Publicamos aqui a contribuição dos camaradas Chico Alencar (deputado federal/RJ), Marcelo Freixo (deputado estadual/RJ) e Eliomar Coelho (vereador/Rio de Janeiro/RJ). Esta é a primeira tese apresentada à Conferência Eleitoral do PSOL. No dia 22 de fevereiro encerra-se o prazo de inscrições de teses para a Conferência, na medida em que as teses forem sendo apresentadas vamos publicá-las neste espaço de debate.
“A cabeça é redonda para que as ideias possam circular” (inscrição em El Patio, prédio ocupado em Madri e transformado em centro cultural popular)
1. Ousar pensar para melhor lutar
Mestre Leandro Konder reitera sempre a importância da ‘consciência antecipadora’ que a dimensão utópica garante a uma prática política transformadora: “ela é uma fonte que alimenta inquietações generosas, nobres ímpetos justiceiros e uma preciosa disposição para a busca da felicidade universal”. Mas nosso Leandro nunca dissocia a utopia esperançadora da análise refinada das condições concretas das sociedades realmente existentes. Rejeita os que adotam as ideias de Marx, Engels e Lênin como se elas constituíssem um sistema perfeito e uma doutrina acabada, instrumentalizando esse arsenal de modo pesado e acrítico para referendar suas posições políticas.
Se não ousarmos uma reflexão criativa, sempre orientada pela perspectiva do vir a ser de uma sociedade radicalmente igualitária, democrática e ecologicamente equilibrada, que reinvente o socialismo, estaremos previamente derrotados. Mas este necessário afã não pode produzir reducionismos. O dogmatismo não é edificado apenas na estreiteza de posições, mas também na cristalização de categorias de análise que buscam vestir uma formação social complexa e dinâmica no figurino mais fácil, que confirme nossas “razões de fé” previamente proclamadas. Na outra ponta, há a ‘miséria intelectual’ do adaptacionismo, do pragmatismo, do imediatismo acomodado à ordem, que faz malabarismos intelectuais para justificar recuos, alianças com antípodas e emoldurar com tinturas de esquerda o social-liberalismo. Em ambas as situações, nada menos dialético, nada mais reacionário.
Há quase um século, no alvorecer do stalinismo, Georg Lukács já alertava, em sua obra “História e consciência de classe”, que “em questões de marxismo, a ortodoxia se refere exclusivamente ao método”, isto é, a alguns critérios de análise mais universais, a certos parâmetros de compreensão da realidade que transcendam o momento em que foram elaborados (a estrutura e os interesses de classe, por exemplo). E mesmo esse instrumental teórico carece de renovação permanente: nenhuma teoria é estática, imutável, completa – sob pena de negar-se a si mesma. Lembremo-nos que o velho Marx viveu em um mundo sem rádio e tv, sem publicidade, propaganda e psicanálise. Com sua fina ironia, ele cutucava obcecados (e bitolados) seguidores: “quanto a mim, garanto-lhes que não sou marxista…”
Assim, nosso esforço de reflexão, baseado em instrumentos de análise geral, deve sempre estar vinculado a um Brasil concreto, resultado de 510 anos de resistência à dominação das elites, fruto do atual estágio da luta de classes, mas constituído de homens e mulheres reais e complexos em suas diversidades étnicas, culturais e religiosas, entre outras.
2. A nova configuração do capitalismo no Brasil
“Lula salvou o capitalismo brasileiro”, sentenciou Delfim Netto, ‘mago’ das finanças na ditadura, reciclado pela atual democracia formal nacional. A frase está carregada de significados e a realidade sócio-econômica e político-cultural do país nos desafia como nunca antes em nossa História recente.
Cada vez mais, lembra Chico de Oliveira, “a economia coloniza a política”. E assistimos, diariamente, a um processo de grandes mudanças no capitalismo brasileiro. As megafusões, incorporações e aquisições de empresas reconfiguram a elite econômica e política dominante. Há uma participação ativa do Estado na constituição dos novos ‘global players’ privados. Dentre outros, destacam-se Nova Oi/Brasil Telecom/Telemar na telefonia, Petrobras/Braskem na petroquímica, Brasil Foods (Sadia/Perdigão) no setor de alimentos, Pão de Açúcar incorporando Casas Bahia/Ponto Frio no comércio varejista (no setor de supermercados, grandes grupos transnacionais estão em expansão), Amil/Medial Saúde na área dos planos de assistência médica, Votorantim/Aracruz no papel e na celulose, Vale e CSA/Tissen Krup na mineração e siderurgia, Itaú/Unibanco e BB/Nossa Caixa no setor financeiro, em que os cinco maiores bancos concentram 80% das lucrativas movimentações. Projeções indicam que no setor de cana, açúcar e álcool, em uma década, os atuais 200 grupos em atividade serão reduzidos (por falência ou absorção) a apenas 20 grandes corporações: a concentração chega ao agronegócio. A “brasileira” COSAN, maior produtora mundial de etanol de cana-de-açucar, une-se com a Shell e cria uma gigante de combustíveis. Empreiteiras e construtoras também vão se consorciando para, sob o controle das maiores (Andrade Gutierrez, OAS, Odebrecht, Camargo Correa, Delta), monopolizarem obras públicas do PAC e acelerarem seu próprio crescimento.
Nesses e em outros “arranjos produtivos” neomonopolistas, o BNDES, terceiro maior banco de fomento do mundo, que em 2010 será recapitalizado com mais de R$ 100 bi, joga papel importante. Emoldurado pelo convincente discurso oficial de “mais e melhor estado, voltado para o social”, o banco público concilia socorro a empresas (sem contrapartidas trabalhistas ou ambientais), subsídio a transnacionais e financiamentos de grandes fusões e megaprojetos, como hidrelétricas. A atuação do Estado brasileiro, através do BNDES, injetando dinheiro público em grandes empresas privadas, é a cara nova da privatização no Brasil. O governo Lula se pavoneia como governo que interrompeu as privatizações no Brasil (Petrobras, CEF, BB, Correios…), mas investe pesadamente na constituição de um forte setor privado, com o dinheiro do povo brasileiro: transfere patrimônio público para o setor privado. Empreitadas garantidas, capitalismo sem risco. Geração de empregos pelas ‘nossas’ empreiteiras – volta e meia denunciadas por envolvimento em ‘tenebrosas transações’ – … no exterior.
Também os Fundos de Pensão, que movimentam recursos de R$ 460 bi, estão presentes nesse processo. Com 6,7 milhões de participantes, eles, disputadíssimos hoje pelo PT e pelo PMDB, são geridos por ex-sindicalistas, a nova classe negocial do ‘capitalismo financeiro popular’, associados a ‘executivos’ tarimbados em mercado de capitais.
Esses conglomerados são fortes em investimentos e terceirizações, carentes em transparência, apenas retóricos e cosméticos nas precauções ambientais. E sempre dispostos a “doar” boas somas para partidos e projetos políticos identificados com esse “admirável crescimento”. O multiempresário Daniel Dantas, investigado por corrupção, seria um símbolo desses novos tempos do capitalismo no Brasil, mas cede seu lugar de destaque ao megaempresário Eike Batista, que, até aqui com o nome “mais limpo”, personifica, com seus fortes investimentos em vários ramos e países, a modernização conservadora e concentradora. Figuras de origem sindical como Delúbio Soares e Marcelo Sereno, na constante aspiração por mandatos parlamentares, transitam à vontade nesse mundo, lado a lado com o deputado Eduardo Cunha e com o ex-deputado José Dirceu: são os prósperos consultores e “homens públicos de negócio
s”, “pós-ideológicos”, visceralmente políticos.
A propósito, Jânio de Freitas, em artigo publicado em 17/01/10, na Folha de São Paulo, põe o dedo na ferida: “é preciso discutir a aceleração da imoralidade administrativa. Não se trata, aqui, da corrupção nas malas e meias, mas do que está implícito em atos de governo que possibilitam negócios proibidos por lei (telefônicas), prorrogação anistiante de multas bilionárias a grandes produtores rurais e compras de equipamento militar eivadas de suspeições, por exemplo. É apenas natural que a crescente sem-cerimônia desse regime do “quem decide sou eu” chegue, agora, à negação de todo escrúpulo, com a proposta de Lula de que não se fiscalizem as obras da Copa, “para não atrasar”. As do Pan, com “fiscalização” federal, estadual e municipal, ficaram 800% acima da previsão.”
Para 2010, a previsão é de que as fusões de empresas vão crescer 20%, superando o ritmo dos EUA e da Europa. Consultores estimam em 750 transações deste tipo, ‘neomonopolistas’, para este ano no Brasil, líder mundial deste processo.
Destaque-se que, em 2009, a entrada de dólares no país foi a terceira maior de nossa História (só superada pelos investimentos externos de 2006 e 2007). US$ 28,7 bi ingressaram em nossa economia ano passado, atraídos por ações, títulos de renda fixa, investimentos em atividades produtivas e saldo das exportações. A subsidiária brasileira do Grupo Santander fez a maior oferta de ações do mundo em 2009, captando US$ 6 bi com estrangeiros.
Também no ano passado o lucro líquido dos oito maiores bancos privados foi 24% maior que em 2008, tendo o Itaú Unibanco realizado o maior ganho da década, no setor. Na contramão dos lucros dos banqueiros, o emprego industrial teve retração de 5,3% em 2009, na sua pior queda desde 2002.
O Brasil, por tudo isso, tem uma inserção muito singular no modelo primário-exportador e na chamada reversão neocolonial. Continuamos com nossa economia atrelada, principalmente, à exportação de commodities, como a soja transgênica e os minérios, produtos primários mais demandados que manufaturados com valor agregado. A burguesia brasileira, solidamente estruturada e consorciada com o capital internacional, consolida sua hegemonia com esse ‘crescimentismo’. Segue expansiva e, com privilegiada margem de atuação nas esferas governamentais, adota mesmo práticas subimperialistas, em especial em países da América do Sul. A presença do Brasil no clubinho do G-20 é significativa dessa nova condição, mais relevante, de “potência emergente” na economia globalitária.
Um fantasma, entretanto, ronda a propalada “recuperação rápida” da economia brasileira: o da dívida pública. Como bem analisou a assessoria da Liderança do PSOL na Câmara dos Deputados, seus gastos, mais uma vez, representam o principal do Orçamento, desta vez para 2010. Assinala Rodrigo Ávila: “a lei orçamentária destina nada menos que R$ 283 bi (24,56% do Orçamento) para juros e amortização da dívida, desconsiderando seu refinanciamento, ou seja, a ‘rolagem’. Computada esta, metade do Orçamento da União estará comprometido. (…) Por outro lado, reserva-se somente R$ 57 bi para a saúde (cinco vezes menos que o destinado à dívida), R$ 45 bi para a educação (6 vezes menos) e R$ 5 bi para a reforma agrária (57 vezes menos que o reservado para os ‘compromissos’ com a dívida)”. No Brasil do século XXI, continua o escandaloso privilégio dos rentistas em detrimento do gasto social.
3. As persistentes mazelas sociais
Ainda que os indicadores econômicos usuais do sistema do Capital indiquem os alardeados ‘sinais de recuperação’, a instabilidade estrutural do nosso modelo revela um PIB de 2009, ano da crise, “apenas” 0,26% menor que o de 2008, mesmo com a queda, em relação ao ano anterior, de 7,54% na produção industrial, de 36% na geração de empregos formais e de R$ 21 bi na arrecadação federal. Com todo o otimismo midiático e empresarial da “retomada” – já se fala em aumento da taxa básica de juros (Selic) para frear o consumo e conter a inflação – a brutal desigualdade social do Brasil continua longe de ser superada. Mesmo com a constatável incorporação de novos setores no mercado interno de consumo de massas, num patamar ainda baixo mas superior à da linha da exclusão.
Seguimos na mesma posição no ranking do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) – que leva em conta, além de renda per capita, educação, saúde e expectativa de vida – calculado pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud): 75ª posição entre 182 países aferidos.
É preocupante, por exemplo, a constatação do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea): triplicou o desemprego entre jovens dos 16 aos 20 anos, que passou de 7% no fim da década de 80 para 20% neste fim da primeira década do século XXI. Detalhe: é também de 19,8% o número de jovens que não estuda nem trabalha. Na faixa dos 21 aos 29 anos, o desemprego atinge 11%, sendo que, entre os que trabalham, dos 18 aos 24 anos, nada menos que 50% não têm carteira assinada. A precarização das relações de trabalho é crescente.
Dados divulgados pelo IBGE em 2009 revelam que regredimos na mais simbólica de nossas bandeiras, a reforma agrária. Nos últimos dez anos, a concentração de terras aumentou. Agora, 46% da área agricultável está nas mãos de 1% da população. Enquanto os estabelecimentos de menos de 10 hectares ocupam 2,7% da área total, os de mais de 1.000 hectares equivalem a 43%.
Na rede educacional os dados não são melhores, de acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad): na faixa entre 15 e 17 anos, 52% não cursavam o ensino médio (o adequado a esse segmento etário) nas áreas urbanas. No meio rural, este percentual sobe para quase 70%! Abandono e repetência seguem altos, derivados principalmente da necessidade de ajudar no sustento familiar ou de gravidez precoce, entre as adolescentes. Continuamos a ser o país com o maior número de crianças fora da escola na América Latina e no Caribe: 900 mil, entre 7 e 10 anos. E com somente 13% dos jovens acima de 18 anos no ensino superior.
Nada menos que 78% das mortes precoces de rapazes até 29 anos foram causadas por homicídios e acidentes de trânsito. Todos esses dados incidem fortemente sobre jovens pobres e negros das periferias das grandes cidades, e não por acaso ou por razões étnicas.
A violência, especialmente nos centros urbanos, com grupos armados do comércio de drogas ilícitas, inclusive exercendo controle territorial, e milícias constituindo um autêntico “poder paralelo” e despótico, é outro sinal desses tempos de grande desagregação social e perda do sentido de coletividade e de nação. Quando se vive essa realidade da assustadora insegurança, onde fica o “progresso”?
Aliás, a nossa população, concentrada em oito grandes regiões metropolitanas – nelas estão 70% dos 194 milhões de brasileiro(a)s – sofre também o problema da precária qualidade de vida em função do crescimento urbano dito desordenado, que na verdade foi sim ordenado pela lógica da especulação e do lucro em relação ao solo urbano.
Pesquisa de Informações Municipais, realizada pelo IBGE em 2008, revela que os gestores de 33% de nossas cidades admitiram ter favelas (destaque-se que nos 37 municípios brasileiros com mais de 500 mil habitantes esse índice sobe para 97,3%), 53% reconheceram a existência de loteamentos irregulares ou clandestinos e 25% constataram a existência de cortiços.
Nossas capitais e seu entorno, com poucas exceções, são um caos ambiental: com ocupação desordenada, falta de planejamento urbano, dificuldades de mobilidade, estrangulamento do trânsito, desaparecimento das áreas verdes. Tem havido uma sensível degradação da oferta e da qualidade dos serviços públicos, em especial de saúde, energia elétrica e água. Epidemias como a dengue têm freqüentes recidivas. As enchentes e deslizamentos, com suas conseqüências letais, são cada vez mais constantes: o estado de São Paulo, o mais dinâmico do ponto de vista econômico, perdeu nada menos que 70 vidas com as chuvas do atual verão.
4. A importância da questão ambiental
O fracasso da 15ª Conferência Mundial sobre Mudanças Climáticas (COP-15), em Copenhague, demonstra, pedagogicamente, que os governos comprometidos com o sistema do capital – e também a China, com seu ‘socialismo de mercado’ ou ‘capitalismo estatal’ – não temem colocar em risco o futuro da vida para salvaguardar seus interesses e um determinado modo de produção.
Leonardo Boff é claro, em artigo intitulado ‘Miséria na cultura: decepção e depressão’: “o progresso ilimitado devastou perigosamente a natureza e é a principal causa do aquecimento global; a tecnociência, que por um lado trouxe tantos benefícios, criou uma máquina de morte que só no século XX matou 200 milhões de pessoas e hoje é capaz de erradicar toda a espécie humana; o sistema econômico-financeiro e o mercado foram à falência e, se não fosse o dinheiro dos contribuintes, via Estado, teriam provocado uma catástrofe social.”
O modelo sócio-econômico produtivista e consumista é predador, e o planeta não tem recursos para suportá-lo por muito mais tempo. O grande equívoco da gigantesca publicidade em torno do pré-sal, no Brasil, é que não se questiona o processo do fordismo-fossilista, poluidor e esgotável, no qual ele se ancora: fala-se com ufanismo do ‘promissor futuro’ com as amarras da economia do passado e de um frágil e inseguro presente.
Um outro modo de civilização, isto é, de viver sobre a Terra, é absolutamente urgente e necessário. Elaborá-lo e militar por ele significa, para a esquerda, renovar e refinar categorias de análise, repensar nossa visão de mundo e, sobretudo, perceber que o hoje não pode ser compreendido a partir de critérios predominantes no século que passou. Chancelar opiniões com um suposto (e, por vezes, mítico) “interesse da classe trabalhadora” já não resolve.
Os novos conhecimentos, com a informática, a cibernética, a robótica, e as avançadas tecnologias da informação e da comunicação, ao tempo em que propiciam um encolhimento das grandes unidades fabris (e uma certa ‘desmaterialização da produção’), promovem um extraordinário desenvolvimento das forças produtivas e, por conseqüência, maior heterogeneidade nas relações de produção, tornando cada vez mais sutil a relação espoliativa capital-trabalho.
José Correa Leite, em alentado texto de reflexão política oferecido ao PSOL, afirma, com razão, que “apoiando-se nestas novas forças produtivas, o capitalismo não apenas fragmentou o mundo do trabalho, mas foi capaz de alavancar a desterritorialização crescente do capital e de suas unidades produtivas, que passaram a ser coordenadas em escala planetária, levando à superação da grande indústria como setor de ponta. Neoliberalismo, globalização e financeirização no nível atingido nas últimas décadas seriam inconcebíveis se o capital não tivesse se apropriado das gigantescas forças produtivas ligadas ao digital – que propicia também a redefinição da divisão internacional do trabalho e da organização do capital no espaço”.
O que o sistema revitalizado do capital, em sua atual e sofisticada dominação, não dá conta é a questão da utilização e da apropriação privada dos recursos da natureza. Seu caráter intrinsecamente destruidor, sendo cada vez mais mundialmente evidenciado, leva a um questionamento radical de sua própria dinâmica, por mais ‘progresso’ e ‘bens’ que sejam alcançados e produzidos. É a primeira vez na história da luta anticapitalista que podemos mostrar claramente para a sociedade a inviabilidade do capitalismo, a sua destrutividade, a sua incapacidade de atender aos interesses da humanidade.
A relevância da questão ambiental na luta pela construção de uma nova sociedade – vale dizer, no antigo aforisma do Che, ‘del hombre e mujer nuevos, libres de las taras del ayer’ – está expressa nas variadas formas que a ‘defesa da natureza’ vem tomando, como anteparos ao seu potencial de contestação do sistema como um todo: ecocapitalismo, maquiagem verde, conservacionismo, sócio-ambientalismo… Muitas grandes empresas já incorporam, cosmeticamente, a problemática ambiental, e alardeiam (tendo ganhos financeiros com isso) suas iniciativas preservacionistas.
O ecossocialismo é o caminho da revolução, ou seja, da transformação radical do nosso modo de produzir, consumir, se relacionar, representar simbolicamente a vida, de existir. Mas ele enfrenta, além da solidez da hegemonia capitalista (apesar das crises cíclicas), a rigidez do pensamento dogmático, determinista e ‘desenvolvimentista’ que está arraigado nas formulações clássicas do marxismo e que cimenta inércia doutrinária e indolência reflexiva. Estas últimas orientam boa parte das formulações da esquerda dispersa e atomizada no Brasil de hoje, que se refugia muitas vezes em conceitos e referências já ultrapassados ou ao menos desatualizados, inclusive quanto à percepção dos desejos e lutas dos trabalhadores, da juventude e do povo em geral.
Vale sintetizar algumas teses que Zé Correa elenca para respaldar a colocação também da questão ecológica no centro do programa socialista:
I- Os problemas ambientais representam a maior contradição da sociedade contemporânea, permitindo questionar a estrutura econômica baseada no lucro, a relação capital-trabalho, a persistente desigualdade, o consumismo e a expansão permanente da produção de bens supérfluos;
II- Os problemas ecológicos são planetários e têm que ser enfrentados em escala local, regional e global, além de encadear fortemente as transformações coletivas e as mudanças comportamentais individuais, reforçando o nexo consciente entre teoria e prática;
III- As questões ambientais colocam o debate da organização da sociedade de forma assimilável por qualquer pessoa relativamente informada (até as crianças as percebem e se envolvem com elas de maneira positiva), além de permitir atuação política a partir de problemas concretos e, não obstante, universais;
IV- A raiz dos problemas ambientais está na destrutividade, no consumismo e no desperdício, típicos da sociedade capitalista, tão característicos da era industrial e do buscado “desenvolvimentismo”, e resulta do impacto cumulativo sobre a biosfera e seus ecossistemas de mais de dois séculos de atividade da civilização industrial (essa devastação já é comparável aos efeitos de uma força geológica: efeito estufa, desertificação, destruição de florestas, mares e rios, da camada de ozônio etc);
V- A crise ambiental expressa
a incompatibilidade entre os tempos acelerados do produtivismo capitalista e os tempos mais lentos da natureza: os ritmos da vida e da biosfera são modulados por processos físico-químicos e biológicos que não se submetem ao ritmo do mercado;
VI- A ecologia profunda denuncia que grande parte do que é produzido hoje na sociedade capitalista é desnecessário para uma vida digna e saudável, além de destrutivo para o planeta, pois o sistema não visa ao bem estar humano e sim à acumulação material;
VII- A ecologia exige que o desenvolvimento tecnológico acelerado das últimas décadas, que aumentou a produtividade e eliminou tarefas repetitivas, impulsione a pesquisa científica na direção de novas matrizes energéticas, renováveis e limpas, propiciadoras, em um projeto político orientado pela estratégia ecossocialista, da eliminação da miséria e da desigualdade.
5. O derretimento partidário e o “lulismo”
As forças dominantes na economia, na política e na produção do imaginário social nacional não necessitaram, até o momento, de uma repaginação da estrutura partidária: as práticas patrimonialistas, mesclando autoritarismo, demagogia e clientelismo, e imbricando interesses privados e públicos, seguem firmes, sustentando governos e viabilizando os negócios nos quais têm expertise: captura de sufrágio, vitórias eleitorais. Todos, “modernos” e “atrasados”, num assemelhamento crescente das legendas, navegam nas águas aparentemente tranqüilas de uma economia que se reaquece e dá boa inserção internacional.
Todos os grandes partidos brasileiros – e a maioria dos pequenos – são sócios nada honorários do clube da degradação política nacional, da qual o escândalo mais recente, do escabroso ‘mensalão’ do DEM, é emblema documentado, cujas imagens gritam por si mesmas. Propinas, tráfico de influência e financiamento de campanhas são elos da corrente da corrupção sistêmica, que atinge todos os poderes da República. República? No império do ‘poder dissolvente do dinheiro’, feliz expressão do velho Marx, o que há é uma paradoxal democracia, formal e banal, sem República…
A certeza da impunidade e da preservação dos currais de votos, com eleições bienais de resultados cada vez mais previsíveis, é total: às cenas patéticas das altas autoridades do Distrito Federal recebendo maços de notas somam-se discursos hipócritas, sem cerimônias com a mentira: do “nada sei” lulista à “perplexidade” arrudista, passando pela “injustiça” azereda. A “piada de salão” delubiana confirma-se com a reabilitação de muitos demiurgos de malfeitorias cristalizadas como procedimentos heterodoxos “inevitáveis” na disputa pelo poder, que “todos praticam”. PT, PMDB, PSDB, DEM e seus caudatários, sempre se dizendo “progressistas” ou de “centro-esquerda”, controlam a vida pública institucional brasileira numa cumplicidade espúria, animando a “plateia” com uma polarização de fantasia nas disputas eleitorais. A atividade política institucional, sobretudo nos parlamentos, é um teatro repetitivo, sem afirmação de projetos nacionais que representem interesses de classes. A anemia da cidadania crítica e das organizações autônomas facilitam a afirmação de personalismos e da “cultura do favor”, terreno fértil para essas deformações.
Esse modelo político formalmente representativo, apesar do descrédito popular (que produz mais apatia que ativismo crítico), parece intocável. Tanto FHC quanto Lula, ao longo dos últimos 15 anos, proclamaram a urgência da ‘mãe de todas as reformas’, a Reforma Política. Mas as bases de sustentação de ambos os governos rejeitaram essas conclamações retóricas da “vanguarda do atraso”. O atraso sempre vence, pois não se muda o que tem assegurado vitórias, “governabilidade”, anestesia social. No contexto da adesão ao programa neoliberal, o Executivo engoliu o Legislativo; o Congresso Nacional não tem mais autonomia, a sua maioria faz o que o governo quer: o Executivo continua simplesmente “comprando” a maioria do Legislativo, e o faz descaradamente, publicamente, usando métodos legais (as emendas parlamentares, a distribuição de cargos públicos, os cargos comissionados etc.) e ilegais (mensalão, mensalinho, etc.). Os permanentes ‘líderes’ Sarney, Renan, Jucá, Collor e Maluf, sempre na situação, agora apoiadores de Lula, são exemplos do êxito dessa pequena política.
Os partidos, os parlamentos e a própria política, no sentido lato, tornaram-se “instituições totais”, fins em si mesmas, elas próprias sua “classe”, na realidade uma casta com interesses específicos, corporativos, leais na defesa monolítica e monocórdia do ‘caminho único’, do poder do capital, que é o que mais conta. Os procedimentos corrompidos, predadores, egoístas e os privilégios obscenos são maquiados como “direito adquirido”.
Fora dessa rede apodrecida vigora uma espécie de neoconformismo esclarecido: “não há outro jeito de se fazer política no Brasil”. Os partidos de relevância são, sempre e mais, máquinas de produzir votos e gerenciar o butim nos espaços conquistados da administração. Militância, participação, debates de propostas, formulação de programas, mobilização em torno de ideais e causas são coisas do passado, do romantismo inoperante, reza um certo senso comum distópico.
Um capítulo singular de nossa história política atual impõe exame detalhado: o fenômeno recente do lulismo, na via oposta do definhamento do petismo. Merece leitura um trabalho do cientista político André Singer, ex-secretário de imprensa do primeiro governo Lula, publicado na última edição da revista Novos Estudos, do Ceprab, intitulado “Raízes Sociais e Ideológicas do Lulismo”. Ali se caracteriza a popularidade do presidente – um Silva, um ex-pobre – a partir da adesão à sua figura política do chamado subproletariado, que o PT, antes, jamais comovera e conquistara. “Isso implicou um realinhamento do eleitorado e a emergência de uma força nova, o lulismo”, diz Singer. Ele destaca também o viés conservador dessa liderança com ‘autonomia bonapartista’, que, distante dos princípios históricos do programa petista, já não se interessa tanto pelos segmentos médios e pelos formadores de opinião: “a elevação do superávit primário, a concessão da independência operacional ao Banco Central e a inexistência de controle sobre a entrada e a saída de capitais foram o modo encontrado para assegurar, com programas sociais, aumento real do salário mínimo e expansão do crédito, um elemento vital na conquista do apoio dos mais pobres: a manutenção da ordem”. Os setores dominantes não escondem a “grata surpresa” com a moderação do governo petista.
Assim, vivemos mais um paradoxo da história política brasileira: conquistada a democracia, ainda que numa transição pactuada com a ditadura civil-militar de 64/84, afinal tivemos a eleição de um sociólogo e de um metalúrgico oriundos da resistência ao regime, filiados a partidos de ideario social-democrata e socialista. Mas, na última década e meia desses governos, cresceu a despolitização e a desorganização da sociedade como um todo, e dos trabalhadores em particular. Pesquisa realizada pelo Ipsos Public Affairs em nove regiões metropolitanas e concluída em janeiro de 2009 mostra que apenas três de cada dez brasileiros conseguem identificar corretamente o nome de um ministro, um senador ou um deputado federal. A adaptaç