Por Hamilton Assis
O Estatuto da Igualdade Racial tinha como objetivo em sua proposta original propor medidas efetivas para reduzir a desigualdade racial entre negros e brancos. No entanto, num acordo espúrio com a participação de lideranças cupulistas do movimento negro (CONEN, UNEGRO, Agentes de Pastoral Negros e outras), a SEPPIR* e parlamentares conservadores do DEM e PSDB, em aliança com a base governista no Congresso Nacional (PT, PCdoB e seus aliados) formalizaram uma proposta que na prática nega a existência do racismo em nosso país.
Com isso, retroagimos em relação às conquistas do povo negro, que desde 1995, na grandiosa marcha a Brasília, havia assegurado o reconhecimento do Estado brasileiro sobre o racismo como inibidor da mobilidade social, política e econômica do povo negro.
A população negra em 2007, segundo dados do IBGE, superou a população branca e, no Brasil, 49,8% se identificava como preta ou parda. No entanto, estes dados não se refletem na participação dessa população nos espaços políticos e econômicos em nosso país, que enfrenta diferentes dificuldades para assegurar sua mobilidade social, econômica e política. Creditamos estas dificuldades, a um processo de reprodução da desigualdade que deriva da prática da discriminação racial por parte das instituições públicas no atendimento às demandas da população negra.
A discriminação sofrida por negros e negras no Brasil se deve a uma estrutura racial existente em nossa sociedade, que historicamente mantém privilégios e alimenta a exclusão e as desigualdades sociais, tendo como as principais vítimas as populações negras e indígenas.
A população negra tem maior dificuldade de acessar bens e serviços públicos, o mercado de trabalho, o ensino superior e gozar plenamente seus direitos. Dois terços dos pobres no Brasil são negros. Metade da população negra vive abaixo da linha da pobreza. Um jovem branco no Brasil tem três vezes mais probabilidade de chegar à universidade do que um negro.
O acordo que aprovou o Estatuto retirou reivindicações importantes contidas na proposta original, que visavam o combate e a redução dessas desigualdades em áreas como: saúde, educação, territórios quilombolas, meios de produção, meios de comunicação, acesso à justiça, adoção de políticas de cotas, direitos da mulher afro-brasileira e a exigência de cotas para atores negros e negras nos programas televisivos e em peças publicitárias. Retirou também o artigo que tratava da política nacional de saúde para a população negra e as propostas de incentivo fiscais a empresas que mantenha uma cota de, no mínimo, 20% de trabalhadores negros e negras em seu quadro funcional.
O relatório final nega a utilização histórica do conceito político de raça, a pretexto de estabelecer hierarquias em nossa estrutura social que inferiorizou, quando não inviabilizou, a presença do negro na nossa sociedade. Além disso, passou por cima da legislação internacional de combate e eliminação de todas as formas de discriminação racial, ratificada pelo Brasil em 1969. E ainda ignorou a declaração e o programa de ação de Durban, aprovado na 3ª Conferência Mundial contra o Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e as Formas Conexas de Intolerância, realizada em 2001 na cidade africana de Durban. O programa estabelece várias obrigações ao Estado brasileiro para o combate à discriminação racial e ao racismo.
Repudiamos o pacto racial em torno do suposto Estatuto da Igualdade Racial, que preserva os privilégios das elites brancas e racistas. Reafirmamos nossas lutas por ações afirmativas e contra a discriminação de raça, gênero e orientação sexual.
Repudiamos o uso do Estado brasileiro para promoção da segregação racial e de privilégio de setores e o extermínio sistemático da juventude negra nas periferias urbanas, impetrado por uma polícia racista a serviço das elites dominantes do Estado brasileiro e sua segregação nos espaços urbanos e rurais configurando uma sistemática faxina étnica.
Além disso, apoiamos a criação da Frente de Ação Unitária do movimento negro combativo contra a Ação Direta de Inconstitucionalidade 3239 do DEM (que questiona o decreto de reconhecimento dos territórios quilombolas) e a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 186, também do DEM, que questiona a implementação da política de cotas na UnB. Defendemos a titulação imediata dos territórios quilombolas e a luta pela punição dos crimes de violência de Estado e genocídio do povo negro, particularmente da juventude negra.
Defendemos a implementação de programas de políticas afirmativas no mundo do trabalho, no SUS e na educação para corrigir as desigualdades. Assim como, propomos mudanças na política econômica – em defesa de um novo modelo de desenvolvimento, que seja desconcentrador da riqueza e redutor das desigualdades sociais, regionais, políticas e econômica, que implique na queda das taxas de juros, redução do imposto sobre o consumo, fim superávit primário, fim da livre movimentação de capitais especulativos, auditoria da dívida pública e defesa dos direitos trabalhistas.
Exigimos ainda o direito a ação indenizatória reparatória nos casos de comprovação de políticas discriminatórias institucionais que afetem populações negras e indígenas, com base no critério de raça, e o fortalecimento do caráter público do Estado (ampliação de instrumentos democráticos de participação popular através de mecanismos como plebiscitos, referendos e projetos de iniciativa popular).
* Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial
** Escrito em 20 de julho de 2010.