram de menos de vinte e cinco), os países capitalistas, liderados pela economia norte-americana que saíra absolutamente inigualável após a Segunda Guerra, presenciaram uma taxa de crescimento econômico sem precedentes na história, fazendo com que essa espécie de milagre ensejasse modelos inocentemente otimistas e que chegaram até mesmo a afirmar o fim do antagonismo entre capital e trabalho (a sociologia, em especial, se viu presa deste discurso). O keynesianismo era a solução final dos problemas econômicos e, por conseguinte, base para a resolução dos problemas sociais. Mas, conforme a acumulação crescia, a taxa de retorno sobre o investimento declinava, a lucratividade tornava-se cada vez menor e a demanda efetiva podia cada vez menos satisfazer tamanha expansão. Em meados da década de 1970, o descompasso entre investimento e retorno alcançou um ponto crítico, dando início a um período de estagnação econômica combinada a altas taxas de inflação. Novas formas de acumulação deveriam ser, então, encontradas. A resposta foi uma reformulação total no processo de trabalho, no fluxo internacional de capitais e comércio e na redefinição do papel do Estado. Precipuamente, o elemento central sobre o qual se apoiou essa nova fase que se abria para o capitalismo foi a total liberalização e desregulamentação do capital financeiro. Com essas reformulações, o capital e as classes dominantes puderam quebrar a força da classe trabalhadora e de seus órgãos de representação e organização, derrubando com isso os salários, a estabilidade e a segurança sociais.
Contudo, como projeto cujo fim era a retomada do crescimento, o neoliberalismo não foi bem sucedido. De modo geral, à exceção dos chamados “tigres asiáticos” (incluindo o Japão até a década de 1980) e, em menor medida, da Alemanha, a estagnação continuou, embora espocassem, aqui e ali, surtos de crescimento curtos e efêmeros. Somente em meados da década de 1990 houve um surto maior e mais sustentado, puxado pela recuperação da economia norte-americana, o qual, no entanto, também não se mostraria duradouro. A marca desses últimos quase 40 anos tem sido, portanto, a estagnação, entretecida por taxas de crescimento que nem de longe se assemelham àquelas vigorosas alcançadas no período anterior. Não obstante o baixo crescimento, verificou-se um forte movimento no sentido de aprofundar a desigualdade de renda. Com efeito, o que distingue o neoliberalismo, como prática político-econômica, é menos o crescimento econômico do que a centralização da riqueza em um número cada vez menor de mãos. É por isso que Harvey caracteriza esse processo histórico não como a busca da retomada do crescimento, mas antes como um projeto de classe que visou restaurar e recriar o poder político, econômico e social das classes dominantes. Neste aspecto, ao esmagar a força e as condições de vida da classe trabalhadora e ao criar mecanismos sem precedentes de centralização de capital através do sistema financeiro, o neoliberalismo foi, certamente, bem sucedido.
O tamanho e a originalidade desse período de estagnação levaram alguns intelectuais a tratar a presente fase do capitalismo como sendo caracterizada por uma crise estrutural. É assim, por exemplo, que Mészáros procura explicá-la. Segundo ele, o processo de reprodução ampliada do capital encontrou limites que não se pode ultrapassar senão localmente e a curto prazo. A tendência, em vista desses limites, é que a acumulação do capital torne-se cada vez mais problemática e, com isto, toda a reprodução social também. Isso não quer dizer que inevitavelmente a capitalismo irá desabar sob o peso das suas próprias contradições. Não compreender isso levou muitos críticos do marxismo a acusá-lo, não de todo injustamente, de catastrofista. De modo geral, ver limites inerentes à própria lógica de acumulação do capital é tendência constante dentro do pensamento marxista, embora haja diferentes teorias quanto a isso. Alguns, retomando as contribuições de Luxemburgo, Sweezy e Baran, entendem que os limites estão na capacidade superprodutivista e/ou subconsumista da produção capitalista e em sua consequente incapacidade de absorver excedentes. Outros, como Foster, enxergam os limites desse modo de produção na validade da lei que Marx enunciou como tendência decrescente da taxa de lucro.
Outros intelectuais, algo mais distantes do pensamento marxista clássico, procuram explicar essa estagnação econômica em termos de ondas cíclicas longas, que se caracterizariam precisamente por 40 ou 50 anos de duração. Essa corrente baseia sua análise na teoria dos ciclos de Kondratieff. Os economistas mais familiarizados com a teoria keynesiana acusam a dominância política da teoria neoliberal, cuja perspectiva básica é antagônica ao intervencionismo/regulacionismo de Keynes, de figurar no âmago do problema. Com efeito, o fato de que o capital financeiro tenha tomado o lugar do capital produtivo como indutor da acumulação do capital é o aspecto mais relevante dessa nova fase histórica que se inicia com a crise de 1973. Chesnais procurou, em meados da década de 1990, explicar as causas e consequências do que ele chama de mundialização do capital mediante a dominância do capital financeiro. O pensamento neoliberal, que vê na crise atual tão-só um reflexo de decisões equivocadas de agentes econômicos individuais, é completamente incapaz de compreendê-la, assim como – o é ainda menos – a própria dinâmica do capitalismo como um todo. De resto, os liberais/neoliberais são incapazes até mesmo de colocar a crise atual em perspectiva ampla, como defende ser necessário Brenner, concentrando-se em suas manifestações mais imediatas e localizadas.
Sem que nos seja possível aprofundar esse debate, queremos apenas sublinhar o fato de que, sendo a pedra de toque desse novo (e agora já velho) modelo de acumulação o capital financeiro, isto põe certas questões práticas para a luta de classes e para as perspectivas de superação da crise atual. O crescimento econômico não pode ser retomado (se é que ele pode ser retomado novamente dentro do quadro histórico-social posto pelo capital) sem um ataque frontal aos interesses dos bancos e das instituições de crédito e de investimento/especulação. Antes de tudo, deve haver vontade política, a qual só pode surgir mediante uma reorganização do bloco no poder em favor das frações de classe não alinhadas com os interesses financeiros, para nacionalizar os bancos. Salvá-los mediante injeção de recursos públicos e austeridade fiscal não resolve nada, apenas empurra o problema para frente e, ao final, prepara o terreno para crises ainda mais destrutivas.
Talvez uma anedota nos ajude a compreender a importância central da nacionalização do sistema financeiro. Na sequência dos eventos que levaram a tomada de Paris pelo proletariado sublevado e à declaração da Comuna em 1871, os comunardos aparentemente fizeram tudo o que um regime político socialista (ou em vias de se tornar socialista) deveria fazer, menos nacionalizar o sistema financeiro. Conforme relata Marx, os comunardos detiveram-se respeitosamente às portas do Banco da França, esse símbolo por excelência do capitalismo, e não foram capazes de nacionalizá-lo. Eis aí um erro que Marx considerou fulcral e que, em certa medida, ajudou a determinar a sorte da Comuna. Hoje, 140 anos depois, os governos de todo o mundo fazem o mesmo: contemplam respeitosamente o poder dos bancos sobre o Estado e sobre a sociedade civil sem se mostrarem minimamente capazes e/ou dispostos a enfrentá-lo.
João Gabriel Vieira Bordin é cientista social.