Por Fabio Bezerra, professor de história e filosofia e membro do Comité Central do PCB
Pela primeira vez na história do cinema, um presidente da república ainda em pleno
mandato, tem dedicada sua biografia à sétima arte, com um grande apelo à trajetória
de quem venceu a fome e as péssimas condições as quais os retirantes nordestinos
são submetidos desde o êxodo do sertão até chegar às favelas na periferia de São
Paulo. O filme sobre a trajetória de Lula é uma superprodução para os padrões
brasileiros, financiado com recursos de diversas empresas privadas, entre elas
empreiteiras que estão diretamente envolvidas nas obras do PAC, tais como a
Odebrecht e Camargo Corrêa e empresas prestadoras de serviços ou parceiras na
exploração do Pré-sal, como o grupo EMX, do empresário Eike Batista.
Mas o que nos chama a atenção no filme não é a grande quantidade de empresas
privadas que financiaram a obra e nem tão pouco a qualidade cinematográfica e o
investimento no elenco. O que nos chama a atenção são as mensagens que estão
evidenciadas nessa obra e o quanto a era Lula dá indícios de que ainda irá perdurar
por algum tempo no cenário político brasileiro.
Podemos avaliar o filme em pelo menos três aspectos, sendo que todos eles são
partes de um todo que pode ser resumido na tentativa da reificação de um mito vivo
no imaginário da população.
O 1º aspecto trata da superação e da conquista de outro patamar de vida, ao qual de
certa forma, todos(as) os(as) trabalhadores(as) são envolvidos ao se verem retratar
na pele de um menino pobre, de uma família numerosa e retirante, que sonha com
uma perspectiva melhor ao virem para São Paulo e que são sujeitados a todo o tipo
de prova: fome, miséria, enchentes destruindo tudo nas madrugadas, humilhações
etc, etc.
Lula encarna a figura do herói épico que vence com afinco as determinações às
quais a classe trabalhadora estaria subjugada.
Uma vez operário, ainda jovem, se horroriza com o vandalismo das greves dirigidas
pelos comunistas, como o seu irmão mais velho, conhecido na época como “Frei
Chico” e não vê sentido em tratar os patrões e o Governo, leia-se o capital, como os
inimigos de classe dos trabalhadores(as).
Lula quer namorar, curtir o futebol, tomar cerveja e viver a vida, mesmo que sob o
obscurantismo da Ditadura Militar e as perseguições e arrochos sob os quais o
operariado vivia no Brasil naquele momento. Representa o trabalhador comum, mas
sensível aos dilemas de seu tempo. Por sua vez, escolhe outra forma de se
posicionar frente a esse contexto; critica a luta armada, o radicalismo ideológico da
esquerda marxista, presente nos diálogos com o irmão.
Após a perda trágica da 1ª esposa, morta em trabalho de parto junto com o filho, Lula
se deprime e envolve-se então de corpo e alma com o sindicato dos metalúrgicos do
ABC, à época dirigido por um sindicalista oportunista e que possuía relações
espúrias com o Governo e o empresariado.
Eis o 2º aspecto da peça, o operário comum que desde cedo não se condicionou
pelo enfrentamento ideológico, mas que buscou encontrar outras formas de
convivência com o capital, aceita o estabelecimento do FGTS (Fundo de Garantia
por Tempo de Serviço) e passa a propagandear as vantagens em se aceitar a
transição, ao contrário dos comunistas que denunciavam o ataque ao direito da
estabilidade por tempo de serviço. É o sindicalista que aos poucos vai retirando o
sindicato do isolamento e vai condicionando aos trabalhadores do ABC uma voz
ativa frente aos arrochos promovidos pela política econômica.
No filme, em seu discurso de posse em 1975, Lula reafirma que o papel fundamental
do sindicato seria “buscar o entendimento” e de que “ não são os patrões os nossos
inimigos”. Está plantada aí a semente ideológica de um modelo sindical que se
alastrou e firmou raízes em diversos segmentos da classe trabalhadora em todo o
Brasil e que alguns anos mais tarde estaria bem representada na organização
político e sindical conhecida como Articulação, a principal corrente do Partido dos
Trabalhadores e da Central Única dos Trabalhadores ( CUT).
Nesse momento o aspecto ideológico fica muito evidente. O novo sindicalismo
forjado nas lutas do ABC no final dos anos 70 e início dos 80 é um sindicalismo que
superou tanto o “velho” modelo comunista, baseado na luta de classes, como
também o peleguismo, típico do período intervencionista na estrutura sindical,
constituindo através das greves e da mobilização de base o despertar do sonho de
uma classe por um futuro mais digno e a superação das amarras da Ditadura.
É o herói coletivo, aquele que encarna todo o sentimento de esperança e rebeldia de
um momento histórico, de transição, mas ao mesmo tempo de estabelecimento de
um novo modelo de relação entre o capital e o trabalho no coração da indústria
brasileira.
O 3º e último ato da peça encerra todo o sentido da obra.
Lula supera as adversidades, “conquista” junto com seus companheiros de sindicato
um novo patamar não apenas para os metalúrgicos do ABC mas também para o
conjunto da população brasileira ao se tornar o 1º operário eleito presidente da
república.
Um líder sindical que através da persistência e da fidelidade com suas origens,
imbuído de suas convicções, entre elas a de que os “patrões não são os nossos
inimigos” consegue chegar ao mais alto posto do poder político no Brasil.
Enfim o filme: “Lula, O Filho do Brasil” é um fantástico documentário de propaganda
política e ideológica da perspectiva social democrata, não para a época retratada no
filme; mas para a nossa atualidade.
Muitos críticos vêem no filme mais um elemento de campanha eleitoral para a
ministra chefe da Casa Civil, Dilma Roussef, o que não deixa de ser verdade. Mas
essa obra também serve como elemento de propagação de uma idéia, de uma
mensagem aos trabalhadores em época de crise econômica mundial e acentuada
contradições no mundo do trabalho, de que assim como nos anos 70, mesmo com
greves e ocupações, o diálogo e a parceria devem estar sempre à frente da
condução política das lideranças de classe, sejam eles patrões ou empregados.
O modelo instaurado no ABC e ampliado pela CUT durante os anos 90 com a defesa
do chamado sindicalismo de resultados perpassa hoje por uma séria onda de
críticas, pois o apogeu desse modelo de sindicalismo conciliatório e institucionalizado
encontrou justamente no Governo do presidente “operário” seu clímax e ao mesmo
tempo seu limite histórico, pois aumenta significativamente a onda de desfiliações
das entidades de base ao não identificarem mais nesse modelo sindical uma real
alternativa de luta frente aos efeitos da crise.
Mesmo assim a associação do homem retirante com o líder sindical e com o
presidente eleito que após ser derrotado por três vezes, não desistiu, vencendo as
eleições de 2002 é justamente a síntese desejada tanto pelos que defendem o atual
governo em ano eleitoral, como os que defendem o legado histórico da CUT e seus
sindicatos orgânicos, como os q
ue defendem a manutenção desse modelo de
governo socialiberal, calcado na mais profunda aliança de classe já operada entre a
burguesia e a nova burocracia sindical e política.
Há ainda outro elemento que não pode ser desconsiderado e nada mais justo que
parafrasear o próprio presidente Lula: “nunca antes na história desse país”, um
presidente que não tem condições legais de ser candidato ao próximo pleito já
antecipou sua campanha para 2014 com tanta pompa e inteligência.
O filme sem sombra de dúvida estará presente no imaginário da população brasileira
ao longo desses próximos anos tornando-se mais um acessório de propaganda
ideológica, utilizada pelo PT em torno da figura de Lula sempre que se fizer
necessário, pois como bem está sintetizado em seu título, LULA seria o filho natural
de toda uma nação chamada Brasil.
Nem Getúlio Vargas inspirado em Joseph Goebbels, quando criou o DIP
(Departamento de Imprensa e Propaganda) inaugurando na história da república o
uso do marketing político para a auto promoção, chegaria a tanto!
Por Fábio Bezerra.
(Professor de História e Filosofia e membro do CC do PCB)
Artigo originalmente publicado no site Nacional do Partido Comunista Brasileiro – www.pcb.org.br