O líder do PSOL, deputado Ivan Valente, em discurso no plenário da Câmara, 3 de fevereiro, falou sobre o Programa Nacional de Direitos Humanos 3, proposta que tem provocado grande debate desde que foi apresentada pelo governo, em dezembro de 2009. Para o deputado, o que ocorre é uma ofensiva conservadora ao Programa e um recuo do Executivo.
“As reações ao PNDH 3 começaram nos setores militares e ganharam os ruralistas latifundiários, os donos da mídia, empresários e grupos mais conservadores entre os católicos, setores que, também historicamente, são refratários aos avanços exigidos pelos movimentos de defesa dos direitos humanos”, afirmou no discurso.
Leia a íntegra do pronunciamento do deputado Ivan Valente.
A ofensiva conservadora contra o PNDH-3 e o recuo do governo
Sr. Presidente, Sras e Srs Deputados,
No retorno aos trabalhos desta Casa, venho à Tribuna para tratar de um tema que esteve entre os mais debatidos, na opinião pública e dentro do governo, neste último mês: a terceira edição do Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3), lançado pelo governo no dia 21 de dezembro de 2009. Nos últimos anos, não se viu tamanha atenção dos grandes meios de comunicação a uma ação do Estado brasileiro relacionada à política de direitos humanos. Por um lado, o debate público sobre o tema é fundamental. Mas o que vimos foi a manifestação de uma ofensiva conservadora e autoritária, que negou, mais uma vez, espaço para que as vozes caladas historicamente fossem ouvidas neste debate.
As reações ao PNDH 3 começaram nos setores militares e ganharam os ruralistas latifundiários, os donos da mídia, empresários e grupos mais conservadores entre os católicos, setores que, também historicamente, são refratários aos avanços exigidos pelos movimentos de defesa dos direitos humanos. Da imprensa, veio uma manobra espetacular, que conseguiu transformar defensores da liberdade em terroristas e lutadores da democratização dos meios de comunicação em censores e violadores da liberdade de expressão, numa aliança sinistra entre quem tem privilégios hoje e quem tinha antes. Tiveram a audácia de dizer que monitorar veículos que, em sua programação, violam direitos humanos – sem qualquer forma de responsabilização, como prevê a Constituição brasileira – significaria um ataque à liberdade de imprensa.
Que liberdade de imprensa? Esta que distorce os verdadeiros objetivos da instituição de uma Comissão da Verdade em nosso país, que está mais do que atrasado em relação aos nossos vizinhos no que diz respeito a jogar luz num passado sombrio de sua história? Ora, senhoras e senhores deputados, recontar a história, para que o que aconteceu não se repita, é o principal objetivo dos milhares de brasileiros e brasileiras que lutam pelo direito à memória e à verdade aos que morreram, foram torturados ou seguem desaparecidos por ação da ditadura militar. Os setores conservadores do país contam com o apoio da imprensa para criar, no senso comum, a idéia de que não se deve mexer no passado. Mas é preciso desconstruir argumentos míticos que há décadas conduzem à impunidade daqueles que cometeram crimes contra a humanidade.
Uma das idéias que se tem propagado é que os crimes da ditadura prescreveram, que não há mais como responsabilizar eventuais culpados. Desde o início do século passado, no entanto, crimes como tortura e desaparecimento forçado, quando praticados pelo Estado de forma geral e sistemática contra grupos sociais, são considerados crimes contra a humanidade. Em 1914, entrou em vigor uma convenção da Liga das Nações, ratificada pelo Brasil, que estabelece este conceito. Décadas mais tarde, outra resolução da ONU definiu que crimes contra a humanidade não prescrevem. Ou seja, esse argumento não se aplica. Tampouco leis e decisões de tribunais e governos de países podem impedir que se investigue e puna aqueles que praticaram esses crimes com base nesta justificativa.
Muito também foi dito sobre a Lei de Anistia ter pacificado o país, e que não há por que ser revanchista e voltar ao conflito. Na verdade, a Lei 6683, de 1979, anistiou os crimes políticos, eleitorais e conexos. Na prática, surgiu para que não houvesse acesso aos nomes dos agentes do Estado responsáveis pelo sangue nos porões. O problema é que o Brasil vive entre aqueles que não podem esquecer e aqueles que não querem lembrar. Lembrar que nenhuma Lei de Anistia pode abranger crimes contra humanidade e que tortura não é crime político.
Há anos discutimos a criação de uma Comissão da Verdade, destinada a apurar as atrocidades cometidas durante duas décadas neste país sob a responsabilidade dos dirigentes militares. Há anos também, não é novidade que setores militares e seus apoiadores sejam contra revelar à sociedade o que ocorreu de fato neste período, em nome de manter a memória dos algozes e daqueles que promoveram o arbítrio, escondendo e apagando a memória daqueles que resistiram para que o Brasil voltasse à democracia.
Esta democracia, no entanto, Sr. Presidente, não se concretizará se não preenchermos as lacunas, reescrevendo o passado e completando o quebra cabeça da nossa história. Devemos nos perguntar qual a memória coletiva sobre a ditadura militar que queremos para o Brasil. Do contrário, sem jogar luzes sobre a tortura do passado, sem abrir os arquivos da ditadura militar, ainda veremos alguns justificar aquele período de violência como ditabranda e os que insistem em classificar o triste golpe de Estado como revolução, e principalmente, seguiremos longe da tarefa de banir, de vez, a tortura das práticas dos agentes estatais brasileiros
É isso o que exigem os setores democráticos da sociedade brasileira, que mais uma vez decepcionaram-se profundamente diante do recuo do Presidente Lula às pressões dos militares, de ministros como o senhor Nelson Jobim e da grande mídia. Na última hora, o presidente voltou atrás, recomendou que "pontos polêmicos" no conjunto do Programa fossem abrandados e jogou a responsabilidade da Comissão da Verdade para este Congresso. Abafando as disputas internas no governo e negociando um acordo com o que há de mais autoritário neste país, o Presidente da República, em ano eleitoral, deixou claro como seguirá cedendo aos interesses privados das classes dominantes do Brasil.
Nós, do PSOL, rechaçamos tal postura e assumimos o compromisso público de seguir esta batalha na Câmara dos Deputados. Fazemos isso em respeito à memória não só daqueles que tombaram lutando contra a ditadura militar, mas de tantos brasileiros e brasileiras que, cotidianamente, enfrentam o poder de poucos estabelecido neste país para fazer valer os seus direitos.
Muito obrigado.
Ivan Valente
Deputado Federal PSOL/SP