por Chico Alencar
“Getúlio, JK e Jango distribuíram mais renda que FHC e Lula. Os R$ 545 não representam sequer a reposição de perdas inflacionárias. Os 6,7% agregados nem cobrem o aumento da cesta básica nos últimos 12 meses, de 15,8%”
Honrado pelo convite para ser colunista periódico aqui do Congresso em Foco, tentarei mostrar que o Legislativo nacional anda perdendo o foco dos grandes debates nacionais. Felizmente, porém, a anestesia do pensamento único, que vai dos grandes partidos aos editoriais dos jornalões e à seleção de notícias do telejornalismo, não é geral.
Gosto de repetir que o traço do arquiteto – tive a honra de conhecer meus conterrâneos socialistas Lúcio e Niemeyer – colocou o prédio do Congresso Nacional no centro da Praça dos Três Poderes para reiterar que poder legítimo é aquele que vem do povo. E aquele no qual sua representação acolhe as demandas populares, as processa e devolve em forma de ordenamento jurídico justo.
Mas o sistema político-eleitoral brasileiro impede que as maiorias sociais se tornem maiorias políticas. Daí as insuficiências de nossa dinâmica legislativa – ou melhor, sua eficiência… para grupos hegemônicos tradicionais e excludentes.
Veja-se o acelerado debate sobre o salário mínimo. Ali houve contradição máxima: PSDB/DEM defenderam com ardor o que não praticaram quando foram governo, PT e aliados criticaram com veemência o que defendiam, quando na oposição. Ali houve grandes omissões, quebradas apenas pela reverberação do pequeno Psol.
A Constituição cidadã, com seu clarividente artigo 7º, inciso IV, andou ausente: “É direito do trabalhador o salário mínimo, fixado em lei, capaz de atender às suas necessidades vitais básicas e às de sua família com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social”.
O Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos (Dieese), de reconhecidamente sérios estudos, comprova que para o cumprimento desse preceito o valor do mínimo deveria ser R$ 2.227,53, mas os partidos hegemônicos fugiam dessa cifra incômoda como o diabo foge da cruz. Nem como meta a ser alcançada, ao longo dos anos, o mínimo constitucional foi citado…
O mesmo Dieese, outrora tão valorizado pelo PT, fez uma interessante série histórica desde o primeiro pagamento do mínimo, em 1940. Nela o bordão ‘nunca na história desse país’ fica deslocado da atualidade: o salário básico do Brasil já foi bem maior que o atual na primeira metade dos anos 40, nos anos 50, 60… Os governos Getúlio, JK e Jango, em sua época, distribuíram mais renda que os de FHC e Lula.
A fixação do salário em R$ 545, é bom lembrar também, não representou plenamente sequer a reposição de perdas inflacionárias. Os 6,7% agregados nem de longe cobrem o aumento da cesta básica nos últimos 12 meses, que sofreu inflação de 15,8%.
Outra mistificação é a falta de recursos. Virou cantilena: “Qualquer aumento significativo quebra a Previdência, quebra os municípios”. Por dever de honestidade, esse argumento deveria aceitar, ao menos, ser cotejado com os recursos superavitários da seguridade social, com seus aportes da Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (Cofins) e da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL) sempre omitidos (R$ 58 bi em média, nos últimos três anos). E com o ‘intocável’ pagamento de juros da dívida pública (jamais auditada, como também prevê a Constituição), cinco vezes mais elevado que o repasse da União a estados e municípios, comprometendo 44% do orçamento de 2011.
Causa estranhamento um Parlamento que, no fim da Legislatura passada, aprovou a toque de caixa (registradora?), sem qualquer preocupação com o efeito cascata, um aumento de 61% em sua própria remuneração, 130% na do presidente e 150% na dos ministros, equiparando-as com o significativo teto do Supremo Tribunal Federal (STF), ser tão parcimonioso e cauteloso, no alvorecer desta, com a elevação do salário mínimo.
Todos condenam o abismo sócio-econômico nacional, no qual os 10% de mais ricos ganham 40 vezes mais que os 10% mais pobres. O poder público devia dar exemplo de combate gradual e seguro a essas disparidades.
Salário mínimo não é questão exclusivamente técnica. Tem a ver com política econômica, cotejamento entre a valorização do capital e a do trabalho, distribuição de renda, projeto de desenvolvimento. De quebra, a Câmara decidiu abrir mão do debate dessas questões essenciais ao longo desta legislatura. Será que perdemos o foco do essencial no trabalho parlamentar?
*Formado na Juventude Estudantil Católica, participou ativamente do movimento comunitário do Rio de Janeiro nos anos 80. Professor de Prática do Ensino de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), é autor de 25 livros. Foi vereador e deputado estadual pelo PT. Está em seu terceiro mandato na Câmara dos Deputados (Psol-RJ). No pleito de 2010, foi o segundo deputado federal mais votado do estado, com 240.724 votos.
Fonte: Congresso em foco