Sem debater causas estruturais, a dor com as chuvas estimula apenas, no discurso oficial, a defesa de remoções de favelas
Leandro Uchoas do Rio de Janeiro – Brasil de Fato
Na segunda semana deste mês, uma nuvem negra tomou os céus do Rio de Janeiro. Sob o maior volume de chuvas da história, uma cidade inteira gritou a dor da imobilidade e da morte. Inundações, desabamentos, caos. Mais de duas centenas de mortos, quase cem desaparecidos. A tragédia carioca traz em sua substância quase todos os sintomas da absurda vida contemporânea nas metrópoles, do descaso das autoridades e da apatia social. Por isso, junto à imensa tristeza que provoca, o dilúvio também poderia trazer, pela diversidade de temas que lhe servem de causa, debates mais ricos para a construção de uma cidade justa. Entretanto, ao que se vê pelo discurso dos governantes e da mídia, a tragédia reforça o ideário conservador de cidade e estimula as políticas públicas mais nefastas surgidas no Rio de Janeiro nos últimos anos.
A princípio, o governador Sérgio Cabral e o prefeito Eduardo Paes (ambos do PMDB) culparam as chuvas. Evidentemente, tinham certa razão – no dia 6, choveu na cidade o equivalente a, somados, janeiro e fevereiro, ou 280 litros por metro quadrado. A cidade literalmente parou. Porém, o discurso de criminalização da pobreza viria em seguida. Em entrevista à GloboNews, Cabral declarou que a culpa pelas mortes era da “irresponsável ocupação desordenada de áreas irregulares”. Em seguida, ele defendeu os muros que vem construindo em comunidades, supostamente para evitar que “habitações irregulares” avancem. Já Paes chamou de “demagogos de plantão” aqueles que se posicionam contra a remoção de favelas. No dia seguinte, 7, o prefeito anunciou um decreto que permite a retirada à força dos moradores de áreas consideradas de risco.
Despejo facilitado
Embora tenha validade de 90 dias, algumas entidades temem a utilização do decreto para justificar remoções já planejadas anteriormente, com outro objetivo. “O prefeito colocou algumas áreas pouco atingidas no decreto. O que ocorreu em Jacarepaguá, com as chuvas, para justificar remoções? Estão usando o que aconteceu, muitas vezes por falta de política habitacional, para remover. E fica difícil questionar, porque existe a comoção popular. Não somos contra a realocação das reais áreas de risco. Na verdade, nós questionamos o conceito que eles têm de ‘área de risco’”, afirma Maria Lúcia Pontes, coordenadora do Núcleo de Terras e Habitação da Defensoria Pública do Rio de Janeiro. Quatro mil famílias, de oito favelas, já estão prestes a ser removidas emergencialmente. É a vitória da ideia de que a culpa é dos pobres que ocupam áreas irregulares.
A vítima, no discurso oficial, havia novamente se tornado o criminoso. Os mortos na tragédia, quase todos pobres, estavam sendo culpados pela fatalidade que lhes tirara a vida. “Ninguém mora nesses lugares porque quer, mas por necessidade”, atesta Guilherme Marques, o Soninho, urbanista do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional (IPPUR/UFRJ). “As pessoas vão morar em áreas de risco porque não podem arcar com os custos de áreas melhores. Muitas vezes, querem removê-las para regiões muito distantes. Com o sistema de transportes que temos, como vão trabalhar?”, questiona.
Rentabilidade
O Morro dos Prazeres, por exemplo, um dos mais afetados pelas chuvas, já foi contemplado pelo Favela-Bairro. Na comunidade, todos pagam IPTU. Paes chegou a anunciar a remoção de toda a favela dos Prazeres, demonstrando desconhecer a legislação, que protege áreas tituladas. Em entrevista ao Terra Magazine, a relatora especial da ONU para o Direito à Moradia, Raquel Rolnik, deu pistas dos problemas enfrentados pelo Rio. Ela criticou a gestão urbana “para aumentar o potencial imobiliário e lotear e rentabilizar essas áreas”. “O preço que nós estamos pagando por isso são vidas que estão sendo perdidas, além do enorme prejuízo em função do colapso na circulação, na mobilidade e os efeitos que isso causa”, disse.
No Rio de Janeiro, o plano de emergência anunciado por Eduardo Paes, que chegou a ter um grupo de trabalho constituído em 2009, saiu apenas após a tragédia. “Faltou coordenação e investimento regular em um projeto que fosse bem definido”, afirma Moacyr Duarte, especialista em análise de acidentes da COPPE/UFRJ, lembrando a edição do livro Tormentas Cariocas, em 1997, pela instituição, que já apontava o risco. O sistema de drenagem não funcionou. Lixos por toda a cidade entupiam ralos. Completamente interrompido, o trânsito ficou caótico por dois dias. Os saques a automóveis parados dispararam – em doze horas, houve quase 28 mil ligações ao 190, 21% acima da média. Dois importantes museus tiveram seu acervo rigorosamente danificado e o Viradão Cultural – 48 horas de atrações promovidas pela Prefeitura –, previsto para os dias 10 e 11, foi adiado. Escolas e universidades suspenderam as aulas. Na cidade, só se falava na tragédia, mas as discussões mais relevantes não surgiam.
Reformas esquecidas
Outro debate que as chuvas poderiam trazer, e não trouxeram, é o da reforma agrária. Pela opção histórica por um modelo agrícola concentrador e injusto, ex-agricultores migraram para as cidades, ocupando periferias e áreas de risco. Formaram uma imensa reserva de mão-de-obra superexplorada ou subaproveitada. O resultado são cidades infladas, sem infra-estrutura democratizada. Na mídia corporativa, nem nas melhores reportagens esse debate surgiu. Em geral, viu-se uma cobertura jornalística melodramática, exibindo o vendável choro da morte. O debate sobre a necessidade de reforma urbana – amplamente discutida no recente Fórum Social Urbano, realizado entre 22 e 26 de março – também foi escanteado. Assim como a discussão da precariedade do sistema de transportes e do despreparo da Defesa Civil. Aos importantes assuntos esquecidos, soma-se a notória vinculação entre a tragédia e o aquecimento global, também fruto da intempestiva ação humana no planeta.
O enorme déficit habitacional da cidade também não pautou as discussões. As imagens revelavam, com clareza, a má qualidade da moradia do carioca. O número de desabrigados só aumentou o problema. Em Manguinhos, o primeiro andar dos apartamentos do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) ficou completamente alagado. Segundo a comunidade, a obra já apresentava infiltração e uso de material inadequado desde dezembro de 2009, quando foi entregue. Os moradores da Grota também denunciaram as obras do PAC, que não teriam segurado o desabamento no Complexo do Alemão. Recém-anunciado pelo governo federal, o PAC 2 promete R$ 10 bilhões para políticas de prevenção de risco.
Sede de competições
A tragédia foi notícia no mundo todo e o que mais se questionou foi a capacidade de a cidade abrigar as competições que se realizarão nela nos próximos anos. O Rio de Janeiro abrigará as Olimpíadas em 2016 e importantes jogos da Copa do Mundo de 2014. Sede da futura final, o Maracanã ficou encharcado após as chuvas. O jogo entre Flamengo e Universidad, pela Copa Libertadores da América, foi adiado para o dia seguinte. No Maracanazinho, jogadoras de vôlei ficaram presos e dormiram no vestiário. A Praça da Bandeira, próxima, foi uma das regiões mais afetadas. Um complexo plano de reforma foi, em seguida, anunciado às pressas.
Contudo, um fato 1.150 quilômetros distante do Rio de Janeiro despertou ainda mais a revolta dos cariocas. Uma denúncia do Tribunal de Contas da União (TCU) revelou que o ex-ministro da Integração Nacional, Geddel Vieira Lima (PMDB), doou a seu Estado, a Bahia, 64% dos recursos referentes a vergas da Secretaria de Defesa Civil, e apenas 0,9% ao Rio de Janeiro. Geddel foi recentemente substituído no Ministério
para concorrer ao governo baiano. A OAB apresentou representação à Procuradoria Geral da República para averiguar o caso. Aparentemente, a tragédia não é apenas implicância da natureza com o Rio.
14/04/2010