A esquerda brasileira, latina e mundial tem dois processos centrais de combate relativos à produção de seu projeto de classe
Roberta Traspadini
A esquerda brasileira, latina e mundial tem dois processos centrais de combate relativos à produção de seu projeto de classe. 1. Para fora, a luta, ruptura e superação dos princípios e práticas burguesas. 2. Para dentro, a disputa dialógica com os pares, em que o cultivo, o estudo, a formação, os encontros coletivos sejam o fundamento da compreensão sobre a necessária produção de uma nova sociedade que nos interesse enquanto classe.
Mas como sonhar com um novo processo social-econômico-cultural, projetar o ainda não realizado, em meio à aparente vigência onipotente do capital? Como ser, se sentir, pertencer à classe trabalhadora se a realização do trabalho e o sonho sobre o devir estão, em geral, subordinados ao poder do capital que extrai, expropria, rouba o tempo do trabalho?
Estas perguntas nos remetem a alguns desafios que necessitam ser refletidos em conjunto para que seja consolidada uma práxis renovadora tanto das esperanças, quanto dos caminhos possíveis das trilhas do caminhar revolucionário.
1º. Desafio: Diálogo rigoroso, claro, e sem desqualificação do divergente. Um dos principais problemas da esquerda está na forma de explicitação entre seus pares de seu conteúdo de classe. Em muitos momentos a esquerda reproduz o que de mais perverso há no processo burguês de produção linear: a capacidade de tornar o outro invisível, a partir do aniquilamento da escuta-fala-reflexão.
O desafio dialógico entre camaradas tem a intenção de aprofundar os temas gerais, mas não tornar superficial as relações entre os que tomam partido em favor da classe que vive do trabalho.
Este tema é central, dada a dificuldade em pleno século XXI de se dialogar a partir da escuta real do que o outro quer dizer. Isto nos remete a uma característica chave do bom diálogo que é o de não responder imediatamente, com a pressa comum própria da sociedade do roubo do tempo.
Isto requer para os que falam e escutam o tempo do silêncio. Tempo que nos remete à calma, ao cuidar específico da compreensão sobre o que se diz e como se estrutura a forma e o conteúdo deste dizer da maneira em que faz o interlocutor.
Esta reflexão sobre o dito e o posterior comentário de quem escuta para depois falar, requer um ponto de referencia do diálogo relativo à manifestação do pensamento e da linguagem que envolve este dizer. São, pois, sujeitos dialógicos mediados por conceitos, conteúdos, métodos que o aproximam, ou afastam, na compreensão real dos fenômenos relatados.
2º Desafio: Disciplina e concentração. A disciplina é central para, assim como se necessita qualificar o ouvir, também se necessita qualificar o falar. E para tanto é necessário um processo de imersão no conhecimento acumulado sobre o processo vivido pelos trabalhadores ao longo de seu caminhar histórico.
Tratamos da disciplina que nos educa para a arte de buscar nossas referências, enquanto compreendemos as que pautam a qualificação de nossos interlocutores. Disciplinar para a qualificação da fala e da escuta, nada tem a ver com educar para uma única lógica e um único conteúdo de classe. Tem a ver com o rigor no método, na problematização, na compreensão da totalidade do processo.
Disciplina para compreender o que ainda não se compreende, tanto sobre como funciona a sociedade protagonizada pelo trabalho e dominada pelo capital, quanto como funcionará a sociedade cujo poder esteja concretamente nas mãos da classe trabalhadora.
Tempo de disciplina é tempo de nos educarmos-formarmos juntos para termos referências comuns nos diálogos que pautamos.
Toda disciplina requer uma concentração para realmente estarmos envolvidos naquilo que fazemos. Concentrar-se no quefazer significa não fazer muitas coisas ao mesmo tempo. Eleger o prioritário e atacá-lo em conjunto demanda tempo e estudo sobre as estratégias e táticas da ação reflexiva.
A concentração é chave, tanto porque fomos educados para a dispersão, quanto porque ao longo do nosso caminhar histórico, mediado pelo domínio do capital, a artimanha encontrada para a opressão e exploração, foi a alienação através do roubo real do tempo de pensar, agir, refletir.
3º desafio: paciência histórica. A paciência é avessa ao imediato. Portanto, coloca as coisas nos seus devidos lugares. Quanto mais se rouba o tempo e se dimensiona o viver sob a lógica imperante do ter sobre o ser, tanto mais temos o compromisso de cuidar para não aniquilar ainda mais nossos encontros como classe, com sujeitos que já não se sentem pertencentes a ela.
A paciência histórica requer da esquerda que não nos vejamos como inimigos por falta de referenciais, mas que consigamos, juntos tecer estes referenciais que nos conectam, com base em pautas, lutas, formações concretas. Sem paciência não se aprende nada.
A paciência nos remete à condição histórica de nossa formação, enquanto sujeitos que se sabem inacabados. E como tais, tecem, aos poucos, com o cuidado necessário, o processo de um caminhar convicto, cujas bases não se desmancham no ar, por falta de referencias que vão, pouco a pouco, tomando a forma necessária do conteúdo de classe.
Paciência, para dentro da esquerda, é cultivo que não aceita transgenia, nem aceleração de um tempo de aprendizagem que não pode ser tomado como único, de cima para baixo, dadas as condições reais de vida da classe trabalhadora na atualidade.
4º. Desafio: práxis reflexiva-revolucionaria-propositiva. A práxis é uma característica chave da filosofia marxista que não separa, nem distingue a teoria da prática; o saber popular do saber acadêmico; o processo histórico e a atualidade; a ação e a reflexão; a ética e a moral pública e privada.
A filosofia da práxis ao ser aprofundada nos remete tanto ao que fizeram de nós, enquanto classe, quanto ao que nós mesmos fomos consolidando sobre nós.
Se, por um lado o capital foi ousando em sua pretensão de nos invisibilizar como sujeitos da ação-reflexão, por outro lado nós trabalhadores, ao tomarmos partido e falarmos como classe também não fomos capazes de, ao estar juntos, nos reconhecermos para além daquilo que fizeram de nós.
Uma síntese dos complexos desafios:
Fomos formados em uma cultura de formatação da aprendizagem e do saber. Como tais, o pouco que sabemos não se conecta com uma totalidade manifesta na relação dos homens consigo mesmos, com a natureza e com os demais seres.
Quebrar os compartimentos do saber e colocá-los em permanente diálogo, é redescobrir pontos comuns em diversas áreas que não são divergentes. Instituir o diálogo entre saberes e construir a partir disto, novos elementos que em conjunto sustentam renovadas bases de conformação de outro projetar sobre o real vivido.
Por isso, estes quatro desafios conectados nos remetem a um processo central de um pensar coletivo da esquerda sobre o significado de uma ética e uma moral de classe que não tolere mais a separação para dentro, a degradação de nossos sentidos de pertença e de projeção sobre nosso caminhar, nas mesmas bases burguesas consolidadas pelo capital.
Ética e moral que nos permitam o rigoroso enfrentamento de ideias na conformação de nosso projeto, mas que não nos separem no processo dialógico de pensar nosso atual, e futuro, referencial prático-reflexivo de classe.
Sabemos que instituir uma sociedade sem opressores nem oprimidos, sem explorados nem exploradores, em que o direito social e humano seja preponderante, são elementos constitutivos da luta protagonizada pela classe trabalhadora, em seu afã de romper e superar os mecanismos do capital.
Para tanto, vale a pena repensarmos os ensinamentos de marxista filósofo alemão Ern
est Bloch sobre a arquitetura da esperança, “uma arquitetura que se realiza na nova terra. Nos sonhos de uma vida melhor sempre residiu o anseio de felicidade, que só pode ser inaugurado pelo marxismo.”
Roberta Traspadini é economista, educadora popular, integrante da consulta popular-ES.
Artigo publicado pela Agência Brasil de Fato – 06/01/2010