Ricardo Alvarez
Desconsiderar a fome como questão central no Brasil implica na confissão de dois pecados imperdoáveis: abandonar ao relento do mercado quem sofre deste mal inconcebível em pleno século da tecnologia, e ignorar toda uma produção científica na busca de soluções para nossos problemas neste campo.
Aqueles que enveredam pela reflexão sobre o Brasil, buscando compreender a gênese e a estrutura de seus impasses atuais, deparam-se, necessariamente, com o apartheid social permanente destes mais de 500 anos de formação territorial. A recusa em reconhecer e, sobretudo agir para superar os dilemas produzidos pela grande concentração de renda, terra e poder têm marcado a história nacional com irritante persistência. A fome, em meio à recordes de colheita, é talvez um dos mais sintomáticos.
Enquanto uma parte das elites dirigentes está preocupada com frivolidades e o governo com o assistencialismo eleitoral, o povo da base da pirâmide vai se virando como pode. É preciso ser criativo, solidário e dotado de uma profunda resignação em aceitar o que já não serve ao restante da sociedade, para aproveitar as oportunidades que aparecem esporadicamente para as grandes hordas de excluídos, situação muito bem retratada numa charge do cartunista Angeli sobre o desemprego, onde uma pessoa com um megafone na mão anunciava uma profissão e seus ajudantes puxavam de um buraco uma única pessoa em meio a uma multidão disponível e de braços levantados.
Apesar da insistente cantilena da ideologia do sucesso individual, todos sabem que no capitalismo a pobreza pode ser esporádica para alguns, mas é permanente para a classe. E são justamente estes alguns que são usados como exemplo para mostrar que o sistema permite mobilidade social, ignorando a classe que não sai do lugar. Justificar a imobilidade da maioria com a mobilidade de pouquíssimos é, certamente, uma forma de contar a história e de fugir às raízes do dilema.
O baiano Milton Santos, um dos brilhantes geógrafos que estudaram nossa sociedade, alertou para o fato de que no período atual a fome passou a ser um dado generalizado e permanente no mundo. Mas dizia que os pobres, por conhecerem a experiência da escassez e o convívio permanente com ela, buscavam alternativas apoiadas na solidariedade para driblar as dificuldades cotidianas. Destas alternativas emergia um ‘circuito inferior da economia’, assim como uma cultura popular de massa em oposição a uma cultura midiática, que precisavam ser devidamente estudados, pois eles contêm a potencialidade da transformação.
A histórica ausência do Estado e das políticas públicas sociais, associado à restrita participação popular na tomada de decisões, aprofunda o abismo entre os de cima e os de baixo, gerando a indesejável colocação para o Brasil de um dos campeões na má distribuição de renda neste planeta. A combinação dionísica da exclusão promovida pelo mercado e a constituição de um Estado edificado para ser correia de transmissão dos interesses das elites nacionais.
Para as elites dirigentes, que se negam a enfrentar a barbárie cotidiana resultante desta babel brasilis, resta distribuir teses infundadas para não distribuir parte do bolo. Assim, proclamam que os crimes decorrem de uma maldade de berço de alguns predestinados, em geral pobres e negros. Se há fome é porque eles têm muitos filhos, necessário então reduzir a natalidade. Também não é possível produzir alimentos para tanta gente, portanto alguns terão que sofrer privação. O desemprego é responsabilidade direta dos preguiçosos e vagabundos que nesta condição estão pela falta de iniciativa e qualificação.
Esta mesma elite tacanha, que controla canais de TV, rádios e jornais, detém 75% da renda nacional, frequenta ‘bunkers’ como a Daslu (sobejamente sonegadora), percorre a metrópole paulista de helicóptero, visita ‘os paraísos da natureza’ desde que contenham exclusividade proporcionada por hotéis de alto luxo, e decreta, do alto de sua sabedoria provinciana, que os pobres gostam mesmo de pobreza.
Porém se estas teses vêm sendo repetidas ao longo do tempo, também são refutadas na mesma intensidade. Outro geógrafo que escancarou nossas vísceras sociais contaminadas e atacou o escândalo da fome em meadas décadas do século XX, foi o pernambucano Josué de Castro. Esclarecia que a fome não era um problema de ordem natural, como então majoritariamente se pensava, mas um contratempo humano. Dizia: "Denunciei a fome como flagelo fabricado pelos homens, contra outros homens".
Suas idéias circulavam apoiadas neste pressuposto: “A apropriação injusta e ilegal da generosidade e abundância dos recursos da natureza, é, segundo Josué, responsável pelo subdesenvolvimento, gerador de miséria e a fome. A paz dependeria, fundamentalmente, do desarmamento aliado a um equilíbrio econômico do mundo, a partir de uma distribuição da riqueza visando o verdadeiro desenvolvimento a ser buscado, o humano.”, de acordo com o site que leva seu nome.
Hoje ainda contabilizamos dados assustadores neste sentido. De acordo com o Action Aid:
• O Brasil é o 9º país com maior número de pessoas com fome no mundo, com 8% de sua população consumindo alimentos em qualidade e quantidade insuficientes;
• Cerca de 21% da população vive com menos de 2 dólares por dia;
• 45% das crianças com menos de 5 anos sofrem de anemia crônica por falta de ferro na alimentação;
• 50 mil crianças nascem todos os anos com algum tipo de comprometimento mental devido à falta de iodo na alimentação;
Nosso PIB cresceu bastante desde a época de Josué de Castro e muita coisa mudou: já mandamos um astronauta circular nas alturas, ganhamos várias copas do mundo, nosso país se urbanizou, se modernizou, se industrializou e conseguimos a autosuficiência no petróleo. Mas a fome persiste.
Mesmo com o Programa Fome Zero (substituído em importância pelo PAC) os avanços foram tímidos, pois se limitou a uma política assistencialista de distribuição de alimentos, sem tocar nas raízes do problema. Busque na memória e você vai lembrar que quando estas críticas eram feitas ao Programa, rapidamente o governo se encarregava de retrucar dizendo que “a pessoa que tem fome não pode esperar discussão, debate e ideologia, era preciso agir”. É verdade, barriga vazia se combate com comida, já dizia o grande filósofo nacional, mas e hoje? Como ficam os famintos? O Programa fez água justamente porque a crítica tem fundamento.
O Brasil precisa de uma política agressiva de redistribuição de renda que não se resuma a distribuir benefícios. É preciso estar acompanhada necessariamente de outras medidas, como por exemplo, uma política de segurança alimentar apoiada na produção de víveres básicos do consumo popular. Os dados mais recentes mostram que ocupamos 3,0 milhões de hectares com a lavoura de arroz e 4,3 milhões com feijão. Parece um mundo de terras, mas se compararmos com os 851 milhões de hectares que formam este colosso chamado Brasil veremos que as cifras são raquíticas. Em outras palavras, apenas 0,85 do território nacional está ocupado com o cereal e a leguminosa. Um aumento de simples 20% na área plantada e na produção significaria passar dos 7,3 para 8,7 milhões de hectares como forte impacto na alimentação do povo brasileiro.
Obviamente o aumento da produção levaria a queda de preços, ruim para o produtor, bom para os consumidores, mas é justamente ai que entraria o governo com uma política de ampliação da produção de alimentos, garantindo preços mínimos, forçando a ocupação da terra, combatendo o latifúndio, gerando empregos no campo e atacando a fome. Ação muito mais eficiente, com míseros 20% de acréscimo na área plantada, do que o assistencialismo alimentar.
Os latifundiários, por exemplo, ocupam hoje mais de 20 mi
lhões de hectares com soja quando no início dos anos 90 o número beirava os 11,5 milhões. A cana-de-açúcar foi de 4,2 para 6,5 no mesmo período. Arroz e feijão sofreram redução da área plantada. Hoje o brasileiro consome mais massas do que a interessante combinação do arroz com feijão, de grande valor nutritivo.
Não faltam terras, faltam políticas de distribuição delas. Não faltam empregos, falta vontade de enfrentar a terra improdutiva. Não falta comida, falta direcionar a produção para o atendimento das necessidades básicas de nossa população.
Houve um tempo em que um pensador britânico chamado Thomas Malthus fez muito sucesso quando escreveu (na virada do século XVIII para o XIX) que o mundo não suportaria a população vindoura, pois a nossa capacidade de produzir alimentos não acompanharia a correspondente geração de bocas. Embora ainda haja muitos neomalthusianos espalhados por ai, acreditando piamente em suas teses e defendendo a redução da natalidade como a única saída para o combate à fome, basta um pequeno esforço de raciocínio para desmoronar esta retórica infundada.
As evidências derrubaram o mito do excesso de gente e com ele todo o pensamento de Malthus. Mas a fome continua em pé.
Ricardo Alvarez
Geógrafo, é professor, editor do blog e site Controvérsia e presidente do PSOL de Santo André/SP