Por Caroline Cotta de Mello Freitas e Vinicius Mansur
Publicada na edição 2164 da revista Veja, de 12 de maio deste ano, a matéria “A farsa da nação indígena”, referindo-se à Bolívia, traz uma série de equívocos e de fatos descontextualizados que, juntos, dão forma a um texto totalmente preconceituoso com o país e com o processo político por ele vivido atualmente.
Apesar do repórter Duda Teixeira assinar o texto de La Paz, é difícil crer que um jornalista esteve nesta cidade e, ainda assim, intitulou sua peça jornalística tal qual foi publicada. Só não percebe os traços indígenas da maioria da população quem passou por aqui e não olhou a cara das pessoas. Quem caminhou pelas ruas de ouvidos tapados ignorando os “aymara e quechua-hablantes”. Quem não se permitiu aos olores, não provou da comida, não buscou saber da música, não buscou na literatura, enfim, quem censurou todos os sentidos e quase todas suas formas de reprodução. De tal maneira que desatar tantos devaneios travestidos de jornalismo nos consumiria o espaço de toda uma edição da revista. Mas vamos a alguns pontos.
Alguns dirão que La Paz não é a Bolívia e, de fato, a Bolívia é muito mais diversa, para se ter uma idéia são 36 povos indígenas no país, além de afrobolivianos, grupos descendentes de imigrantes e muitos mestiços. O autor do artigo pode alegar que a dita farsa não é obra do povo boliviano, senão dos líderes do “processo de cambio”. Porém, a própria matéria cita que a nova Constituição – resultado de uma Assembléia Constituinte, posteriormente aprovada em referendo popular durante a primeira gestão de Evo Morales – considera a Bolívia um Estado Plurinacional. Afinal, onde está a farsa?
De maneira oportunista, o texto segue manipulando informações sem critério para criticar as medidas de orientação indigenista do governo, porém utiliza os argumentos de outros indigenistas quando estes sustentam críticas ao poder executivo, transformando a matéria em um malabarismo argumentativo que, ao final, caricaturiza toda expressão indígena e reduz a diversidade e as possibilidades políticas que se apresentam dentro do processo de mudanças.
A Veja afirma que o projeto político do MAS (partido de Morales) é uma farsa porque “os índios representam apenas 17% da população”, porque o nacionalismo indígena foi “criado em universidades americanos e européias” e “transferido para o altiplano por 1,6 mil ONGs”. Afirma que “o caos foi instalado” e que “a Bolívia tornou-se um país sem lei” com a institucionalização da Justiça Comunitária, ou seja, com o reconhecimento legal pelo Estado das formas de justiça aplicadas há séculos nas comunidades originárias. Medida responsável por “propagar linchamentos entre a população” que agora ocorrem “em média, um por semana”, conclui Teixeira – ou seu editor – sem qualquer menção a origem dessas informações.
Assim como não menciona que o último censo oficial, realizado em 2001, apontou que 66% da população se identificava como indígena. Não menciona Tupac Katari, Bartolina Sisa, Julian Apaza, Pablo Zarate”Willka” e todos aqueles que, desde há muito, construíram lutas e idéias em prol de uma nação onde os indígenas fossem livres e respeitados, antes mesmo de qualquer contato com universidades e ONGs ocidentais. Não mencionam o Artigo 190 da Constituição, que estabelece, entre outras coisas, que “a jurisdição indígena originária camponesa respeita o direito a vida, o direito a defesa e os demais direitos e garantias estabelecidos na presente Constituição”.
O jogo mesquinho de construção do real não diz que linchamentos são um fenômeno urbano, não rural, que está relacionado ao amplo descrédito em relação às instituições da ordem, como a Polícia e a Justiça [1]. O episódio de agressão sofrido por Victor Hugo Cárdenas é atribuído à Justiça Comunitária. No entanto, a “pelea” de certos grupos e movimentos indígenas com Cárdenas é bem anterior ao governo Morales. Cárdenas, um antigo ideólogo do indigenismo Katarista, é considerado traidor por alguns grupos e movimentos indígenas, pois aceitou ser vice-presidente, a partir de 1993, do então presidente Gonzalo Sanchez de Losada, um dos maiores responsáveis pelo avanço de políticas neoliberais, que entre outras coisas entregaram a preços “módicos” os recursos naturais bolivianos às empresas transnacionais.
A manipulação grosseira segue com o caso Patzi. Na versão da revista, o ex-candidato do MAS ao governo de La Paz nas eleições regionais de abril deste ano, o aymara Félix Patzi, foi “flagrado dirigindo bêbado, foi condenado pela Justiça comunitária a fazer mil tijolos. Além disso, teve a candidatura inabilitada. Se Patzi tivesse concorrido ao pleito e vencido, isso tampouco garantiria a sua posse”.
Patzi de fato foi flagrado bêbedo, justamente no momento em que o governo enfrentava os trabalhadores e empresários do setor de transporte, que chegaram a realizar bloqueios de estradas em oposição ao projeto de lei que previa, entre outras coisas, a suspensão da licença para conduzir daqueles motoristas profissionais flagrados bêbados trabalhando. Nesse contexto, o MAS decidiu substituir Patzi pelo também aymara César Cocarico. A Justiça Comunitária entra na história através das bases de Patzi, que em seu povoado aymara, Patacamaya, em busca do perdão que o reabilitaria a ser candidato, estabeleceram que ele deveria construir os tijolos para se redimir. Porém, mesmo cumprindo a pena, o MAS não mudou de posição.
E assim o texto vai distorcendo fatos, chamando a Justiça Comunitária de “brutal arma contra a oposição e ex-aliados de Morales”. Mas, não menciona que boa parte dos adversários do presidente, em geral os governantes de outrora, fugiram do país com medo da Justiça Comum, uma vez aprovada a Lei Anticorrupção Marcelo Quiroga Santa Cruz, que, entre outras coisas, considera que os crimes de corrupção cometidos por servidores públicos no exercício de suas funções são imprescritíveis.
A Veja mente quando afirma que Morales já perdeu o apoio do Conselho Nacional de Ayullus e Markas do Qullasuyu (Conamaq) e da Assembléia do Povo Guarani (APG). É verdade que ambas organizações tem tomado posturas críticas diante de políticas estatais, ou da falta delas, e seguem apostando na mobilização como forma de conquistar direitos, ao invés do apoio apático e incondicional. Porém, uma revista que escreve que os protestos diminuíram nos primeiros anos de governo Morales “já que o presidente controlava os baderneiros” é incapaz de entender que Conamaq e APG seguem fazendo parte da aliança que governa a Bolívia.
A Bolívia, desde as revoltas chefiadas por Tupac Katari, no século XVIII, se caracteriza por grandes mobilizações populares. Os famosos “bloqueios” e “marchas” são estratégias de manifestação do povo boliviano há séculos. Feliz país que se caracteriza pelo dissenso, nada mais democrático. Perigo é o silêncio conivente, a indignação que não toma as ruas, seja por impedimento (como nas ditaduras) ou por indiferença. Manifestações públicas, como as marchas bolivianas e críticas abertas ao governo não são só necessárias, são fundamentais para que se fortaleça um Estado democrático. O dissenso não é uma prova de “farsa”, é uma prova de “saúde” democrática.
Mas, infelizmente a Veja segue disseminando de maneira sistemática sua visão preconceituosa em relação aos povos indígenas e também aos quilombolas, vide a matéria publicada na edição anterior, de número 2163, datada de 5 de maio de 2010, intitulada “A farra da antropologia oportunista”. Nela, a revista atribui a declaração “não basta dizer que é índio para se transformar em um deles. Só é índio quem nasce, cresce e vive num ambiente de cultura indígena original” ao antropólogo Eduardo Viveiros de Castro. Porém, é vergonhosamente desmentida por Viveiros de Castro que, em uma carta para a revista, afirma: “Nenhum antropólogo que se respeite a pronunciaria”.
A Veja, por possuir essa perspectiva distorcida sobre “o que é ser índio”, afirma, portanto, que Morales não é indígena por não falar aymara fluentemente ou por ser solteiro. Questionamentos como esses tem mais relevância para Veja que a autonomia indígena estabelecida pela nova Constituição, a incorporação da bandeira indígena wiphala como um dos símbolos oficiais do país, a obrigação dos funcionários públicos em aprender uma língua originária falada na região onde trabalham, a criação de três universidades indígenas (uma aymara, uma quechua e uma guarani), a libertação do trabalho escravo de indígenas guaranis em fazendas em Santa Cruz, a erradicação do analfabetismo na Bolívia ou até mesmo o fato do país ter apresentado o maior crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) da América Latina (3,2%) em 2009, de acordo com o Fundo Monetário Internacional (FMI), fatos omitidos na matéria.
Evidentemente, o processo político encabeçado por Morales encontra enormes desafios, dissidências e disputas internas, que reproduzem, por vezes, as velhas práticas em busca do poder – conhecidas em todos os países do mundo – mas também muitos boatos, muitas versões. Elementos existentes em todos os processos políticos vivos e pujantes.
A acusação de que Morales divide o país com suas declarações, como disse Jaime Apaza à Veja, são no mínimo curiosas. Afinal, falar em inclusão de grupos tradicionalmente excluídos não significa dividir o país. Um presidente que defende os direitos de grupos invisibilizados há séculos, não profere palavras de “ódio”. Claro, para certas parcelas da população boliviana, sim, as idéias defendidas por Morales são ameaçadoras porque ameaçam privilégios seculares e a manutenção de uma sociedade racista e excludente, em que a origem étnica tradicionalmente “define” quais lugares alguém pode ocupar na sociedade.
Para aqueles que carregam traços indígenas em um país como a Bolívia, onde a circulação de pessoas de origem indígena em certas áreas das cidades era restrita até 1952, o atual processo político e social tem um valor difícil de ser mensurado. E, certamente, impossível de ser taxado como farsa.
Caroline Cotta de Mello Freitas é doutoranda em Antropologia pela Universidade de São Paulo, desenvolve pesquisa sobre direitos indígenas e movimentos sociais na Bolívia. É professora da FESPSP e da FASM, pesquisadora associada ao MUSEF – BO.
Vinicius Mansur é correspondente do Brasil de Fato na Bolívia.
Nota
[1] Afirmação feita pelo representante da Organização das Nações Unidas (ONU) na Bolívia, Denis Racicot, em 24 de março de 2010, durante a apresentação do Relatório sobre os Direitos Humanos na Bolívia em 2009.