Por Angela Mendes de Almeida
Poucas iniciativas do governo Lula causaram tanta celeuma como o lançamento do III Programa Nacional dos Direitos Humanos, no dia 21 de dezembro passado, às vésperas do Natal. Na última semana do ano o carro-chefe da investida, comandada por Jobim e comandantes das Forças Armadas, era a proposta de uma Comissão da Verdade para investigar os crimes de tortura, assassinato e desaparecimento de corpos de opositores à ditadura militar. Em seguida, nas primeiras semanas de janeiro, parece que a direita descobriu que também estava em desacordo com a avaliação crítica do agronegócio e as medidas em relação à desocupação de terras, com as propostas de descriminalização do aborto e de aceitação das uniões homossexuais, bem como com a garantia do pleno direito à informação e de mecanismos de responsabilização da mídia que praticasse violações aos direitos humanos.
Na avalanche de críticas estava também a discussão da oportunidade de o governo lançar agora um documento tão amplo, cutucando ao mesmo tempo tantos temas tabus para a opinião pública conservadora e reacionária. Neste quesito é preciso esclarecer que, embora o governo Lula tenha promulgado o PNDH III, seu conteúdo não emana dele, e sim da Conferência Nacional de Direitos Humanos, realizada em dezembro de 2008, precedida de conferências municipais, regionais e estaduais em 20 estados, com delegados eleitos que trabalharam nos diversos eixos propostos. O Programa é, na verdade, uma reatualização do I e do II PNDH, lançados por Fernando Henrique, respectivamente em 1996 e 2002, sem nenhum reboliço. Reatualização já que em boa parte as diretrizes desses programas permaneceram letra morta. Durante meses, um grupo de trabalho comandado pelo ministro Vannucchi condensou no Programa o conjunto das decisões deliberadas na Conferência. Em certo sentido pode-se dizer, parafraseando o Lukács dos anos vinte, que o III PNDH representa “o mais alto grau de consciência possível” da parte mais consciente da sociedade brasileira no que se refere aos direitos humanos.
Mas por que o governo precisou de um ano inteiro e mais alguns dias para tornar público por um decreto o III PNDH? Aí é preciso registrar a série de recuos e de tergiversações de que lançou mão o governo Lula para obrar no sentido de reduzir as deliberações da Conferência Nacional de Direitos Humanos a propostas inócuas a serem executadas a perder de vista.
Como se sabe, o Brasil é o país mais atrasado da América Latina na implementação dos quesitos de uma “Justiça de Transição” na passagem da ditadura militar para o governo democrático parlamentar, quais sejam, Memória, Verdade e Justiça. Ora, no grupo de trabalho do eixo “Direito à Memória e à Verdade,” na Conferência Nacional, foi votada a criação de uma Comissão de Verdade e Justiça, por 29 votos contra dois, exatamente dos dois delegados do Ministério da Defesa (1). E durante os últimos meses de 2009 os defensores de direitos humanos ouviram dizer, em seminários públicos e até pela imprensa, que o ministro Jobim, representando os militares, não aceitava a proposta aprovada, propondo, no lugar da Justiça, a Reconciliação. Durante meses, sucessivos encontros Lula/Jobim/Vannucchi tentaram superar o impasse, que afinal ficou resolvido com o corte da Justiça, aprovada na Conferência, e com o abandono da Reconciliação, avançada por Jobim.
Ficamos então com uma Comissão da Verdade. É importante? É claro que é. Uma comissão governamental oficial que esclarecesse os fatos, tendo, portanto, acesso a documentos do período ditatorial ainda hoje fechados ao conhecimento público, estabelecesse responsabilidades nominais e esclarecesse a consistente rede de cumplicidades e apoios que permitiu as mais graves violações de direitos humanos daquele período seria de extrema valia. Particularmente se ela desvelasse os mecanismos da tortura sobre os corpos das pessoas, mecanismos que continuam a existir hoje, sob o véu da impunidade, banalizados e naturalizados. Mesmo limitando-se à Verdade, ela acabaria por desnudar o que é o aparato repressivo no Brasil, hoje voltado contra a pobreza. E criaria uma base para o encaminhamento dos devidos processos judiciais criminais em uma Justiça hoje tão ocupada em colocar na cadeia ladrões de xampu e de pacotes de biscoito.
No entanto, o que estava em discussão na Conferência era a criação dessa Comissão, e o que recebemos foi a transferência do encargo de criar essa comissão para um grupo de trabalho que fará uma proposta a ser discutida e aprovada pelo Congresso Nacional.
Mas o recuo foi pequeno para Jobim e os militares que começaram a reivindicar o esclarecimento de todos os fatos do período ditatorial, referentes “às duas partes”. Não apenas aquilo que nós queremos saber, ou seja, como se estruturaram os centros de tortura, qual a cadeia de autorizações e cumplicidades, como foram mortos os opositores, quem os matou e quem os mandou matar, mas também aquilo que eles já sabem, porque já foi objeto de investigação feita sob tortura, já está documentado no Arquivo Nacional, seus autores – os que sobreviveram às torturas – já cumpriram suas penas com largos anos de prisão. Ou seja, reivindicaram um tratamento igualitário para torturados e torturadores.
E mais uma vez o governo Lula cedeu e recuou. Para contentar a parte dos torturadores, Lula aceitou retirar do decreto de 13 de janeiro, criando o grupo de trabalho encarregado de formular um anteprojeto de lei de criação da Comissão de Verdade, a expressão “esclarecimento público das violações dos direitos humanos praticadas no contexto da repressão política”, substituindo-a por “examinar as violações de direitos humanos”. Formalmente era o recado que militares e Jobim esperavam, significando “vamos investigar todos, torturadores e torturados, aquilo que não se sabe e aquilo que já se sabe”.
Tudo somado, a Verdade ficou cada vez mais longe, já que o ano eleitoral se encavalará na atividade do Parlamento. E a Justiça perdeu-se nas brumas do futuro. E, no entanto, ela é fundamental para entendermos a situação em que se encontra o Brasil hoje. Os torturadores de ontem, nenhum deles investigado, encontram-se em calmas aposentadorias, quando não ocupando cargos dentro do aparelho do Estado, bem como à frente ou dando consultoria às empresas de segurança privada. Mas as heranças da ditadura estão vivas nos aparatos policiais e na seletividade do aparato judicial, na naturalização da tortura como método de investigação, bem como nas execuções extrajudiciais cometidas por agentes do Estado sob o pretexto da legítima defesa, e que raramente são investigadas. Os agentes de Estado de hoje, que torturam e assassinam impunemente a pobreza, têm como referência seus antecessores. A impunidade dos crimes de ontem alimenta a impunidade dos crimes de hoje.
Assim, estando a violência institucional de hoje obscurecida e metamorfoseada em política de segurança pública, é possível ao Procurador Geral da República, Dr. Roberto Gurgel, em parecer dirigido ao STF sobre a proposta do Conselho Federal da OAB (2), que pede que aquele órgão confirme que a Lei da Anistia de 1979 não anistiou os torturadores, pronunciar-se contra, sob o argumento de que aquela lei selou uma “transição pacífica e harmônica, capaz de evitar maiores conflitos”.
Nesta questão, a imprensa e muitos amigos persistem em falar de “revisão” da Lei da Anistia de 1979. Ficou bem claro que os que lutam contra a anistia aos torturadores não pedem uma revisão e sim a confirmação de uma interpretação (3). Como quase tudo na história do Brasil, matreiro e enganoso, a Lei da Anistia, ao contrário do que diz o Procurador, não foi fruto de um amplo debate democrático da sociedade, e sim um projeto apresentado pelo último ditador, votado em um congresso cheio de deputados biônicos, e mesmo assim venceu por minúscula margem de votos. O debate existiu, porém a lei não levou em consideração o que foi debatido. E, marcando a nossa história de enganos e tergiversações, a lei utilizou-se de um artifício retórico, anistiando “os crimes políticos e conexos”, querendo significar que a expressão “conexos” se referia à ação dos torturadores. Todos estes mal-entendidos não são casuais. Refletem o desconhecimento pela sociedade brasileira do que é o crime de lesa-humanidade, o crime de violência ilegal do Estado, perpetrada por agentes do Estado, pagos com dinheiro do Estado, agindo em nome do Estado. A civilização material do Brasil se complexifica, mas o conjunto da sociedade não assimilou a legislação internacional sobre os direitos humanos e a Justiça de Transição formulada em âmbito internacional a partir do fim da Segunda Guerra Mundial.
Nas entrevistas, a expressão “revanchismo”, utilizada para se referir ao princípio de Justiça, é o espelho dessa incompreensão. Revanchismo, termo de jogos de azar e jogos desportivos, pressupõe opositores em igualdade de condições. A pergunta deve ser rechaçada por absoluta impropriedade. Tratava-se de uma luta de opositores contra um Estado. Houve mesmo quem sugerisse, talvez ingenuamente, um plebiscito: que a sociedade se pronunciasse sobre a anistia, tanto dos torturadores e assassinos de opositores, quanto de outros homicídios comuns. Seria como perguntar se devem ou não ser punidos agentes do Estado que cometem, em nome do Estado, violações de direitos humanos e atos ilegais sob o ponto de vista de qualquer legislação, inclusive a da ditadura. Pois neste caso é o Estado quem é, em última instância, o criminoso, sendo responsáveis indiretamente, para além dos executores materiais, os governantes que compactuaram e compactuam por omissão com esses crimes. É o direito internacional quem nos diz: trata-se de crimes de lesa-humanidade. Quanto mais cedo a sociedade brasileira compreender isto, tanto mais cedo superará a barbárie atual.
Notas:
¹ “Tapetão do Jobim” – http://tvbrasildefato.blip.tv/
² No caso da ADPF (Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental) nº. 153.
³ Ver: http://www.ajd.org.br/contraanistia_port.php
Ângela Mendes de Almeida é historiadora, coordenadora do site Observatório das Violências Policiais-SP/CEAL-PUCSP.
Fonte: Correio da Cidadania