por Fernando Carneiro
Proletários de todo o mundo, uní-vos. Karl Marx
APRESENTAÇÃO
Afirmar que o Manifesto Comunista se mantém atual, a despeito de ter sido escrito há mais de 160 anos, não é nenhuma novidade. Inúmeros estudiosos e revolucionários já expressaram essa opinião. O esforço que faremos neste texto é estabelecer os itens que permanecem atuais tratando de identificar os pontos que, de forma natural, necessitam de atualização. Fazemos isso como comunistas, pois, por mais que reconheçamos o caráter transcendental da obra de Marx e Engels, não encaramos nenhuma produção marxista como imutável. Esse, aliás, era o desejo dos pais do marxismo que ao estabeleceram as bases do materialismo dialético defendiam a luta contra os dogmas perenes. Nada mais avesso ao marxismo que negar o movimento. O marxismo é uma ferramenta de compreensão da realidade. Se considerarmos (como defendia Marx) que a realidade está em constante alteração teremos, como conclusão lógica, a necessidade permanente de modificação do marxismo.
Claro que esta característica se torna perigosa a depender de que interesses movem estas modificações. Ao longo da história pudemos perceber que diversas “atualizações” do marxismo nada mais foram que deturpações gritantes dos objetivos fundantes do marxismo. Como exemplos trágicos podemos citar o revisionismo e o stalinismo, que durante décadas prostituíram o marxismo se reivindicando dele. Teses nefastas como o “socialismo num só país”, o “etapismo”, a “conciliação de classes” e outras do gênero, significaram, na verdade, um profundo golpe na teoria marxiana.
Como distinguir então as atualizações das deturpações. Que mecanismos temos para diferenciar uma da outra na medida em que ambas se reivindicam do marxismo? Aqui também, como nos ensinaram os grandes revolucionários, não há solução mágica. O critério maior, citando Lênin, é que “a prática é o critério da verdade”. O Manifesto Comunista, como de resto toda a produção de Marx e Engels, não é um tratado científico. Não estamos falando de “cientistas sociais”, mas de revolucionários que dedicaram toda sua vida à causa do socialismo. E isso faz toda a diferença. A produção marxiana responde a uma necessidade objetiva: armar a classe operária para a tomada do poder e a derrubada do capitalismo. Todos os aportes que vierem no sentido de contribuir para a consecução destes objetivos são válidos. Aqueles que se desviam destes devem ser rejeitados pelos revolucionários. Claro que esta definição não resolve todos os problemas, mas serve de parâmetro indispensável para a distinção entre atualização e deturpação.
Os fundadores do marxismo deixaram outras ferramentas importantes para a atualização de seus postulados. Duas de suas produções mais importantes são: o materialismo histórico e o materialismo dialético. Com o materialismo histórico Marx traçou não apenas uma radiografia da sociedade capitalista mas desvendou o mecanismo de mudança das sociedades, permitindo assim uma análise científica das diversas transformações dos modos de produção que a humanidade já conheceu.
Já o materialismo dialético trata de entender através de que mecanismos estas mudanças ocorrem. Unidade dos contrários, negação da negação, transformação da quantidade em qualidade são alguns elementos constitutivos da dialética e que nos permitem dissecar os processos de transformação na natureza e nas sociedades. Estas duas ferramentas são também poderosas aliadas na identificação dos processos internos de atualização do marxismo, identificando os mecanismos degenerativos.
Resgatar a atualidade do Manifesto Comunista identificando os pontos que necessitam de atualização constituem o desafio deste texto. Pretensão que só pode ser alcançada como construção coletiva. Uma boa leitura.
INTRODUÇÃO
Escrito em 1847 e publicado no início de 1848 o Manifesto Comunista é provavelmente a obra mais lida de Marx e Engels. O texto foi escrito sob encomenda da Liga dos Comunistas, uma pequena organização de exilados alemães sediados em Londres. O texto, provavelmente escrito por Marx à partir de um esboço de Engels, mantém extraordinária atualidade, principalmente em seus fundamentos históricos e metodológicos. O Manifesto está dividido em quatro capítulos, a saber: 1) Burgueses e Proletários; 2) Proletários e Comunistas; 3) Literatura Socialista e Comunista e; 4) Posição dos Comunistas diante dos diversos partidos de oposição.
Grosso modo podemos dizer que os dois primeiros capítulos são os que mais guardam atualidade e os dois últimos os que mais envelheceram. Isso é natural se compreendermos que nos dois primeiros Marx disseca a estrutura capitalista sob a lógica materialista ao passo que nos dois últimos ele trata de localizar a posição dos comunistas diante dos partidos existentes e da literatura socialista da época. Como se trata de uma questão conjuntural é bastante compreensível que tenham sido estes os que precisam de atualização.
ATUALIDADES
Tratemos de relacionar os principais itens que permanecem atuais:
1) O Manifesto começa com uma afirmação antológica: “A história de todas as sociedades até os nossos dias não foi senão a história da luta de classes”. Esta afirmação, que pode ser considerada como a pedra filosofal da concepção materialista da história, não resistiu apenas ao tempo, mas ao feroz ataque dos filósofos liberais e neo-liberais, constituindo-se em uma das maiores contribuições ao pensamento humano.
O marxismo enquanto construção filosófica está amparado por duas grandes ferramentas: o materialismo histórico e o materialismo dialético. No Manifesto não encontraremos os pressupostos da dialética marxiana (para isso será fundamental ver principalmente as “Teses contra Feuerbach” e o “Anti-Duhring”), mas é possível detectar, de forma indelével, os principais ensinamentos do materialismo histórico.
Marx e Engels revelaram o mecanismo que explica os principais processos de transformação social da história da humanidade. Através desse método entendemos como os modos de produção foram sendo suplantados ao longo da história. Do Comunismo Primitivo passamos ao Modo de Produção Asiático, deste ao Escravismo e posteriormente ao Feudalismo e ao Capitalismo. Estas profundas transformações têm como principal força motriz a disputa de classes e setores de classe por seus interesses materiais. Não foram ocasionadas por vontade divina ou por força da personalidade de alguns iluminados. Foram fruto de violentos choques sociais, motivados por interesses econômicos, ou como diria Marx, materiais. Daí a origem do termo “materialismo”.
2) No Manifesto encontraremos ainda uma poderosa radiografia do funcionamento da sociedade capitalista. Marx dissecou de forma mais profunda o capitalismo em outra obra fundamental: “O Capital”, mas já no Manifesto Comunista ele esboça o mecanismo de exploração do proletariado pela burguesia. Podemos identificar os conceitos de mais-valia, de produção social e apropriação individual, da concorrência, da proletarização da classe média, do monopólio, entre outros.
3) Uma outra contribuição fundamental, pouco ressaltada pelos estudiosos do marxismo, é a que trata da alienação (tema também melhor desenvolvido em outras obras). Marx afirma no Manifesto que os operário passam a ser simples “apêndice da máquina” e que se tornam não apenas “escravos da classe burguesa, do Estado burguês, mas também (…) escravos da máquina”. Esse processo, brutal, fragmenta a consciência da classe operária abrindo espaço para a sua submissão ideológica à burguesia. Hoje em dia sabemos que não haverá processo revolucionário vitorioso se não conquistarmos “mentes e corações” para a luta socialista. Para isso teremos que vencer a burguesia no campo ideológico também, e nesse caminho haveremos de superar a fragmentação produzida pela alienação capitalista.
4) “o governo moderno nada mais é do que uma delegação que administra os negócios comuns de toda a classe burguesa”. Essa definição do Estado burguês é precisa e transcendental. A democracia burguesa e o Estado burguês não são espaços em disputa que os revolucionários podem “preencher” com o programa comunista. O Estado moderno é um instrumento da dominação burguesa. Esta concepção é determinante para os comunistas. Se não compreendermos as estruturas de poder da burguesia, nos perderemos na luta.
Os capitalistas sempre enfrentaram os revolucionários com duas poderosas armas: a repressão e a cooptação. A história está cheia de exemplos de regimes ditatoriais que exterminaram fisicamente milhares de operários e camponeses na luta pelo fim do domínio do capital. A ditadura brasileira é apenas um pequeno exemplo disso. Na argentina, onde a ditadura foi muito mais violenta, uma geração inteira foi perdida (fala-se em 30 mil desaparecidos e centenas de milhares de torturados e/ou perseguidos). Mas há outra poderosa arma nas mãos da burguesia, a cooptação. Infelizmente a história também está cheia de exemplos de militantes que foram incorporados aos aparatos estatais. O processo de adaptação do PT à estrutura de dominação burguesa é apenas um desses exemplos. Ao longo da história personagens como Berstein e Kautsky desenvolveram verdadeiras “pérolas” do reformismo, afirmando que o proletariado poderia chegar ao poder através da participação em eleições e na ocupação paulatina de alguns espaços no estado burguês.
Esta tese, anti-marxista até a medula, ocasionou diversas derrotas dos comunistas. Uma das mais trágicas foi a derrota da revolução alemã em 1918.
Os comunistas participam sim dos processos eleitorais, disputam estruturas do aparato estatal, mas sempre com a convicção que são momentos de uma disputa maior. Em termos marxistas podemos dizer que estas disputas são táticas da luta pela revolução socialista, esta sim a verdadeira estratégia. Nunca enganaremos as massas dizendo que o socialismo virá através de eleições ou de concessões dos burgueses, ou como diria Marx no Manifesto: “o proletariado não pode conquistar o poder por meio das leis promulgadas pela burguesia”.
5) Está bastante explícito no Manifesto que a burguesia, no processo mesmo de desenvolvimento de seu modo de produção, cria não apenas as condições para a sua superação mas também a classe que efetivará essa superação. Nas palavras de Marx “A burguesia, porém, não forjou somente as armas que lhe darão morte; produziu também os homens que manejarão essas armas – os operários modernos, os proletários”. A despeito das modificações estruturais ocorridas no modo de produção capitalista e das enormes transformações no mundo do trabalho (que ensejaram diversos estudos sobre o caráter revolucionário da classe operária), permanecem válidas as premissas de que serão os explorados, os proletários (no campo e na cidade) que constituirão a força motora da revolução socialista.
6) “Toda luta de classes é uma luta política” e “a organização dos proletários em classe e, conseqüentemente em partido político” são duas afirmações que demonstram, de forma inequívoca, a imperiosa necessidade da organização para além dos limites do sindicalismo. Bom lembrar que Marx e Engels dedicaram esforços na construção de instrumentos de poder para a classe operária, só assim a classe poderia deixar de ser “classe em si” se constituindo em “classe para si”, ou seja, consciente de seu papel histórico. Neste sentido a construção do Partido Revolucionário materializava o processo de conscientização da classe. Também neste item a história está repleta de exemplos sobre a necessidade de construção do partido para a consecução do ideário socialista.
7) O moderno fenômeno denominado de “globalização” também já estava presente no Manifesto. Segundo Marx “impelida pela necessidade de mercados sempre novos, a burguesia invade todo o globo. Necessita estabelecer-se em toda parte, explorar em toda parte, criar vínculos em toda parte”. Também as crises cíclicas do capital foram identificadas no Manifesto quando afirma que “as crises comerciais que, repetindo-se periodicamente, ameaçam cada vez mais a existência da sociedade burguesa. Cada crise destrói regularmente não só uma grande massa de produtos já fabricados, mas também uma grande parte das próprias forças produtivas”. Como conseqüência Marx e Engels identificaram a tendência do capitalismo em sempre abaixar o “nível de vida” dos operários, tornando-os “cada vez mais pobres”. Em suma, todas as grandes mazelas do capitalismo foram perfeitamente diagnosticadas por estes dois grandes revolucionários.
8) Hoje em dia muito da tradição internacionalista se perdeu (boa parte em razão da traição stalinista). Mas essa não é a tradição marxista. O Manifesto está recheado de citações que comprovam o internacionalismo de Marx e Engels. Desde “os operários não tem pátria”, até “o desenvolvimento internacional do capitalismo determina o caráter internacional da revolução proletária” até a famosa conclusão “proletários de todo o mundo, uní-vos”, corroboram essa assertiva. Não poderia ser diferente. Para Marx, como já vimos, a dominação burguesa não respeitava as fronteiras nacionais. A internacionalização do capital era, e ainda é, uma necessidade imperiosa do processo de acumulação capitalista. Sendo assim a luta pela emancipação do proletariado não poderia se restringir aos limites impostos pelas fronteiras nacionais.
Claro que Marx entendia que a luta revolucionária “reveste-se” de um caráter nacional, mas sempre no marco da luta mundial. Resgatar a tradição internacionalista da luta comunista é uma das tarefas mais importantes dos comunistas.
TEMAS QUE PRECISAM DE ATUALIZAÇÃO
1) O Manifesto está impregnado de uma dose exacerbada de otimismo na revolução. Este otimismo na verdade expressava uma subestimação das capacidades de adaptação e superação da burguesia por um lado e uma superestimação da maturidade revolucionária da classe operária, por outro.
Ademais Marx incorreu em erros quando se tratava dos prazos históricos. Acreditava que a força do proletariado alemão levaria inevitavelmente à revolução proletária na Alemanha, tanto é assim que acreditou que o processo de liquidação dos laços feudais levaria inexoravelmente à revolução socialista, ou em suas palavras “a revolução burguesa alemã (…) será o prelúdio da revolução proletária”. Sua compreensão era de que a existência de uma forte e concentrada classe operária levaria a Alemanha a estar na vanguarda da revolução mundial. O desenvolvimento ulterior dos acontecimentos provou justamente o contrário: a revolução se deu no elo mais frágil da cadeia capitalista e no país mais atrasado, a Rússia.
2) Marx afirmava que nenhuma ordem social deixa a cena senão após ter esgotado suas possibilidades criadoras. A recíproca não é verdadeira, ou seja mesmo depois de ter esgotado estas possibilidades a revolução não virá como conseqüência lógica. Em uma palavra: o capitalismo não cairá por si só, precisa ser derrubado! A história nos ensinou que a burguesia sabe ser ardilosa e persistente o suficiente para se manter no poder, mesmo quando a miséria e a fome crescem em progressões geométricas.
3) Outro aspecto que não foi devidamente equacionado diz respeito ao caráter cada vez mais monopolista do capital. O “reino da livre concorrência” se transformou no império dos monopólios. Claro que esta foi uma característica que só muito depois se configurou, fato que não poderia ser previsto pelos pais do marxismo.
4) Por último, como já foi mencionado antes, os capítulos referentes à literatura socialista e aos demais partidos operários caducaram completamente, fato explicado pelo caráter conjuntural da polêmica com as demais vertentes do movimento operário.
Em memória do inestimável comunista
MANOEL AMARAL
Fernando Carneiro é membro da Executiva Estadual do PSOL Pará.