Leandro Uchoas
Mais de dez mil pessoas participam do Fórum Social Urbano no Rio. A busca pela desmercantilização do espaço urbano, e pela elaboração de um modelo igualitário de cidade unificou os setores progressistas fluminenses.
Há algum tempo o Rio de Janeiro não via algo assim. Na tarde de 22 de março, pouco a pouco, chegavam a um enorme galpão, na zona portuária, homens e mulheres de traje informal. Após alguns minutos, a sede da Ação da Cidadania estava repleta daquelas pessoas raras que desejam modificar o mundo através de sua união. De estudantes sedundaristas a parlamentares, o auditório lotado ouvia atento à mesa, composta por personalidades como o urbanista estadunidense David Harvey e a professora da Universidade de São Paulo (USP) Ermínia Maricato, entre outros. As ricas abordagens dos temas urbanos se seguiriam pelos cinco dias do evento. O sucesso do Fórum Social Urbano (FSU) surpreendeu até mesmo aos principais organizadores.
Com 113 atividades, criado como contraponto ao Fórum Urbano Mundial (FUM), da ONU, o espaço atraiu uma média de duas mil pessoas por dia. A proposta era discutir a cidade sob uma perspectiva liberadora, que não enxergasse o espaço urbano como produto a ser vendido. Ainda antes da abertura, os organizadores promoveram uma passeata com cerca de 500 pessoas que saíram da Candelária em direção à área dos dois fóruns, ambos na zona portuária. Durante o ato, houve apresentação de peças teatrais e ações simbólicas pontuais, como a que simulava a poluição através de estintores de incêncio acionados em conjunto. Em frente ao FUM, os manifestantes protestaram contra o conservadorismo do espaço político criado pela ONU, estruturado na concepção liberal de cidade.
Em seguida, houve a abertura oficial. David Harvey, o mais esperado e aplaudido, construiu uma intervenção centrada na ideia de que não há como superar os crescentes conflitos urbanos dentro da ordem capitalista. "As soluções que se encontram nesses outros fóruns sempre têm um viés econômico, como por exemplo a venda de créditos de carbono. Pergunto: há quanto tempo o capitalismo está aí? Se o consideram tão bom, por que ele não resolve o problema? Só construiremos uma outra cidade a partir de um outro modelo econômico" afirmou para uma plateia hipnotizada.
As atividades se seguiram com inúmeras mesas de debate, apresentações de projetos, exibições de vídeos e fotografias, shows musicais e plenárias. Todos os temas referentes à cidade foram amplamente abordados, incluindo assuntos como reforma agrária e preservação de florestas, com evidente conexão com os problemas da cidade. O evento contou com presenças como a do estadunidense Peter Marcuse, professor de Planejamento Urbano da Columbia University, do indiano Simpreet Singh, da Aliança Nacional dos Movimentos Populares da Índia, e do chileno Eduardo Giesen, da ONG Amigos de la Tierra. "O Fórum Social Urbano é uma vitória ainda em processo de consolidação", interpreta Guilherme Marques, o "Soninho", pesquisador do Observatório dos Conflitos Urbanos no Rio de Janeiro (IPPUR/UFRJ), e principal organizador do FSU.
Entre os questionamentos abordados, o problema habitacional foi o mais propalado. O enorme deficit habitacional brasileiro, e o crescimento das regiões de baixa qualidade de moradia, foram frisados a todo momento. "O principal programa do governo federal, o Minha Casa Minha Vida, praticamente não está produzindo nada para os mais pobres, a faixa que seria prioritária, de 0 a 3 salários mínimos. Por que? Pela lei, é proibido construir em áreas sem infra-estrutura urbana. E as áreas que tem isso são vistas como oportunidades de negócio. Toda área estruturada fica num preço acima dessa faixa de salário, que é 90% do deficit habitacional brasileiro. Não atrai", diz Soninho.
Segurança Pública também foi um tema amplamente comentado, especialmente pelo fato de o evento tomar corpo numa cidade de índices de violência tão graves. O consenso era de que não se resolverá esse problema de forma isolada. É preciso se encarar em conjunto todos os problemas da cidade, a começar pela enorme desigualdade social, causadora principal da violência carioca. A coersão promovida pelo próprio Estado contra comunidades pobres foi amplamente criticada. "Diferentemente dos primórdios da economia capitalista, os trabalhadores não estão mais confinados nas fábricas, sob o controle dos capatazes. Agora, são reprimidos nos ambientes em que se concentram", denunciou Marcelo Badaró, professor da Universidade Federal Fluminense (UFF).
Em relação às discussões, Ermínia Maricato foi otimista. "Existe tanta gente boa entre nós que é impossível que não saíamos daqui com alguma reinvenção", disse. Foi o que aconteceu. Os organizadores do FSU elaboraram a Carta do Rio, homonima ao documento final do FUM. A Carta estabelece 20 principais recomendações para democratizar o espaço público. Defende a redução das desigualdades sociais nas cidades, com casas populares em áreas urbanas e próximas ao mercado de trabalho, propõe o fim das remoções e despejos para realização de megaeventos, inclusive das 120 comunidades previstas para a organização das Olimpíadas, e clama pela regularização de bairros pobres e acesso ao transporte público de qualidade, além da reforma agrária e opções de trabalho no campo.
A Carta também propõe a criação de um Dia Internacional de Lutas Urbanas, no dia 25 de março, para trabalhar não apenas a luta por moradia, mas todas as demandas da cidade. Também sugere que sempre haja, paralelamente ao Fórum Urbano Mundial, um Fórum Social Urbano, nas mesmas cidades. "A Carta do Rio dá protagonismo a organizações que não têm evidência nos fóruns oficiais. Que são convidados apenas por formalidade, para simular uma diversidade inexistente", declarou Sam Jackson, diretor da May Day New Orleans, organização em defesa dos sem-teto vitimados pelo furacão Katrina. Até 15 de abril, outros movimentos sociais ausentes do FSU podem enviar sugestões ao documento para [email protected] Este endereço de e-mail está protegido contra spambots. Você deve habilitar o JavaScript para visualizá-lo. , que será reformulado a partir delas.
O FSU nasceu de uma ampla mobilização dos movimentos sociais fluminenses, que pela flagrante heterogeneidade levava a crer que a discussão da cidade por um viés progressista era preocupação comum a todos os setores da esquerda. "No começo, discutíamos apenas o que iríamos fazer durante o Fórum da ONU. Pensávamos numa manifestação, e em alguns debates. Depois que nos reunímos pela primeira vez, percebemos que muita gente tinha grandes ideias, e resolvemos fazer algo maior", conta Soninho. A partir da ampla mobilização que gerou, e das inúmeras ideias que foram surgindo, sem as disputas comuns em processos construídos por setores heterogêneos, o FSU foi ganhando, cada vez mais, amplitude.
A realização dos dois fóruns no Rio de Janeiro, na zona portuária, é emblemática. A cidade foi, recentemente, escolhida para sediar as Olimpíadas de 2016, além de ser a principal sede da Copa do Mundo de 2014. A zona portuária é objeto de um projeto de revitalização em curso, motivado pela realização das competições. Entretanto, a proposta é criticado por posicionar como questão central o fator econômico, e não o social. É provável que ocorra na zona portuária um fenômeno conhecido como "remoção branca", a migração dos mais pobres para outras regiões, incapazes de sobreviver à especulação imobiliária. O Rio de Janeiro também é candidato à Expo 2
020, maior evento de negócios do mundo.
31/03/2010