Paulo Passarinho
Encerrei o meu último artigo neste espaço – onde me reportei à sessão da CPI da Dívida Pública em que estive presente na Câmara Federal – manifestando o meu espanto com a demonstração de fragilidade dada por Armínio Fraga. O ex-presidente do Banco Central, na ocasião, explicou aos parlamentares que, frente ao jogo duro do mercado, para aceitar rolar a dívida da União, em 2001 e 2002, não restou alternativa que não fosse atender o apetite e voracidade dos agentes financeiros por mais juros, cláusulas cambiais e prazos mais curtos de vencimento para os títulos do governo.
Rigorosamente, não se trata de debilidade da autoridade monetária de então, conforme ironicamente insinuei. Uma das principais características observada no comando da política econômica do país, já há muitos anos, e independentemente do presidente de plantão, é o absoluto controle exercido pelo sistema financeiro sobre os cargos de direção do Banco Central, o verdadeiro locus decisório dos rumos do país em termos econômicos. Neste artigo já mencionado, lembrei, por exemplo, que desde 1988 iniciou-se um processo de desmontagem de todas as restrições à livre movimentação de capitais no Brasil, aparentemente de forma absolutamente ilegal.
O próprio convite feito à Armínio Fraga por Fernando Henrique, em janeiro de 1999, para assumir o Banco Central, é uma demonstração cabal dessa subordinação do "governo" brasileiro à lógica e aos interesses do mundo das finanças. Armínio era na época um dos mais importantes gestores de fundos do grupo financeiro de George Soros, conhecido especulador financeiro internacional.
Saiu diretamente de Nova York, onde morava e trabalhava, para garantir os interesses dos credores na gestão da dívida pública do país, entre outros objetivos.
O sucessor de Armínio – já no governo de Lula -, como todos sabem, foi Henrique Meireles, até hoje no cargo, apesar inclusive das denúncias que lhe pesam, feitas pela Procuradoria Geral da República, de sonegação fiscal, evasão de divisas e falsidade ideológica. Meireles, ao ser nomeado por Lula, há pouco se aposentara como um dos presidentes mundiais do Bank of Boston, um dos grupos credores do governo brasileiro. Fora eleito também – em rápida, milionária e suspeitíssima campanha no estado de Goiás – deputado federal pelo PSDB, aparentemente o mais forte opositor do partido do presidente eleito. Com relação às acusações que lhe afetam, ele apenas se beneficiou delas: Lula lhe conferiu o status de ministro de Estado, lhe possibilitando gozar de foro privilegiado para se defender na Justiça.
Tudo isso deixa claro com quem se encontra, de fato, o poder econômico e político, no Brasil.
Explica, também, o porquê de a trajetória do endividamento brasileiro não ter sido alterada nesses anos de governo Lula. Ao assumir a presidência, Lula herdou uma dívida em títulos do governo federal de R$ 687,30 bilhões, correspondendo a 46,51% do PIB. Hoje, essa dívida ultrapassa a R$ 1,8 trilhão, mais de 55% do PIB.
Armínio Fraga, em seu depoimento à CPI da Dívida, admitiu ser elevado esse endividamento, com taxas de juros muito altas, mas declarou também ser contrário a qualquer brusca mudança nos padrões de administração da dívida pública. Manifestamente, se declarou cético a medidas de controle à livre movimentação de capitais, conforme uma das alternativas defendidas por mim, como medida preliminar para uma mudança substantiva da atual política econômica.
Com a defesa de nossas fronteiras financeiras, através de mecanismos de controle dos fluxos cambiais, retiraríamos boa parte do tal poder do mercado em impor taxas, juros e outras condições draconianas à gestão da dívida por parte do Banco Central. Permitiria reduzir a taxa de juros e alongar os prazos de vencimento dos títulos, atenuando a carga de juros que garante alta rentabilidade aos detentores de títulos públicos.
Lembrei aos parlamentares que o governo, assim como o faz em relação à dívida externa, apresenta dados da dívida interna em títulos que subestimam o valor real desse passivo. O Banco Central não inclui em seus comunicados à imprensa sobre o volume do endividamento mobiliário as chamadas Operações de Mercado Aberto. Essas operações são realizadas pelo Banco Central para enxugar o volume em excesso de reais, em circulação na economia, por conta da entrada de dólares ou pelo simples fato do Banco Central pagar em dinheiro parte dos juros devido aos credores.
Em novembro, essas operações já envolviam um montante superior a R$ 500 bilhões, e as taxas de juros utilizadas para a rolagem dessa dívida ultrapassam em muito a taxa Selic, conforme ocorreu em 12 de novembro último, quando o Banco Central pagou mais de 13% para a remuneração de parte dessas operações.
Mas, especialmente, procurei também demonstrar aos integrantes da CPI que o modelo que nos endivida é o mesmo que nos condena a baixas taxas de crescimento econômico. O próprio ciclo de crescimento que experimentamos entre 2004 e 2008 deixa claro o que ocorre quando começamos a crescer acima de 4,5% ao ano – diga-se de passagem, uma taxa bastante aquém do que poderíamos crescer e do que necessitamos. Com a diminuição do saldo comercial, por conta do crescimento das importações acima da expansão das exportações, motivada pela valorização do real frente ao dólar, tendemos a voltar a contrair fortes deficits em conta-corrente. A valorização do real é uma consequência direta dos fortes fluxos de entrada de dólares na economia, incentivada pela facilidade de negócios e taxas de juros atraentes. O deficit em conta-corrente é o resultado do saldo comercial diminuído frente às despesas com a conta de serviços, cada vez mais pesada em uma economia crescentemente desnacionalizada, pagadora de juros aos credores da dívida externa e importadora de serviços, como fretes, por exemplo.
Baixas taxas de crescimento e péssima estrutura fiscal
O Balanço Geral do Orçamento da União, em 2008, mostra de forma implacável quais são as prioridades do governo. Mais de 30% dos recursos foram gastos com o pagamento de juros e amortizações, sem incluir a parte refinanciada da dívida, ao mesmo tempo em que a Saúde (4,81%), a Educação (2,57%), a Habitação (0,02%), o Saneamento (0,05%) e a Organização Agrária (0,27%) juntos não chegaram a absorver 7,8% do total das despesas da União.
Defendi, por fim, que a CPI venha a se desdobrar em um trabalho sério de auditorias das dívidas externa e interna. Lembrei a necessidade de cumprimento do artigo 26, das Disposições Transitórias da Constituição Federal em vigor, que prevê justamente a realização da auditoria da dívida externa, até hoje não realizada. Este esforço, e exigência constitucional, deve envolver hoje a auditagem também do endividamento interno, pelo fato de parte desses débitos externos ter sido saldada nos últimos anos pela absorção de recursos externos, a um alto custo e com o endividamento interno galopante, em títulos, que demonstramos estar em curso.
Foi uma oportunidade importante, embora a participação dos parlamentares tenha se mostrado extremamente esvaziada. Apesar de ter um deputado como presidente da CPI, o PT não participou com nenhum de seus parlamentares dessa sessão, que contou, lembro mais uma vez, com a participação de Armínio Fraga, ex-presidente do Banco Central. Nem mesmo os seus aliados do PCdoB e do PSB se fizeram presentes.
Talvez esse seja o sinal mais cabal de como as prioridades dos principais partidos de esquerda que sustentam o governo Lula se modificaram, por completo, nesses últimos a
nos.
02/12/2009
Paulo Passarinho é economista e presidente do CORECON-RJ