Nestas eleições, com duas mulheres candidatas à Presidência, já era de se esperar que a questão do aborto (tema “polêmico”, tratado como “tabu” fora deste contexto) voltasse aos debates eleitorais, como, em certa medida, ocorreu em 2006, quando tivemos, pela primeira vez na história política do nosso país, duas candidaturas femininas disputando as eleições presidenciais.
No nosso entendimento, o debate sobre o aborto durante as eleições tem relevância pelo fato de existirem altas taxas de mortalidade materna em função do aborto clandestino, o que levou alguns movimentos sociais, como o Movimento de Mulheres, Feminista, o Movimento pelos Direitos Humanos, entre outros, à reivindicação da alteração na legislação vigente, tendo em vista a preservação da vida das mulheres. E, é claro que, num país conservador como o nosso, onde grupos religiosos não aceitam a condição laica do Estado, a tensão no Congresso Nacional em torno da questão do aborto tem aumentado.
E vem crescendo também as tensões fora do Congresso Nacional. A ação destes grupos conservadores tem instaurado um clima de terror na sociedade, estimulando a criminalização das mulheres. Assim, crescem as denúncias, as humilhações e número de ações judiciais, que atingem tanto mulheres que abortaram quanto as trabalhadoras que as atendem e as organizações que lutam pela legalização.
Por estas razões, já esperávamos que no contexto eleitoral, a questão do aborto estaria em pauta. No entanto, no primeiro turno, quando tínhamos candidatos com posições favoráveis à legalização do aborto, como Plínio Sampaio (PSOL), e outros do campo da esquerda, como o candidato do PSTU e do PCB, a grande mídia deu pouca importância à questão do aborto. Este foi pautado poucas vezes, e de forma superficial, pelo “a favor” ou pelo “contra”. Com pouco tempo de TV, esses candidatos tiveram pouco espaço para politizar o debate.
Já no segundo turno, com duas candidaturas conservadoras e pragmáticas, a grande mídia conservadora serrista abriu amplo espaço para o aborto. José Serra, que de forma cínica se diz comprometido com a saúde pública, usou o debate sobre o aborto como moeda eleitoral para retirar os votos conservadores de Dilma, supostamente herdados da evangélica Marina Silva. A campanha de Dilma, por sua vez, conduziu a disputa de forma irresponsável: “em cima do muro”, ou negando as resoluções do partido, e até cedeu abertamente às pressões conservadoras, chegando a prometer que seu governo não fará alterações na legislação do aborto[i]. Aqui cabe um questionamento: o que a aliança com partidos como o PSC – Partido Social Cristão – tem a ver com esse posicionamento?[ii]
Mas, surpreendentemente, algo muito interessante aconteceu neste segundo turno. Sheila Canevacci Ribeiro, uma ex-aluna de Monica Serra, divulgou, através do seu Facebook, que Monica Serra “disse ter feito aborto por causa da ditadura”. Segundo seu depoimento, Monica Serra decidiu interromper a gravidez porque “o futuro dela e do marido, José Serra, era muito incerto”. Aí, o Jornal Folha de São Paulo publicou!
Essa declaração fez cair o véu da hipocrisia que vela o debate sobre o aborto no Brasil. Isto porque é assim que o aborto acontece no nosso país, apesar de ser crime. Diante de uma gravidez não planejada e diante de uma situação difícil, que pode ser econômica, política, social (de desemprego, de ditadura ou de pobreza extrema), as mulheres refletem, avaliam e decidem pelo aborto, seu último recurso. Infelizmente, poucas têm a chance de fazer a interrupção de forma segura, como parece ter ocorrido com Monica Serra. E nem todas conseguem sobreviver!
No momento em que a hipocrisia veio à tona, a grande mídia televisiva poderia ter aproveitado o momento para politizar o debate. Mas, ao contrario, seguiu pautando-se pelo moralismo. Se o papel da grande mídia é a informação, então porque não divulgou o conteúdo da plataforma que a Frente Nacional contra a Criminalização das Mulheres e pela Legalização do Aborto lançou no dia 28 de setembro, Dia Latino Americano de Luta pela Legalização do Aborto? Este documento que foi produzido pelos movimentos sociais e partidos políticos que compõem esta FRENTE busca contribuir com o debate sobre o aborto nas eleições.
Já que a grande mídia não cumpriu com o seu papel, aproveito este espaço, concedido por esta mídia alternativa, para apresentar alguns pontos daquela Plataforma[iii], que “explicita os termos da proposta de legalização do aborto” e, ao mesmo tempo, “indica as medidas e políticas necessárias para a sua implementação de forma justa, respeitosa e em condições de igualdade para todas as mulheres”. Reivindica “efetivar a proposta de legalização elaborada pela Comissão Tripartite, instituída em 2005 pela Secretaria de Políticas para as Mulheres, e que foi aprovada na II Conferencia Nacional de Políticas para Mulheres como a proposta a ser levada ao Congresso”. Propõe: 1) Retirar a prática de abortamento do código penal, mas deixar como crime o aborto forçado. Ou seja, impor e obrigar uma mulher a abortar deve continuar a ser crime, pois é uma violência contra a autonomia das mulheres; 2) Garantir o atendimento ao aborto no SUS e na rede complementar (privada) nos seguintes casos: até 12 semanas por livre decisão da mulher; até 20 semanas de gestação em casos da gravidez resultante de violência sexual; 3) Garantir o aborto ou a antecipação terapêutica do parto, conforme o caso, a qualquer momento da gestação em casos de risco de vida da mãe ou incompatibilidade do feto para com a vida extra-uterina; 4) Garantir equipe multidisciplinar para o atendimento as mulheres que recorrem ao serviço de aborto e pós aborto, para acolhimento, informação, orientação com privacidade e respeito a autonomia de decisão das mulheres.
Em respeito aos movimentos sociais e em defesa à vida das mulheres, Serra e Dilma deveriam defender a Legalização do Aborto porque os dois sabem (ou deveriam saber) que, como consta na Plataforma, a criminalização do aborto não impede que ele seja realizado, e não reduz sua incidência. Ao contrario, aumenta em muito as condições de risco de vida para as mulheres, em especial para as mulheres empobrecidas. Eles deveriam saber que a ilegalidade do aborto construiu e mantêm uma indústria do aborto clandestino, que segue colocando em risco a vida das brasileiras, e tem levado ao abortamento tardio, com maior sofrimento emocional e riscos de vida para as mulheres.
* Zilmar saiu este ano candidata ao Senado pelo PSOL, além de militante da frente pela legalização do aborto na bahia e mestra em estudos de gênero, feminismo e mulheres pela PPGNEIM/UFBA.
[i] Vale lembrar que as promessas feitas por Lula aos cristãos formam rigorosamente cumpridas. Em carta endereçada à CNBB, na sua 43ª Conferencia Nacional, o Presidente Lula assegurou aos bispos que seu Governo não tomaria nenhuma medida que viria a contrariar os princípios cristãos, o que, de fato, foi cumprido, culminando na assinatura da Concordata Brasil-Vaticano, que estabelece um estatuto da Igreja católica no país, desrespeitando a condição laica do Estado.
[ii] O PSC tem um programa baseado na doutrina social cristã, e, por isso, defende o atrelamento do Estado com as Igrejas Cristãs.
[iii] http://www.soscorpo.org.br/Adm/userfiles/PlataformaABORTO%281%29%281%29.pdf:
Fonte: http://transarevista.blogspot.com/