Por Clóvis Rossi
O mais persistente mito sobre o Brasil do Presidente Lula da Silva diz respeito à queda da desigualdade. O Brasil historicamente é um país de obscena desigualdade social, mas a propaganda oficial e a conivência de académicos que estudam o tema criaram a lenda de que a desigualdade está a cair, pouco mas a cair.
É um mito. O que diminuiu foi apenas a desigualdade entre assalariados, não entre o rendimento do capital e o rendimento do trabalho.
O abismo capital/trabalho é justamente a maior obscenidade. “A parte do rendimento do conjunto dos verdadeiramente ricos afasta-se cada vez mais da condição do trabalho, para se aliar a outras modalidades de rendimento, como aquelas provenientes da posse da propriedade (terra, acções, títulos financeiros, entre outras)”, escreveu Marcio Pochmann, atual presidente do IPEA (Instituto de Pesquisas Económicas Aplicadas), organismo estatal.
O texto foi escrito por Pochmann quando ainda era professor universitário, antes de ser chamado para trabalhar no Governo. Depois, o investigador diz não ter mudado de opinião, mas contribui para a persistência do mito da queda da desigualdade ao silenciar sobre o facto de que ela só se deu na parte menos relevante.
Outro importante economista do IPEA, João Sicsú, também antes de ser chamado para uma instituição pública, enfatizava números que demonstram que é impossível ter havido redução da desigualdade entre rendimento do capital e do trabalho.
Escreveu Sicsú: “Em 2006, o Governo federal pagou 163 mil milhões de reais [cerca de 73 mil milhões de euros] de juros aos detentores da dívida pública federal. Aproximadamente 80 por cento desse valor é apropriado por 20 mil famílias – que fazem parte da elite brasileira. Enquanto isso, em 2006, dezenas de milhões de pobres foram atendidos pelos programas de assistência social do Governo federal com apenas 21 mil milhões de reais [à volta de 9,4 milhões de euros]“.
A comparação continua a valer. O Bolsa Família – o programa de transferência de rendimento que o Governo Lula ampliou consideravelmente e é o factor central para a altíssima popularidade do Presidente – beneficia hoje 12,6 milhões de famílas, a custo anual de 13,1 mil milhões de reais (cerca de 5,8 mil milhões de euros).
Já o pagamento de juros para os detentores de títulos públicos somou, em 2009, a estratosférica quantia de 380 mil milhões de reais (cerca de 170 mil milhões de euros) ou 36 por cento do Orçamento do Brasil, de longe a maior rubrica de gastos.
A comparação é um tiro no coração do mito: se, como diz João Sicsú, 80 por cento do bolo de juros/amortização da dívida vão para apenas 20 mil famílias, estas terão recebido no ano passado algo em torno de 304 mil milhões de reais (mais de 136 mil milhões de euros). Já as 12,6 milhões de famílias pobres beneficiadas pelo Bolsa Família levaram apenas 13,1 mil milhões (5,8 mil milhões de euros).
Ou seja, 20 mil famílias ricas – como são as detentoras de títulos da dívida pública – ganharam 23 vezes mais dinheiro público do que os 12,6 milhões de famílias pobres.
Outra comparação que só reforça a impossibilidade de se ter reduzido a desigualdade aparece entre as percentagens do Orçamento que vão para o pagamento de juros da dívida e para áreas sociais vitais, como Educação e Saúde. Segundo o deputado Ivan Valente (do partido de esquerda PSOL – Partido Socialismo e Liberdade), enquanto para pagar juros são alocados 36 por cento do orçamento, para Educação ficam magros 3 por cento e muito pouco mais (5 por cento) para a Saúde.
Para lá do índice de Gini
O mito da queda da desigualdade é desmontado também por um estudo de organismos internacionais. Chama-se Emprego, Desenvolvimento Humano e Trabalho Decente – A experiência brasileira recente, preparado pelas Nações Unidas.
A investigação mostra que “juros, alugueres e lucros foram as parcelas do rendimento brasileiro que mais cresceram desde a última década, superando o rendimento dos trabalhadores. Os ganhos financeiros representavam, em 1990, 38,4 por cento do rendimento nacional – um dos componentes do Produto Interno Bruto (PIB). Em 2003, o peso havia subido para 51,7 por cento. A remuneração das pessoas ocupadas apresentou tendência inversa e passou a ser a parte menor do bolo: caiu de 53,5 por cento para 42,9 por cento”.
Os dados do estudo param em 2003, exactamente o ano em que Lula assumiu a Presidência da República. Mas os números dos anos posteriores, usados por economistas hoje no Governo, como Pochmann e Sicsú, e a comparação entre o que o Governo gasta com o Bolsa Família e com os juros da dívida, demonstram que a situação pouco ou nada se alterou.
Conclui a ONU: “Esse cenário indica que os ganhos com o crescimento do PIB e os benefícios que as empresas brasileiras tiveram com melhoria de tecnologias podem não ter sido transmitidos, na mesma proporção, aos trabalhadores”. O estudo sugere que “a melhoria na distribuição funcional depende de políticas distributivas de rendimentos e, talvez ainda mais essencialmente, das condições em que os ganhos de produtividade são transmitidos aos trabalhadores. O comportamento das variáveis relevantes para essa transmissão foi pouco favorável aos trabalhadores no período aqui estudado”.
Como é possível, perante tamanha evidência fornecida pelas estatísticas, que se propague o mito da queda da desigualdade? Simples: o índice de Gini, a medida mais comummente utilizada para medir a desigualdade, reflecte apenas os ganhos salariais e com a rede de protecção social, como Bolsa Família e reformas de aposentação.
“Tais números equivalem a apenas 40 por cento do Produto Interno Bruto”, diz o professor Cláudio Dedecca, da Unicamp. E completa: os investigadores não têm acesso à renda com ganho de capital das classes A e B, obviamente as mais ricas.
Essa constatação empírica foi vivida na prática pelo jornalista Fernando Canzian, da Folha de S. Paulo, e por ele relatada no seu blogue. Este ano de 2010 é o ano do Censo no Brasil, a principal pesquisa para fazer uma radiografia do país, incluindo rendimento. Canzian respondeu ao questionário do Censo. Eis o seu relato:
“Num determinado momento, entre várias questões sobre número de casas de banho e rede de esgoto, quase ao final, o homem de boné [o recenseador] pergunta qual tinha sido o meu rendimento total no final de Julho de 2010. A resposta é imediata e irreflectida: digo o valor do salário bruto naquele mês. Ele anota e não faz nenhuma ponderação.
No carro, a caminho do trabalho, fico matutando se não deveria ter incluído no “total de rendimentos” o que recebo por emprestar minhas aplicações financeiras a juros elevados para financiar nosso Governo gastador. E o valor de um imóvel que está alugado, não deveria entrar na conta?
Em alguns meses, o Censo mostrará que a nossa desigualdade de salário e rendimentos continua extremamente elevada. Mas, assim como eu, a maioria dos que responderam ao breve questionário devem ter omitido (de propósito ou não) outras rendimentos que recebem além do oriundo do trabalho.”
Por isso, podemos apostar: o Brasil segue muito mais desigual do que as estatísticas mostram.
A persistência do mito da queda da desigualdade não quer dizer, no entanto, que a vida do brasileiro continua miserável. Não. Pelo contrário. A vida melhorou muito porque houve avanços nos salários, há mais gente empregada do que nunca, o crédito – que era uma ficção em todo o longo período de inflação absurda – foi apresentado a um público numeroso.
É quase certo que os mais ricos, como geralmente ocorre, tenham melhorado ainda mais de vida. Mas os mais pobres também melhoraram e, por enquanto, não parecem preocupados em fazer as contas para ver se melhoraram mais ou menos que os ricos. Importa-lhes o frigorífico novo, o carro novo, mais comida – e mais rica – à mesa. Por isso, a candidata de Lula à Presidência, Dilma Rousseff, tem imensas hipóteses de ganhar a eleição já na primeira volta a 3 de Outubro, embora seja absolutamente virgem em disputas eleitorais.
Clóvis Rossi, de 67 anos e 47 de jornalismo, é colunista e jornalista da Folha de S. Paulo
Artigo publicado no jornal PÚBLICO, de Portugal, em 05/09/2010