Escrito por Valéria Nader
Publicado originalmente no Correio da Cidadania em 06-Ago-2010
Mesmo para aqueles já cientes e acostumados ao marasmo que tomou conta da cena política nacional, o primeiro debate entre os candidatos à presidência, promovido pela Rede Bandeirantes de Televisão, na noite do dia 5 de agosto, surpreendeu. Vem de longínqua data a desertificação de idéias e a homogeneização do pensamento político, bem como a apatia da população e dos movimentos sociais no que diz respeito ao exercício de sua cidadania e de seus direitos. Não parecia que um debate presidencial a mais ou a menos poderia suscitar um sentimento de ainda maior descrença na possibilidade de transformação de nosso país.
Os contendores de 5 de agosto conseguiram, de todo modo, reforçar a impressão de que se pode avançar mais na degringolada da qualidade dos debates. E se as discussões que protagonizaram forem tomadas como termômetro da atuação desses que se propõem a dirigir o país, só poderá restar muita desesperança aos brasileiros.
Dilma e Serra, como era de se esperar, polarizaram as discussões. Uma polarização, no entanto, absurdamente rasa e inócua. Os espectadores televisivos e os presentes no estúdio da Band depararam-se, no que se refere a estes líderes nas pesquisas, além de maiores representantes do status quo, com uma mistura de superficialidade, despreparo, confusão e mistificação. Problemas e desvios todos estes triviais nesse tipo de confronto, mas talvez percebidos como mais proeminentes no debate em questão. Afinal, após muitos anos, este é o primeiro confronto em que está ausente o presidente Lula, cuja popularidade conseguiu fazer como líder primeira nas pesquisas justamente a candidata que consegue reunir todos os ingredientes da mistura supracitada.
Marina não ficou pra trás na superficialidade dessa batalha. Para aqueles que porventura nutriam ainda alguma esperança quanto a uma possibilidade alternativa vinda do Partido Verde – conforme Editorial Marina: uma nesga de céu azul deste próprio Correio à época do lançamento da candidatura de Marina -, parece que precisam vislumbrar novos rumos. Não existe alternativa que possa ser minimamente oferecida a partir de uma risível insistência em permanecer no ‘caminho do meio’, em eterna busca pela conciliação e com a utilização de conceitos anódinos, a la ‘Terceira Via’. Para aqueles que, ademais, se mantêm mais visceralmente ligados às causas dos movimentos sociais, é inconcebível a posição titubeante e ambígua da candidata no que diz respeito à transposição do rio São Francisco e à construção da usina de Belo Monte – obras cujo impacto no meio ambiente deveria mobilizar de modo bem menos complacente aquela que está sempre a enfatizar a sua origem humilde em meio a nossas matas.
Em face de cenário tão árido e escasso de idéias relevantes, houve algumas inusitadas e surpreendentes intervenções. Plínio de Arruda Sampaio, ex-promotor público e deputado constituinte, atual presidente da ABRA (Associação Brasileira de Reforma Agrária), tocou em temas espinhosos e absolutamente negligenciados pelos veículos de comunicação e meios políticos – a efetivação da reforma agrária, a partir da desapropriação de terras a partir de 1000 hectares; a desigualdade na distribuição de renda; a redução da jornada de trabalho; e a controvérsia desenvolvimento versus meio ambiente. Do alto de uma história rica em experiências, acima de tudo, sempre vividas com muita coerência, abordou tais questões de modo direto e tranqüilo, interpelando os candidatos incisivamente a que se pronunciassem sobre elas.
Entre aqueles que têm acompanhado e observado de perto a trajetória da campanha, pôde-se, de fato, notar um certo incômodo com o candidato, na medida em que o postulante do PSOL parecia ter adotado a postura do ‘curto e grosso’ em sua atuação. Aludia-se a que as suas intervenções deveriam ter sido seguidas de maior aprofundamento, conduzindo de modo mais substantivo a interlocução com os adversários e destacando mais detalhadamente as diferenças entre o tipo de sociedade e modelo econômico defendidos pelo PSOL relativamente àqueles proferidos unanimemente pelos demais candidatos.
A ‘pegada’ crítica e divertida de Plínio rendeu-lhe, no entanto, o ‘Trending Topics’ do Twitter mundial. O candidato chegou a ser o campeão mundial de citações no Twitter. Não mais poderia, portanto, ser tão acintosamente ignorado pela grande mídia.
Não é, obviamente, do interesse dos maiores veículos entrar na discussão das especificidades dos temas levantados pelo candidato, e que são justamente aqueles que o diferenciam dos demais. Até porque mexer nesses temas é cutucar os poderosos lobbies econômicos que atuam afinados com os maiores grupos de comunicação do país. Os grandes veículos passaram, assim, a ressaltar, nas várias manchetes que inundaram a mídia impressa e virtual durante e após o debate, o lado ‘provocativo’, de ‘franco atirador’ e ‘irônico’ do candidato.
Nada mal quando não se tem a menor ilusão no que se refere ao real posicionamento de nossa imprensa quanto aos ‘divergentes’, e para quem até agora ‘não existia’ – conforme salientado pelo próprio Plínio logo no início do debate. Mediante o imenso poder de reverberação propiciado pela internet, aqueles que não desistiram de fazer valer os seus direitos e a sua cidadania terão uma chance a mais de se deparar com um mínimo de dissonância no debate político de agora em diante.
A partir desse episódio, restam também algumas evidências para aqueles que pretendem uma atuação mais à esquerda no espectro político. Diante das óbvias e já tão divulgadas provocações e cutucadas do candidato do PSOL no sentido de conduzir a uma divergência mínima em uma discussão em seu âmago absolutamente convergente – como tantas vezes expresso pelo próprio candidato ao longo de todo o debate -, ficou claro que a maior postulante a representar uma alternativa política de fato no cenário nacional não cumpre em absoluto este papel.
É bom que os setores mais progressistas se atentem a este fato, e fiquem de olhos bem abertos. Afinal, já bastam as manipulações grosseiras levadas a cabo pelos setores mais à direita e também pela mídia em geral.
Em tempo: a mídia elege quem pode e quem não pode falar, quem é e quem não é candidato, e ficou apenas a trinca Dilma-Serra-Marina. O “furo” foi a lei que obriga a participação dos candidatos cujos partidos têm representação no Congresso nos debates de TV aberta, e por isso Plínio teve de ser convidado pela Band. No caso do debate Folha-UOL, que será transmitido pela Internet, o candidato não fará parte, já que a exigência para participação em debates na internet é um percentual de intenção de votos acima de 10%. Coisas do Brasil.
Valéria Nader, economista, é editora do Correio da Cidadania.