Pronunciamento do deputado federal Ivan Valente
“Senhor Presidente, Senhoras e Senhores Deputados,
Ocupo a tribuna para contribuir com o debate recente que esta Casa faz acerca dos últimos acontecimentos em torno do Exame Nacional do Ensino Médio, o Enem. Prefiro, no entanto, seguir num rumo oposto do que tem apresentado tanto o governo, que parece não enxergar as deficiências técnicas e políticas do exame, quanto a oposição, que, sem pauta política definida, tenta transformar as falhas ocorridas no exame, que são graves, sem duvida, e levam ansiedade e grandes prejuízos aos estudantes, mas não tocam nos problemas estruturais desse exame.
A década de 90 foi considerada por diversos especialistas da área educacional como a década da avaliação. Mais especificamente o período que compreendeu o governo do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e do Ministro da Educação Paulo Renato, quando a avaliação da educação brasileira ganhou centralidade nas políticas públicas educacionais no País e culminou num Sistema Nacional de Avaliação em detrimento de um Sistema Nacional de Educação. Destacaram-se inciativas como o ENEM e o Exame Nacional de Cursos, conhecido como Provão.
Naquela época, ocupamos por diversas vezes esta tribuna para denunciar o caráter meritocrático, classificatório e de ranqueamento das instituições desses exames, por compreender que os mesmos não contribuíam com a melhora efetiva dos padrões de qualidade social da educação brasileira. Da forma como eram formulados, implementados e aplicados, os exames transferiam aos estudantes a responsabilidade pelo bom desempenho do ensino médio e superior, abstraindo os fatores sociais e econômicos que condicionam tal ou qual trajetória escolar e social. Os exames tampouco avaliavam os limites apresentados por escolas que contam com precárias condições de funcionamento, oferecidas pelo setor público e que tradicionalmente atendem à população mais carente.
O ENEM segue a mesma lógica. Segundo professora Sandra Zákia, da Universidade de São Paulo, o ENEM apenas se constitui em “uma medida de resultado final, interpretada em uma perspectiva individualizada, desconsiderando as condições dos sistema de ensino que, sem duvida, induzem a produção de “competência” ou “incompetência” nos alunos”.
Esses fatores fazem do ENEM um simples exame de classificação que teve – e tem – como objetivo condicionar os currículos das escolas a uma certa padronização que não combina com um País de dimensões continentais e com diferenças sociais tão gritantes.
Para nós, Senhores Deputados e Deputadas, o ENEM, assim como os exames de larga escala implementados na década de 90, tornou-se instrumento que induz a um tipo de gestão da educação que aposta na competição entre os estudantes e escolas. Que miniminiza o papel do Estado na promoção de uma educação de qualidade e maximiza o caráter individualista e competitivo na educação, importando uma lógica de mercado e incentivando a adoção de modelos de gestão privada, cuja enfase é posta nos resultados ou produtos do sistema educacional.
Acompanhando este paradigma, o atual governo não só manteve o ENEM como incentivou a ampliação de sua utilização. Hoje o Exame é responsável por pouco mais de cem mil bolsas do PROUNI e aproximadamente 83 mil vagas em universidades federais. Diferente da década passada, hoje o “novo” ENEM assume uma importância comercial de grande relevância. A partir do momento em que passa a ser instrumento indispensável para o acesso a bolsas do PROUNI e, posteriormente, passa a ser portal de ingresso às universidades federais, o Exame aprofunda uma dimensão classificatória e competitiva e assume sua vocação de ser um grande vestibular nacional, atestando sua incompetência em avaliar e contribuir para as melhoras do ensino médio no País.
Além disso, o “novo” ENEM foi pintado pelo Ministério da Educação como forma de democratizar o acesso ao ensino superior e substituir o desigual vestibular. Porém, o ENEM mantém o uso dos resultados de provas para classificar e selecionar alunos, como já acontece nos vestibulares. Longe de defendermos o sistema atual mas, diferente do ENEM – uma prova padronizada -, os vestibulares ainda dão espaço para que as especifidades de cada região e universidade possam ser levadas em consideração num processo classificatório.
É preciso desmistificar metas pretensiosas como a de democratizar o acesso às vagas e possibilitar a mobilidade acadêmica. Pois fica claro que não há evidencias, como disse a Profª Maria Angelica Minhoto da UNIFESP, que permitam considerar eficientes as mudanças no ENEM para alterar o perfil dos ingressantes em cursos de grande atratividade. Entre as variáveis que impactam a definição dos ingressantes, destaca-se o nível sócio-econômico.
Os estudos sobre perfil dos ingressantes nas universidades apontam que o nível socioeconômico dos estudantes influencia bastante no processo classificatório. Entende-se que aqueles estudantes que tem acesso a uma escola de melhor qualidade obtem níveis mais avançados do que aqueles que tiveram acesso a escolas de menor qualidade. O “novo” ENEM não leva isso em consideração e, ao mesmo tempo em que possibilita uma disputa nacional para o acesso as universidades, não viabiliza maior chance de ingresso aos estudantes de classes mais populares. Dessa forma, a possibilidade de escolha nacional dá mais chance aos que já tem. Assim, essa nova forma de ingresso às universidades dá mais chances a um tipo de seletividade social travestida de seletividade técnica, fortalecendo o ingresso nas universidades públicas federais de alunos de maior poder aquisitivo e de regiões mais ricas do país.
Registre-se que o sistema brasileiro de educação superior é um dos mais excludentes do mundo. Apenas 13% dos jovens entre 18 e 24 anos nele estão matriculados, menos de um quarto estuda em instituições que articulam ensino, pesquisa e extensão com qualidade; a maior parte delas são as universidades públicas.
Fundamental, também, é o debate sobre o ensino médio que a questão do ENEM evidencia. Se tem méritos ao buscar um caminho nacional, mais igualitário para acesso às oportunidades educacionais na educação superior, é necessário valorizar o ensino médio não como curso de “passagem”, mas como parte fundamental da educação básica e de formação do cidadão.
Portanto, senhoras e senhores Deputados, cabe a esta Casa contribuir para um amplo debate acerca das condições da educação pública brasileira. O Plano Nacional de Educação, que apresentamos na Câmara, apontava para um tipo de avaliação formativa nas diversas etapas do ensino, que se direciona para um processo que envolve todos os que constroem o cotidiano da educação: gestores, corpo docente e discente, os técnicos-administrativos e a comunidade escolar. Um processo que tenha como estratégia a melhoria da educação pública em todas as suas dimensões e que não seja simplesmente um processo de classificação e dualização entre estudantes bons e ruins.
Aperfeiçoar um exame que continua sendo classificatório parece-nos não adiantar. Efetivo seria aplicar as verbas compatíveis com as propostas do Plano Nacional de Educação de 1998, para universalizar com qualidade o ensino médio e ampliar significativamente o acesso a educação superior pública e de qualidade.
Teremos, a partir do próximo ano, a possibilidade de enfrentar este debate na formulação do novo Plano Nacional de Educação. Caberá a esta Casa, em conjunto com os diversos segmentos da educação brasileira, formular um novo tipo de avaliação que esteja condicionado a um Sistema Nacional de Educação amplo e articulado, em detrimento de um Sistema Nacional de Avaliação, desigual e excludente.
Por fim, queremos afirmar que cabe ao MEC consertar os erros e manter a isonomia de condições do certame. Mas ao entrar neste debate fica claro que não existe ENEM para fazer avaliação do ensino médio, da mesma forma que vestibular de universidade não avalia o ensino médio dos seus participantes nem os próprios participantes. Os estudantes não podem ficar no meio de um fogo cruzado, onde são os principais prejudicados.
Muito obrigado.”
Dep. Federal Ivan Valente
Líder do PSOL
17/11/2010