Artigo do deputado federal Ivan Valente publicado no Jornal do Brasil do dia 19 de outubro.
O presidente Lula e sua comitiva visitaram na semana passada as obras da transposição das águas do Rio São Francisco, projeto que prevê a abertura de 720 quilômetros de canais para levar a água do maior rio do Nordeste para áreas de Pernambuco, Paraíba, Ceará e Rio Grande do Norte. Com pompa e circunstância, o presidente fez declarações de que o projeto idealizado por dom Pedro II finalmente sairá do papel, para tirar do flagelo da seca 12 milhões de brasileiros que vivem no sertão.
Volta à tona, então, a polêmica em torno dos supostos benefícios que a transposição do Velho Chico poderiam trazer aos nordestinos.
A promessa é que a transposição matará a sede do sertanejo, mas, para se ter uma ideia, apenas 4% da água transposta serão destinados ao consumo humano. A imensa maioria do volume transposto será utilizado para atividades econômicas altamente consumidoras de água – o chamado hidronegócio – como a fruticultura irrigada, a criação de camarão e a siderurgia. Desta forma, transpor o São Francisco, algo que custará mais de R$ 6 bilhões aos cofres públicos, só atenderá a um modelo de desenvolvimento que prioriza as grandes empreiteiras e o agronegócio exportador, e que aponta para ações de privatização e mercantilização da água, um direito fundamental que precisa ser garantido à população do semiárido.
Outro problema do projeto são os impactos ambientais e sociais de uma obra como esta. O presidente Lula anunciou a recuperação das margens do rio e das matas ciliares, mas segundo o Comitê da Bacia Hidrográfica do São Francisco, existe muito dinheiro orçado para a revitalização, mas sem uma implementação das ações que seriam de fato necessárias. As ações em andamento tratam do esgotamento sanitário e do saneamento ambiental, mas a questão da diminuição da vazão do rio, por exemplo, não foi estudada. Nos últimos 50 anos, o fluxo da água do São Francisco já diminuiu 35%. Os estudos de impacto ambiental foram feitos nas bacias que vão receber as águas, mas não nas regiões de onde elas serão transpostas. Uma série de procedimentos previstos na legislação para o licenciamento ambiental também foram ignorados.
As obras em andamento trarão um impacto tão grande ao meio ambiente que levaram a inúmeras ações na Justiça movidas pelo Ministério Público federal e estadual de diferentes estados, além de ações do movimento ambientalista e de organizações de defesa do Rio São Francisco. Segundo a Promotoria de Justiça do Rio São Francisco, os estudos realizados para licenciamento ambiental mostraram impactos reais e negativos, físicos e antropológicos na região afetada pela transposição.
Nas comunidades indígenas, o impacto será grande. Por isso, a Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo, junto com outras entidades, está pressionando o Supremo Tribunal Federal a julgar as ações pendentes contra o projeto, entre elas uma ação direta de inconstitucionalidade.
Segundo a Constituição Federal, a implantação de empreendimentos em terras indígenas requer uma consulta prévia ao Congresso Nacional. As obras da transposição implementadas pelo Exército ignoraram esta regra e 33 tribos indígenas foram afetadas, principalmente os Truká, os Tumbalalá, os Pipipã e os Kambiwá.
Por tudo isso, ressaltamos a importância da luta de dom Cappio, profundo conhecedor da realidade local, e seu papel, em conjunto com a Comissão Pastoral da Terra e outras entidades, no questionamento do projeto, lembrando que o povo do semiárido e o próprio Estado brasileiro já desenvolveram alternativas menos degradantes e custosas à transposição. Há três anos, a Agência Nacional de Águas elaborou o Atlas do Nordeste, que prevê o atendimento de nove estados, com um alcance social maior e custo menor. Pelo Atlas, 35 milhões de nordestinos em 1.350 municípios seriam abastecidos a um custo de R$ 3,5 bilhões. Fora das cidades, o investimento deve ser feito em tecnologias sociais alternativas, como as desenvolvidas pela Articulação do Semiárido (ASA), que defende a construção de 1 milhão de cisternas para atender às áreas mais áridas e isoladas da região.
Essas obras não estão previstas no PAC, simplesmente porque não atendem aos setores historicamente enriquecidos pela chamada indústria da seca. O Brasil não precisa de novos projetos que tragam ainda mais benefícios às oligarquias locais.
Precisa enfrentar o problema da pobreza no Nordeste garantindo a segurança hídrica de seus habitantes e as condições para a real emancipação de seu povo. E isso o projeto faraônico da transposição do Rio São Francisco está longe de proporcionar.
Para se ter uma ideia, apenas 4% da água transposta serão destinados ao consumo humano
Ivan Valente
DEPUTADO FEDERAL (PSOL-SP)
Jornal do Brasil – 19/10/09