“Todo mundo deve ser intelectual e militante ao mesmo tempo. É difícil, não é certa a saída, mas é certo que o mundo será o que fizermos”. A afirmação é do sociólogo Immanuel Wallerstein, pesquisador e professor na Universidade de Yale, em conferência na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
O sociólogo afirmou que o capitalismo vai acabar em cerca de 50 anos – “o colapso está em curso pelos limites impostos à acumulação de capital”. “O reequilíbrio do sistema é impossível”, afirma Wallerstein. Em entrevista à jornalista Vanessa Jurgenfeld do Valor, 04-09-2009, Wallerstein, disse que chegará o momento de uma bifurcação, no qual a sociedade construirá novo sistema. Poderá ser “o que chamo de espírito de Davos [Fórum Econômico Mundial] ou o espírito de Porto Alegre [Fórum Social Mundial]. É uma visão geral, impossível de ser detalhada”.
Eis a entrevista.
Diferentemente de diversos economistas, que há pouco tempo discutiam sobre o mundo estar em recessão ou não, já em outubro (logo depois das quebras dos primeiros bancos) o sr. dizia que essa crise era uma longa depressão. O que o mundo aprendeu, afinal, a partir dessa crise?
Primeiro temos que analisar como caímos nessa situação. Faço uma tentativa de explicar como de 1945 até hoje todos os fatos que ocorreram levaram à situação presente. Então, o que se deve aprender é que não se pode analisar algo que acontece nos últimos dois, três ou até dez anos apenas olhando para esses anos, o que é comum entre políticos, acadêmicos e jornalistas. Essa não é uma crise por causa de empréstimos para pessoas que não tinham dinheiro suficiente para honrá-los. Isso foi o gatilho que a estourou, mas não sua causa. Vivenciamos bolhas desde os anos 70, como as crises do petróleo e dos “junk bonds”, e agora temos esta, com os governos dos Estados Unidos e de outros países imprimindo dinheiro e usando-o para aliviar problemas de curto prazo de bancos. Mas esse dinheiro representa uma bolha também.
Então, qualquer análise inteligente tem que ser de longo prazo. A segunda coisa é que é sempre bom para as pessoas acharem brotos para regar e vê-los crescer. Mas começam a ver pequenos avanços e passam a crer que tudo está indo bem de novo. Porém, isso é propaganda de governos, fazendo-os se sentir bem e para se mostrarem bem. O fato é que o desemprego está alto e continuará alto. As pessoas estão contendo os gastos, porque estão com medo de gastar, e têm razão para isso: estão sendo forçadas a deixar suas casas e os negócios estão quebrando. Isso que vivenciamos se estenderá por um bom tempo. É uma depressão profunda. Se olharmos o que ocorre agora como uma análise de longo prazo (últimos 500 anos), percebe-se que estamos em uma crise estrutural do capitalismo. E isso é muita coisa para quase todo mundo digerir, exceto para os inteligentes capitalistas, que entenderão o que realmente acontece e tentarão se preparar para o futuro. Por isso, análises de curto prazo não dão o entendimento lúcido do mundo real.
Há algum tempo o sr. argumenta que a hegemonia dos Estados Unidos está declinando. Essa crise pode estar acelerando esse processo?
Sim, meu argumento é que de 1970 até 2000 o poder hegemônico dos EUA estava declinante, mas isso ocorria lentamente. Basicamente, quando George Bush se tornou presidente, ele e os seus colegas conservadores pensavam que a razão de essa hegemonia estar declinante era porque a liderança dos EUA era fraca e o presidente então mostraria o caminho para restaurar a hegemonia. Isso seria por meio do machismo militar, indo sozinho, intimidando todo mundo. Isso foi, claro, um desastre, e não só não funcionou como fez um declínio lento tornar-se uma queda precipitada. O declínio agora é irreversível. Não se pode usar velhas políticas para desacelerá-lo, ainda que Barack Obama as tente fazer. Ele [Obama] tenta voltar às políticas pré-Bush, mas elas não podem mais funcionar. Por causa do Bush, é muito tarde para isso. Essa história está acabada. Agora estamos em um mundo multipolar, onde os EUA são uma potência forte, mas apenas uma entre outras oito ou dez.
O sr. acredita que os Estados Unidos como potência hegemônica podem ser substituídos por outro país?
Normalmente, do modo como o sistema-mundo operou nos últimos 500 anos, sim. Levaria tempo para um país conseguir essa posição, mas isso poderia ocorrer, eventualmente. Isso presumiria que o sistema continuaria normalmente, mas argumento que estamos em uma crise estrutural. Então, não acredito que teremos outro país nessa posição. Obviamente, há tentativas nessa direção. Poderíamos ter hegemonia do Leste Asiático em 50 ou 70 anos, mas só se o sistema continuasse. Mas ele não vai; então, não a teremos.
O sr. argumenta que há dois pilares do processo que representam a ruptura final do poder americano.
Um é a crise do dólar. O outro é o realinhamento geopolítico dos Estados Unidos. Um poder no qual você não consegue prestar atenção é um poder que pode ser ignorado, se você desejar. Muitos países vão ignorar os EUA. Isso vem acontecendo já na América Latina, em grande parte da Ásia e ocorrerá no Oriente Médio em dois ou três anos, uma vez que é a região onde concentram sua energia política e onde sofrem revés atrás de revés. Isso será um desastre para os EUA.
O sr. comentou sobre as políticas de Obama. O sr. votou nele…
Eu votei nele porque a outra opção era horrível. Mas votei nele sem ilusões, sem nunca esperar que poderia mudar muito em termos de geopolítica. Esperava que pudesse alterar algo internamente nos Estados Unidos, como o sistema de plano de saúde e em relação às liberdades civis. Ainda está em aberto se poderá alcançar isso. Mas Obama não está atingindo nada em nível mundial e não estou desiludido porque nunca esperei que fosse colocar os EUA como uma força central novamente nem que isso era possível.
Mas o sr. diria que ele atua de forma certa durante esse período de crise?
Não, eu diria que ele fez apenas algumas coisas certas e muitas erradas. Uma das erradas é o que faz no Afeganistão. Acho uma política terrível. Escrevi um artigo há um ano dizendo que isso seria um problema enorme, embora ele não tivesse a real dimensão disso ainda.
Depois de setembro, os EUA e outros países tornaram-se mais protecionistas na tentativa de melhorar a situação econômica.
Não há nenhum país que não se tenha tornado mais protecionista do que era há dois ou cinco anos. Em todos, a pressão interna está enorme porque as pessoas estão perdendo empregos e não querem que esses empregos migrem para outros locais. Esses governos têm que responder à pressão, mesmo aqueles que se dizem mais comprometidos com o mercado. [Nicolas] Sarkozy, por exemplo, foi eleito na França com proposta de aumentar o papel do mercado, reduzindo o do Estado na economia, mas assim que chegou ao poder tem feito o oposto por causa da pressão política. E sabe que, se quiser vencer outra eleição, tem que ceder. Todos os governos estão protecionistas e ficarão ainda mais. Economistas que defendem o livre mercado dizem que protecionismo deixa a situação pior. E estão certos. Torn
ará a situação pior, com queda de transações comerciais entre os países, que, por sua vez, prejudica a produção. Mas os governos não poderiam deixar de fazer isso porque ficariam sem poder. Todos os governos estão diante do mesmo problema: têm menos dinheiro por causa dos impostos mais baixos e a demanda da sociedade é para que gastem mais.
Na sua opinião, qual seria, então, o papel dos governos diante de uma crise desse tipo?
Eles vão se apressar para fazer algum movimento. E provavelmente muito deles ou vão aumentar os impostos ou emitirão mais moeda [o que causa inflação].
Os governos não seriam capazes de resolver o problema assim?
Não, e não é um problema que podem resolver. O mais importante para os governos agora é manter a ordem relativa dentro dos seus países contra algo incontrolável. Eles estão preocupados com o descontentamento popular. Afinal, quem sabe o que pode ocorrer quando as pessoas ficam muito insatisfeitas?
A crise, no entanto, trouxe de volta muitas ideias de J. Keynes e de R. Prebisch, principalmente com a discussão sobre a importância do papel do Estado na economia. Quais são os limites desses argumentos?
As ideias de Keynes e de Prebisch deveriam ter sido aplicadas dez anos atrás e talvez tivessem tido algum efeito bom. São ideias melhores do que as dos fundamentalistas de mercado [liberais] porque têm a função do que eu chamaria de “diminuir a dor”, mas agora é muito tarde para resolver o problema. Mas é interessante ver que Keynes, que foi completamente esquecido nos últimos 20 anos, agora esteja voltando e as pessoas estejam achando que ele salvará. É muito tarde, porém.
O sr. classifica os países como centro, semiperiferia e periferia. Neste momento, poderia dizer se há algum movimento de migração de alguns países da semiperiferia ou periferia para o centro?
Os BRICs [Brasil, Rússia, Índia e China] estão em uma posição política e econômica mais forte do que há 15 anos. Até agora, sofrem menos com a depressão, mas não creio que estejam fora dela. Talvez possam continuar a sofrer menos. Esses países têm mais a dizer do que no passado. Na América Latina, há a Unasul [União das Nações Sul-Americanas], relevante em termos geopolíticos, e o Brasil também tem tido um papel importante como líder da região. É uma região que precisa ser levada em conta pelos EUA. Há dez anos, eles não prestariam atenção.
O sr. já disse que acredita que o capitalismo está em colapso e chegaremos a uma bifurcação: migraremos para uma nova ordem, que poderá ser mais democrática e igualitária, ou mais desigual do que a atual. Pode descrever como seriam essas possibilidades?
Não. E ninguém pode descrevê-las. Não podemos detalhar as estruturas que ainda serão construídas pela sociedade porque não sabemos o que a imaginação das pessoas poderá criar. Sempre digo aos meus alunos que, se pudéssemos voltar a 1500 e nos dissessem que estávamos entrando no mundo capitalista, seríamos capazes de dizer como seriam as estruturas no século XX? Não, não seríamos capazes de prever as estruturas. Apenas saberíamos estar nos movendo em uma certa direção. E é o que também sabemos agora. Elas poderão ter o que chamo de espírito de Davos [Fórum Econômico Mundial] ou o espírito de Porto Alegre [Fórum Social Mundial]. É uma visão geral, impossível de ser detalhada.
Nos anos 90, o sr. comentou que o mundo viveria um período de mais 50 anos de grandes conflitos. Desde então, a Guerra no Iraque ainda não terminou. Há mais por vir?
Sim, e eu acredito que mais importante do que as guerras entre países serão os conflitos internos dos países. Por isso eu disse que os governos estão com medo. O governo chinês e o governo americano estão preocupados. Acredito que uma guerra civil nos Estados Unidos não seja impossível. Se você segue a política americana, repara o que certas pessoas da direita falam do governo. Observe que pode haver algumas ações, sérias em termos de violência, que podem ter algum suporte da população.
Fonte: Valor Econômico