Ao assumir uma posição inequivocamente partidária, a grande mídia está fazendo uma espécie de “retorno invertido” às suas origens, no contexto da reação histórica conservadora do final do século XIX.
Venício Lima
A imprensa – ou o de mais parecido com aquilo que hoje entendemos como tal – nasceu vinculada à política, aos políticos e aos partidos políticos.
No curso da revolução na França calcula-se que, entre 1789 e 1800, foram publicados mais de 1.350 jornais. Na Paris de 1789 e depois novamente em 1848, todos os políticos de algum destaque fundam o próprio clube e, de cada dois políticos, um dá vida a um jornal; somente entre fevereiro e maio surgem 450 clubes e mais de 200 jornais (citado in Domenico Losurdo; Democracia ou bonapartismo; Editoras UFRJ/UNESP; 2004; p. 148).
Historiadores da imprensa periódica nos países onde ela primeiro floresceu, sobretudo Inglaterra, França e Estados Unidos, concordam que ela teve sua origem na política e, numa segunda fase, se transformou em imprensa comercial, financiada por seus anunciantes e leitores.
No Brasil, as circunstâncias históricas, certamente nos diferenciam de países como Inglaterra, França e Estados Unidos. Não há distinção, todavia, em relação às origens políticas e partidárias da imprensa nativa. Escrevendo especificamente sobre “as reformas dos anos 50 (que) assinalaram a passagem do jornalismo político-literário para o empresarial”, a professora Ana Paula Goulart Ribeiro afirma:
O jornalismo que se desenvolveu, no Rio de Janeiro, a partir de 1821 (com o fim da censura prévia) era profundamente ideológico, militante e panfletário. O objetivo dos jornais, antes mesmo de informar, era tomar posição, tendo em vista a mobilização dos leitores para as diferentes causas. A imprensa, um dos principais instrumentos da luta política, era essencialmente de opinião (Imprensa e História no Rio de Janeiro dos anos 50; E-Papers; 2007; p. 25).
Outra periodização
A exceção à ordem dessa periodização – que deve ser mencionada aqui pela relevância de que desfruta na discussão contemporânea sobre a “democracia deliberativa” – é representada por Jürgen Habermas. O pensador alemão descreve a existência de uma primeira imprensa que era a principal instituição da “esfera pública burguesa” do final do século XVII e início do século XVIII, na Inglaterra e na França. Nesta “esfera pública” a imprensa se constituía em espaço mediador “neutro” e não impedia a delimitação entre as esferas pública e privada. Embora também comercial, não era ainda o empreendimento em escala industrial que corresponde a outra etapa do capitalismo quando, depois da fase político-partidária, ela se transforma em imprensa comercial moderna.
Todavia, é o próprio Habermas quem afirma:
Na Inglaterra, na França e nos Estados Unidos, o caminho estava preparado para a transição de uma imprensa partidária para uma imprensa comercializada mais ou menos à mesma época durante os anos 30 do século XIX. (…) Essas primeiras tentativas de uma moderna imprensa comercial devolveram ao jornal o caráter unívoco de uma empresa de economia privada destinada a gerar lucros; mas, agora, por certo, contrastando com as empresas manufatureiras dos velhos ‘editores’, dentro do novo nível atingido pela evolução da grande empresa do capitalismo avançado; já pela metade do século havia uma série de empresas jornalísticas organizadas como sociedades anônimas (Mudança Estrutural da Esfera Pública; Tempo Brasileiro, 1984; pp.216-217; tradução revisada).
Ação política conservadora
O filósofo e historiador italiano Domenico Losurdo lembra que o desaparecimento dos jornais partidários e sindicais não pode ser, no entanto, explicado como resultado exclusivo de um processo econômico. Ao contrário, deve ser compreendido como parte do processo histórico de organização política e sindical das classes subalternas e da reação conservadora que se desenvolve no final do século XIX contra a expressão relativamente autônoma dessas classes. Uma ação política que incluiu também o combate ao princípio do sufrágio universal.
Tomando como referência o que ocorreu nos Estados Unidos, afirma Losurdo:
Malgrado as tentativas do patronato, que se esforça de todas as maneiras, e, sobretudo, mediante a demissão dos operários surpreendidos na sua leitura (da “labor press”) para limitar sua influência, esta não é desprezível. (…) Esta imprensa se torna o alvo e a vítima da reação conservadora que se desenvolve no final do século XIX. (…) (Os jornais partidários e sindicais) são suplantados por uma imprensa que se jacta de ser independente, mas é controlada pela grande propriedade (citado in op. cit.; pp. 159-160).
A imprensa que se autodenomina “independente” é aquela que passa a ser financiada, sobretudo, pelos anunciantes e, ao longo do tempo, busca sua legitimação no princípio liberal do “mercado livre de idéias”, externo e/ou interno à própria imprensa e, mais recentemente, através de um retorno à idéia da própria “esfera pública” habermasiana.
Mas teriam os jornais realmente se libertado de seu vínculo originário com a política, os políticos e a ação político-partidária? Teriam eles se tornado independentes?
Independência e “mercado livre de idéias”
Há mais de 60 anos, isto é, pelo menos desde a Hutchins Commission (EUA/1942-1947), a teoria liberal da independência da imprensa vem sendo “retrabalhada” e passou a se apoiar em três idéias centrais: pluralismo interno, responsabilidade social e profissionalismo.
Esse “retrabalhar” decorreu da impossibilidade de se continuar sustentando o discurso do “market place of ideas” – semelhante ao mercado “autocontrolado” de Adam Smith – em face do avanço real da oligopolização da mídia e da formação de redes regionais e nacionais de rádio e televisão. Trata-se agora de trazer o “market place of ideas” para dentro dos próprios jornais.
A idéia, no entanto, encontra dificuldades incontornáveis. Se, por um lado, a solução é inviável em sociedades onde existe uma tradição historicamente consolidada de imprensa partidária, por outro, os estudos sobre linguagem, a sociologia do jornalismo, a construção da notícia (newsmaking), o enquadramento (framing) e o agendamento (agenda setting), apesar de diferenças significativas, revelam que a prática do jornalismo profissional ocorre no contexto de uma subcultura própria; de rotinas produtivas que se transformam em normas; e de interferências editoriais – explícitas ou não – que tornam sem sentido qualquer pretensão à existência do mito da objetividade ou de uma prática jornalística neutra e isenta, vale dizer, independente.
Mídia como partido político
Foi Antonio Gramsci, referindo-se à imprensa italiana do início do século XX, quem primeiro chamou a atenção para o fato de que os jornais se transformaram nos verdadeiros partidos políticos. Muitos anos depois, entre nós, Octávio Ianni chamou a mídia de “o Príncipe eletrônico”.
Na Ciência Política contemporânea, apesar de toda a resistência em problematizar “a construção coletiva das preferências” no debate teórico sobre a democracia, já se admite que a mídia venha, historicamente, substituindo os partidos políticos em algumas de suas funções tradicionais como, por exemplo, construir a agenda pública (agendamento); gerar e transmitir informações políticas; fiscalizar as ações de governo; exercer a crítica das políticas públicas e canalizar as demandas da população.
Retorno invertido
Dentro deste amplo quadro histórico é que devemos compreender c
erto “mal estar” contemporâneo generalizado que está cada vez mais difícil de esconder e refere-se à crescente partidarização da grande mídia. Este não é, certamente um fenômeno restrito às democracias da América Latina, como demonstra a ousada e inédita atitude do governo Barack Obama de tratar publicamente os veículos ligados à rede FOX de televisão como “partido político de oposição”.
Se, para alguns analistas, a “crise” que a imprensa enfrenta, em decorrência da revolução digital, está levando à sua partidarização como forma (equivocada) de sobrevivência, devemos recorrer à história e verificar que, ao assumir uma posição inequivocamente partidária, a grande mídia está fazendo uma espécie de “retorno invertido” às suas origens, no contexto da reação histórica conservadora do final do século XIX.
No Brasil, a imprensa declaradamente partidária e associada a bandeiras de luta política operária teve vida curta (cf. M. Nazareth Ferreira, A Imprensa Operária no Brasil, Vozes, 1978) e, por óbvio, essa nunca foi vocação de nossa grande mídia. Por outro lado, nos países em que primeiro surgiu, a imprensa partidária, quando desapareceu, estava associada às lutas de afirmação histórica das classes subalternas.
Será possível afirmar que, na conjuntura atual, a grande mídia que abertamente se partidariza, expressa e representa os interesses dessas mesmas classes?
é Pesquisador Sênior do Núcleo de Estudos sobre Mídia e Política da Universidade de Brasília – NEMP – UNB