Por Leo Lince
A coluna de Mônica Bergamo, no "Ilustrada" da Folha de 28/10, traz notícias de um jantar beneficente, realizado dois dias antes no hotel Grand Hyaat, onde estiveram como convidados de honra os banqueiros Roberto Setúbal e Pedro Moreira Salles, donos do Itaú/Unibanco e par-ímpar entre os magnatas supremos do capital financeiro.
Naquele linguajar que tipifica as colunas do gênero, se afirma que: "entre taças de Veuve Clicquot e entradinhas como mini vol au vent de aspargos, ostras à moda de Nantes sobre julienne de alho porro caramelizado, tost de alcachofra com emmental e pequenos macarrons salgados, Setubal festejava o fato de a crise econômica ter chegado ao fim".
O cardápio do opíparo repasto, com 9 entradas e os 16 pratos, foi assinado pelos maiores nomes da altíssima gastronomia. Como se lê na matéria: "os convidados saborearam ravióli baroa e manteiga noisette com pinhole, pelas mãos de Claude Troisgros, lagosta assada com ervas, feita por Philippe Jousse, do restaurante francês Alain Chapel, duas estrelas no guia "Michelin", robalo ligeiramente defumado com caviar oscietre, do chef Jean Michel Lorain, do restaurante La Côte St-Jacques, três estrelas no "Michelin", e milanesa de costela, molho de jabuticaba e creme de ervilha, de Laurent Suaudeau. De sobremesa foram servidas mousseline de chocolate e profiterole preparada por Christophe Michalak, do hotel Plaza Athénée". Uma beleza.
Em outro trecho não muito distante do mesmo jornal, não por acaso no caderno "Cotidiano", se noticia um acontecimento que parece localizado a milhares de anos luz do anterior. Um colégio tradicional de São Paulo, fundado em 1885 por Dom Bosco em pessoa, o Liceu Coração de Jesus, está definhando e corre o risco de fechar. Seu magnífico prédio, tombado pelo patrimônio histórico, com teatro de 750 lugares, santuário com 20 altares, conservatório de música, é uma cidadela cercada pela brutalidade da violência urbana e, como diz o jornal, "definha em meio à cracolândia, área degradada do centro de São Paulo que abriga centenas de usuários de crack".
O colégio tem história, Monteiro Lobato estudou lá, e já viveu momentos de ordenamento menos injusto da nossa estrutura social. O Liceu de Artes e Ofícios e Comércio, como se chamava no início, atendia aos filhos dos imigrantes italianos e dos negros libertos, que ali estudavam de graça. Depois serviu de internato para filhos dos fazendeiros do café e abrigou cursos universitários e técnicos. Agora, seu imenso pátio vazio é a imagem da desolação. O bedel de turno, que atende pelo carinhoso apelido de Manolo, amarra com arame as janelas basculantes para impedir que os alunos vejam o uso da droga nas calçadas que circundam o colégio. Um horror.
O padre Benedito Spinosa, o salesiano com nome de filósofo que dirige o colégio, ao contrário de banqueiro Setubal, não vislumbra em seu horizonte o fim da crise. No máximo almeja manter a sobrevida da instituição com o ensino integral, "pois os pais entram de carro no pátio do colégio e deixam as crianças aqui". Fora dos muros da fortaleza, seguirá território da horda dos brasileiros deserdados que se refugiam na droga. Segundo o padre, ao atravessarem sozinhos tal território, os jovens do ensino médio acabavam "vítimas dessa situação de não cidadania, que penetra em seu coração e planta a semente do medo e da indiferença".
A euforia do banqueiro e o desânimo do padre educador são expressões distintas de um mesmo enigma ainda não decifrado. A agonia do Liceu Coração de Jesus e a fantástica comemoração do hotel Grand Hyaat são acontecimentos interligados no novelo da crise: duas faces de um mesmo torpor.
Léo Lince é sociólogo.