Aos 70 anos e sempre fiel às origens, soube misturar MPB e moda de viola, em contraponto ao sertanejo difundido pela mídia
Um valioso guardião da música interiorana, caipira genuína, um dos últimos de uma espécie em extinção, morreu ontem de manhã, aos 70 anos. José Ramiro, mais conhecido como Pena Branca, passou mal em casa e foi levado às pressas por sua mulher, Maria de Lourdes, e uma vizinha ao Hospital São Luiz Gonzaga, no bairro do Jaçanã, zona norte de São Paulo, onde vivia. Segundo relatos de pessoas próximas, Pena Branca passou um dia normal em casa e até tocou algumas músicas em sua viola. “Ele nunca apresentou sinais de que tinha problemas no coração. Foi um enfarte fulminante”, disse um amigo. Pena Branca seria enterrado ontem à tarde no Cemitério Parque dos Pinheiros, próximo da Rodovia Fernão Dias.
Pena Branca ficou famoso a partir dos anos 1980 quando formou dupla com seu irmão Ranulfo Ramiro da Silva, o Xavantinho, morto em 1999. Nascido em Igarapava, no interior de São Paulo, em 1939, ele passou boa parte da infância e adolescência em Uberlândia, interior de Minas, onde seu irmão nasceu três anos depois dele. Ambos trabalharam na roça com o pai e outros cinco irmãos até que começaram a cantar juntos em 1962. Seis anos depois, os dois se mudaram para São Paulo para tentar a carreira artística.
Como a história de tantos outros batalhadores, a dupla passou mais de uma década investindo em sua música até que se inscreveu no Festival MPB Shell, da Rede Globo, de 1980 e se classificou para a final com a canção Que Terreiro É Esse?, de Xavantinho. No mesmo ano, eles lançaram o primeiro LP, Velha Morada, em que predominavam composições de Xavantinho, e tinha também a folclórica Calix Bento e Cio da Terra (Milton Nascimento e Chico Buarque).
A mesma canção deu título ao álbum de 1987, que abria com uma folia de reis e tinha clássicos como Caicó, de Villa-Lobos, a folclórica Peixinhos do Mar, Vaca Estrela e Boi Fubá (Patativa do Assaré). A participação de Milton Nascimento na faixa-título deu muito prestígio à dupla, que passou cinco anos sem gravar (o segundo LP, Uma Dupla Brasileira, saiu em 1982), mas já vinha se tornando popular com apoio de Rolando Boldrin na TV e em shows pelo Brasil.
A dupla viria a gravar outras canções do repertório de Milton (só Cio da Terra tem três gravações dos irmãos) e também composições de Caetano Veloso, Gilberto Gil, Luiz Gonzaga, Almir Sater, Renato Teixeira, Tavinho Moura (um de seus principais incentivadores) e Ivan Lins, entre outros. Como lembra Rosa Nepomuceno no livro Música Caipira: Da Roça ao Rodeio (Editora 34, 1999), o repertório de Pena Branca & Xavantinho emparelhava essas vertentes da MPB “e modas sertanejas com o mesmo tratamento vocal, em duetos e terças”.
Porém, essa divisão entre dois mundos levaria os irmãos a se tornarem sempre “equilibristas” diz Rosa. Eles, por exemplo, não venderiam discos como Milionário e José Rico, “de repertório bem mais popular, com seu som grandiloquente de pistons mariachis e guitarras”, nem sua gravação de Cio da Terra teria o impacto de Romaria (Renato Teixeira) na voz de “uma grande estrela como Elis Regina”. “Música popular com sotaque matuto, bem recebida pela área intelectual, não se ajeitava nas faixas mais populares do público. Música caipira com sotaque de MPB causava um tantinho de estranheza no mundo sertanejo”, acrescentou Rosa.
O cenário não mudou muito nas décadas seguintes, mas outros artistas urbanos além de Renato Teixeira (que gravou um bem-sucedido álbum ao vivo com a dupla em Tatuí), continuaram trazendo o ”sabor da terra”, digamos, à MPB. Pena Branca seguiu adiante com sua bandeira nessa seara sozinho depois da morte do irmão. Questões de mercado e preferência popular à parte, deixou em carreira-solo, mas principalmente nos dez discos gravados em dupla com Xavantinho, um respeitável e importante registro desse cancioneiro.
Fonte: O Estado de São Paulo