Da Revista Caros Amigos
Como há tempos não se via no país, quase todos os setores conservadores da sociedade brasileira uniram-se no fim de dezembro e, de forma orquestrada, atacaram. O alvo foi o 3° Programa Nacional de Direitos Humanos, duramente criticado pelas Forças Armadas, empresários do agronegócio, setores da Igreja Católica e proprietários de meios de comunicação.
Lançado pela Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República, em 21 de dezembro, o texto é a terceira versão de um programa do governo federal para a área. O PNDH-I e o PNDH-II foram elaborados em 1996 e 2002, durante os dois mandatos de Fernando Henrique Cardoso.
A virulência das críticas ao programa que apareceram na imprensa comercial relembra o período ditatorial. Editoriais e artigos assinados acusaram o plano de querer revogar a Lei de Anistia, chamando os militantes que combateram a ditadura de revanchistas, e alertando para possíveis iniciativas “comunistas”.
Os principais ataques partiram dos militares, que, às vésperas do ano novo, por meio de seu porta-voz, o ministro da Defesa, Nelson Jobim, criticaram o ponto do plano que instituía a Comissão Nacional da Verdade para apurar os crimes cometidos durante a ditadura civil-militar (1964-1985). Jobim ameaçou pedir demissão juntamente com os três comandantes das Forças Armadas, que disseram que a busca da verdade não pode significar “revanchismo”.
A principal causa da discórdia foi a existência do termo “repressão política”: os militares temiam que a expressão pudesse indicar uma investigação dos órgãos repressivos da época. Assim, pressionaram para substituir o termo para “conflito político”, dando margem para se ampliar a investigação também sobre os supostos crimes cometidos por militantes da esquerda. O ministro dos Direitos Humanos, Paulo Vannuchi, protestou, afirmando que colocar no mesmo patamar torturadores e torturados não é uma questão negociável. Declarou ainda que, se as vítimas da ditadura também passassem a ser alvo de investigação, ele pediria demissão.
Demais reações
Já a presidente da Confederação Nacional da Agricultura, a senadora Kátia Abreu (DEM-TO), afirmou que o programa discrimina o setor ruralista. O trecho do plano criticado é o que prevê a realização de audiências públicas antes que um juiz decida se concede liminar de reintegração de posse de uma fazenda ocupada. O ministro da Agricultura, Reinhold Stephanes, também atacou. Segundo ele, o decreto vai trazer instabilidade jurídica para o campo.
O documento ainda recebeu críticas de bispos da Igreja Católica, que reagiram a artigos que propõem ações para apoiar um “projeto de lei que descriminaliza o aborto”, “mecanismos para impedir a ostentação de símbolos religiosos em estabelecimentos públicos”, a “união civil entre pessoas do mesmo sexo” e o “direito de adoção por casais homoafetivos”.
As entidades patronais de meios de comunicação também se manifestaram contra pontos do programa. A Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (Abert), a Associação Nacional dos Editores de Revistas (Aner) e a Associação Nacional dos Jornais (ANJ) divulgaram uma nota conjunta na qual afirmam que o texto do decreto do governo contém ameaças à liberdade de expressão. Nessa área, um dos objetivos do plano é regular os meios de comunicação para que mantenham uma linha editorial de acordo com os direitos humanos, com sanções para os que desrespeitarem as normas.
Curiosamente, parte desses pontos que foram criticados já constava nos dois programas anteriores, aprovados na gestão tucana de FHC. “Esse programa é uma continuidade natural dos outros, é coerente com os anteriores. É surpreendente que a crise mobilizada agora não tenha ocorrido durante o lançamento do segundo programa”, comenta a professora da faculdade de educação da USP, Maria Victória Benevides.
Ela questiona o fato das reações virem apenas no fim do ano, apesar do plano já estar disponível na internet há tempos. “Quando houve o lançamento do programa [em 21 de dezembro de 2009], os jornais também não deram muito destaque ao conteúdo. Só deram atenção para o novo visual da ministra Dilma Rousseff, o que me deixou impressionada”.
O que também foi pouco divulgado pela imprensa coorporativa é que a criação da Comissão da Verdade já havia sido recomendada durante a 11ª Conferência de Direitos Humanos, realizada em dezembro de 2008, em Brasília.
Recuo presidencial
Para acalmar os ânimos dos militares, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva assinou um novo decreto, em 13 de janeiro, que suprime o trecho que dizia que a Comissão da Verdade iria promover a apuração das “violações de direitos humanos praticadas no contexto da repressão política”. Assim, o leque de violadores dos direitos humanos ficou amplo, deixando “no ar” quem seriam os investigados.
A medida também prevê a criação de um grupo de trabalho para “elaborar anteprojeto que institua a Comissão Nacional da Verdade (…) para examinar as violações de direitos humanos praticadas no período fixado no art. 8º do Ato das Disposições Constitucionais
Transitórias da Constituição, a fim de efetivar o direito à memória e à verdade histórica e promover a reconciliação nacional”. Tal período proposto pelo decreto presidencial vai de 18 de setembro de 1946 a 5 de outubro de 1988, e não mais o que compreende a
ditadura civil militar, conforme o texto original.
Para entidades e defensores de direitos humanos, o novo decreto representa um grande recuo de Lula. “O presidente da República, seguindo seus hábitos consolidados, resolveu abafar as disputas e negociar um acordo. Esqueceu-se, porém, que nenhum acordo político decente pode ser feito à custa da dignidade da pessoa humana”, criticou Fábio Konder Comparato, professor emérito da Faculdade de Direito, em artigo publicado na página da internet da Caros Amigos.
O acordo foi “lamentável”, e faz parte de uma “tradição conciliatória da política brasileira”, acredita Maria Victoria. “Acho muito complicado tirar a expressão ‘repressão política’. Torturas, assassinatos e prisões ilegais são repressão política abusiva e criminosa”, critica. Além disso, opina, “não tem o menor cabimento jogar o início do período examinado para 1946”. Afinal, “o período da repressão política é de 64 a 85”, indigna-se.
Para Cecília Coimbra, vice-presidente do Grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro, “o governo recua em nome de uma pseudogovernabilidade e abre mão de esclarecer o que ocorreu durante a ditadura. Essa supressão das expressões é muito séria, descontextualiza historicamente e tira a responsabilidade do Estado. Esse decreto é uma coisa escandalosa, vergonhosa”.
O que os setores militares vêm tentando fazer, com a ajuda da grande imprensa, é defender a tese de que “houve excesso dos dois lados”, tanto do regime autoritário como dos militantes de esquerda que pegaram em armas, o que justificaria um “vale-tudo”. “Com isso, tenta-se produzir a teoria dos dois demônios”, alerta Cecília.
Derrota
Também tem sido propalada a ideia de que os defensores da Comissão da Verdade e militantes de direitos humanos são revanchistas. “Seríamos revanchistas se estivéssemos reivindicando que quem torturou deva ser torturado, que quem matou deva
ser morto, que quem estuprou, vai ser estuprado. O que absolutamente não é o objetivo de ninguém”, ressalta Maria Victoria. “Eu sou favorável à responsabilização dos autores diretos desses crimes assim como de seus mandantes e responsáveis. Uma punição dentro da lei. Mas isso é com o Judiciário, não vai ser um programa do Executivo que será responsável por punição. O objetivo da Comissão tem que ser tornar público o resultado dessa investigação. Depois é com o Judiciário”.
Assim, a professora considera a mudança no texto do 3° Programa Nacional de Direitos Humanos uma derrota, “principalmente quando a gente vê que uma aliada natural da causa dos direitos humanos como a Igreja se somou de uma maneira bastante infeliz ao que existe de pior na direita”. No entanto, ela enfatiza que a derrota é de “batalha e não da guerra”.
Outra questão levantada pelos militares e divulgada com o apoio da imprensa corporativa é a de que, com a Comissão da Verdade, o ministro Paulo Vannuchi e as entidades de direitos humanos pretendem revogar a Lei de Anistia de 1979, que prevê, em seu primeiro artigo, “anistia a todos quantos (…) cometeram crimes políticos ou conexos com estes”. Apesar de ter sido publicado nos meios de comunicação que o programa pretendia revogar a lei, inclusive em manchete do jornal O Estado de S. Paulo, em nenhum momento o Programa Nacional de Direitos Humanos cita alguma intenção nesse sentido.
“Ninguém falou em revogação. A questão é colocar a lei nos trilhos porque ela foi deturpada, desviada para abranger o perdão para torturadores e assassinos que obviamente são culpados de crimes comuns, bárbaros. Nenhum país onde vigora o Estado de Direito pode deixar de considerar isso crime comum, principalmente os que estabeleceram Comissões da Verdade”, alerta Cecília.
Tatiana Merlino é jornalista.
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